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CAPÍTULO II. OS OBJETOS-ARTEFACTOS TÉCNICO-INDUSTRIAIS: IDENTIFICAÇÃO E MÉTODOS DE ANÁLISE

2. A cultura material: o papel dos artefactos técnicos

Até ao momento procurámos realizar uma reflexão sobre os objetos enquanto fontes históricas, sobre a noção do seu valor, sobre os bens patrimoniais ao serviço da construção dos valores sociais e nacionais. Passamos, de seguida e, em associação, a realizar uma reflexão sobre o objeto na cultura material, abordagem que consideramos relevante, uma vez, que é nosso objetivo perceber como os artefactos técnico-industriais se patrimonializam e se transformam em objetos museológicos. Assim, e antes de mais, importa entender o que são os artefactos e que relações estabelecem entre si.

Os artefactos, objetos que incorporam uma ação (função), são o produto da intencionalidade humana e esta está condicionada pela existência prévia de outros artefactos. Estes são o produto de uma simbiose com os humanos e a sobrevivência dos objetos depende do seu operador (Csikszentmihalyi, 1988, p. 21). Os artefactos demonstram a sua dimensão em três níveis distintos: no primeiro apresentam o poder do seu proprietário, a sua energia vital e o seu lugar na hierarquia social. No segundo, o objeto revela a continuidade ao longo do tempo, envolvendo o presente e o passado e um futuro próximo. No terceiro, os objetos transmitem-nos uma concreta evidência do nosso lugar na cadeia social como símbolos de um conjunto de relações. A dependência humana sobre o materialismo deve-se à necessidade detransformar a sua precariedade em coisas sólidas e consolidadas. Segundo

Csikszentmihalyi,79 o nosso corpo não é suficientemente bonito, saudável para nos satisfazer, por isso necessitamos dos objetos para nos atribuirmos poder, magnitude, beleza a prolongar a memória de nós mesmos no futuro.

A cultura material está sempre presente na vida humana. Desde os tempos que o Homem interagia com a natureza produzindo os seus instrumentos de caça, até às mais recentes inovações tecnológicas da era digital. A humanidade produziu sempre os seus bens e produtos para diferentes contextos e momentos. Eles são estruturas, objetos, instrumentos, componentes dos espaços de lazer, do trabalho, da escola, do bairro, da cidade, povoam a nossa infância, a idade madura, a velhice.

O conceito de cultura material nasceu somente na segunda metade do século XIX com os estudos da pré-história do geólogo francês Boucher Perthes, o primeiro a usar este termo na sua obra Antiquités Celtiques et Antédiluviennes (1847) para designar os objetos produzidos pelos homens da pré-história. O termo passou a dominar os estudos arqueológicos e a compreender os vestígios e objetos construídos pelos homens, testemunhos que são provas do desenvolvimento e funcionamento de uma determinada cultura, expressão dos seus artefactos. Foi graças à arqueologia, que os estudos da cultura material se desenvolveram, a partir das sondagens arqueológicas, tornando-se possível obter dados relevantes sobre o desenvolvimento das comunidades pré-históricas, em especial, para os períodos anteriores à escrita. Certos autores apontam como exemplo as escavações feitas por Leroi-Gourhan em Pindevent, entre 1956 e 1963, próximo de Paris e que permitiram reconstituir tendas, lareiras, o ambiente doméstico dos caçadores magdalenianos, bem como a estação de caça, as quantidades de carne disponíveis para cada individuo e algumas maneiras de cozinha, entre outros aspetos, ou seja, a cultura material é compreendida pelos vestígios de tudo aquilo que os homens constroem. No âmbito dos estudos arqueológicos histórico-culturais, os artefactos são tomados como documentos palpáveis fornecem dados concretos e inquestionáveis sobre as culturas que os produziram ou usaram (Jones, 1997, p. 17). Segundo Leroi Gourham a objetividade desta cultura material, permitiu que arqueologia não encontrasse limites espaciais ou temporais aos seus estudos, podendo deste modo fornecer informações bastante precisas, numerosas e bem repartidas topográfica e cronologicamente, e ainda aptas a elaborar sínteses gerais e particularizadas (Bucaille & Pezes, 1989).

Como características desta “cultura material”, Bucaille e Pesez apontam a sua materialidade, a sua noção de coletivo, de maioritário e usam como referência, as afirmações

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Especificando o autor refere: “When things are necessary to prove dominance and superiority, human costs start to escalate very quickly” (Csikszentmihalyi, 1993, p. 28).

de Boucher de Perthes que ao analisar as ossadas e utensílios arqueológicos referiu que pouco se importava se estes tinham pertencido a um individuo que os fabricou, o que lhe importava mesmo era considerar que estes eram testemunhos da presença do homem artífice em geral e, isso, para ele é que era essencial. (Bucaille & Pesez, 1989, p. 14).

Em suma, a cultura material é a cultura do coletivo e sobrepõe-se à individualidade, define-se pelo seu interesse pelo não-acontecimento, o que significa que não se limita à descrição da vida quotidiana, nem ao acontecimento isolado, mas antes aos acontecimentos repetidos e coletivos. Os estudos sobre a cultura material interessam-se pelos factos que se repetem sucessivamente para serem interpretados como hábitos, tradições reveladoras da cultura que se observa. Estes estudos, quer na linha da arqueologia, quer da antropologia necessitam da noção de dinamismo histórico, analisando não só o acontecimento, mas antes as condições técnicas, económicas, culturais e sociais que provocaram tal acontecimento e, como foram modificadas por ele.

Uma parte da cultura material é formada por objetos manipuláveis e a sua função social estabelece-se pela relação com o corpo, esta noção amplamente analisada por Marcel Mauss (1936) centra-se na articulação entre o corpo como balizador da experiência material e na existência de uma tecnologia que envolve o ato de manipulação. Esta ideia foi explorada por Jean-Pierre Warnier, que propôs a ideia do homem como um “être de prothèses matérielles”80 e, nesta noção salienta como o individuo incorpora a dinâmica dos objetos nas suas condutas tornando a sua ação essencialmente motriz ao ponto de não conseguir racionalizar o uso do utensílio na sua vida quotidiana (Bertrand, 1999, p. 181). Os objetos materiais servem, também, de suporte, de descrição e de compreensão, indispensáveis na caracterização dos diferentes grupos socioculturais. Para isso é indispensável o conhecimento das suas dimensões, formas, matéria e modos de fabrico, a sua proveniência exata, de modo a ser possível reconstruir ou explicar o ambiente que lhe deu origem (Bucaille & Pesez, 1989, p. 17).

Algumas correntes historiográficas pós-modernas defendem que tudo aquilo que é produzido ou modificado pelo homem deve ser constantemente interpretado, pois, nada é estático. De acordo com estes pressupostos, conclui-se, que a documentação não revela o passado ou o presente, mas permite responder aos anseios do presente sobre as múltiplas culturas, formadas pelas intersecções das identidades e etnicidades (Funari & Carvalho, 2009, p. 6). As correntes que se debruçam sobre estas noções divergem salientando-se outros

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aspetos distintos no âmbito das teorias sociais e multiplicando as abordagens. Arqueólogos, como Matthew Johnson, defendem que a cultura material foi produzida numa sociedade desigual e que esta acabou por reproduzir e reforçar as disparidades (Johnson, 1995, p. 254). Transpondo esta análise para o nosso tempo e aplicada a outros contextos, ela permite revelar aspetos como as hierarquias, as funcionalidades, os comportamentos de um grupo. Utilizando a análise das disposições espaciais de Johnson (1995), também, Pedro Paulo Funari (2003) extrapola para a disposição da sala de aulas com as carteiras dos alunos, a mesa do professor, a arquitetura do prédio, entre outros elementos que conduzem os professores e os alunos a adotarem comportamentos socialmente aceites. Os objetos são concebidos para determinada cultura e grupo social, no entanto, a interpretação dos usos da cultura material pode ser distinta em função das suas intencionalidades (ibidem).

Esta concepção de cultura material chama a atenção para os aspetos simbólicos das atividades produtivas dos homens, para a utilização de utensílios, bem como para os diversos tipos de técnica. O seu estudo, intencionalmente, procura privilegiar as massas em prejuízo das individualidades e das elites (apesar de dominarem os vestígios das elites) e dedica-se aos factos repetidos e não ao acontecimento. A técnica enquanto ato criativo é indissociável do trabalho e da produção e tem sido objeto de estudo no âmbito da história das técnicas, procurando enquadrar os progressos técnicos nos contextos económicos e sociais. Como Marc Bloch referiu existe uma ligação entre a técnica e o social, fator que consolida o seu estatuto no interior da história. Foi, contudo, Leroi-Gourham que baseando-se nas taxonomias das ciências naturais criou uma tipologia geral das técnicas, proposta na sua obra “L’Homme et la Matiére”. A hierarquia técnica esboçada propõe três estádios diferentes, definidos, o primeiro, pela indústria, o segundo pela posse das técnicas mais importantes (agricultura, pecuária e metalurgia), o terceiro pela posse de pelo menos duas destas técnicas.

Outra obra que marcou o panorama dos estudos sobre a cultura material foi a obra de Maurice Daumas, publicada em 1953, intitulada Les instruments Scientifiques aux XVII et

XVIII siécles, considerada como uma narrativa fundamental da história dos instrumentos que

influenciou as posteriores abordagens. Na Inglaterra os estudos de Michael Crawforth centrados nos fabricantes e corporações londrinas marcaram as abordagens em torno da história dos instrumentos e das suas tecnologias. Mais recentemente, mas igualmente importante para o estudo da cultura material, foi Material Culture Studies in America (Schlereth 1999) focando o panorama da cultura material nos Estados Unidos da América (Granato, Santos, Furtado & Gomes, 2007). Esta obra apresenta modelos de pesquisa para analisar os objetos e as suas evidências materiais e culturais.

A complexidade das abordagens associadas ao desenvolvimento técnológico conduziu a novas noções sobre o conhecimento técnico, a enunciar sistemas técnicos e a propor diferentes conexões entre si. Hoje, ao know-how associamos o show-how, na medida em que se pretende que estas duas prestações, permitam elaborar enunciados mais “globais”, mais “totais”, incluindo todo o processo técnico, desde o nascimento de uma ideia até à sua difusão (Bertrand, 1976, p.783).

Os estudos da cultura material refletem-se nos estudos antropológicos, arqueológicos e museológicos, particularmente nas análises dos seus objetos e coleções dos museus e será nesta última linha que o nosso trabalho desenvolver-se-à nos próximos capítulos.