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Para uma melhor contextualização do objeto de estudo desta tese de doutoramento intitulada “Fábrica para o Museu: identificação, patrimonialização e difusão dos objetos da cultura técnico-industrial” realizámos uma reflexão sobre as noções e contextos de património industrial.

Ao longo de séculos, a preocupação com a preservação, reconstituição, conservação dos vestígios do passado possibilitou que o Homem tenha hoje o usufruto de antas, alinhamentos megalíticos, anfiteatros, acrópoles, aquedutos, palácios, mas também, casas rurais, fábricas, minas, portos e bairros inteiros. E, ainda, carros antigos, locomotivas, bicicletas, leiteiras, teares, moinhos, peneiros, semeadores…No dealbar do século XXI a nossa noção de património cultural tem um âmbito global, transdisciplinar e multidimensional.

Realizando, desde o século XIX, um breve enquadramento histórico sobre as medidas de preservação e conservação do património, podemos referir que Portugal está inserido na corrente europeia de salvaguarda do património cultural15 nascida em finais do século XVIII, enquadrada pelos valores da revolução francesa e de um Estado liberal, laico, que governa para os “cidadãos”.

As preocupações com a preservação do património estão patentes na criação do primeiro museu público de arte do país que nasceu no Porto, em 1833, sob a égide do liberalismo, por iniciativa do D. Pedro IV e que se destinou a recolher os bens confiscados aos conventos abandonados ou extintos do Porto ou de outros fora da cidade. Denominado Museu

Portuense ou Museu de Pinturas, Estampas e outros objetos de Bellas Artes, cujos fins se

aproximavam do Programa da Sociedade Promotora da Indústria Nacional enunciado em 1822, foi instalado no Convento de Santo António (S. Lázaro) (Martins, 2003) e passou por diversas fases e reformas, sendo o antecessor do Museu Nacional Soares dos Reis.

Em pleno período da afirmação da sociedade liberal e romântica, num ambiente de debate intelectual e de grande produção literária de que são figuras emblemáticas Alexandre Herculano16 (1810-1877) e Almeida Garrett (1799-1854), foram lançadas as bases para a

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A lei 13/85 do património cultural português define: “o património cultural português é constituído por todos os bens materiais e imateriais que, pelo seu reconhecido valor próprio, devem ser considerados como de interesse relevante para permanência da identidade da cultura numa perspetiva através do tempo.”

criação de uma consciência em torno da salvaguarda do património cultural, a qual foi acompanhada de produção legislativa e de um visível interesse pelos monumentos antigos.

Tal como Rosas (2010) refere, Alexandre Herculano, em 1837 e 1839, com a sua sólida formação histórica e um entendimento do significado histórico dos monumentos, manifestou o seu descontentamento, tentou consciencializar e mobilizar os cidadãos para a criação nacional de uma noção de património, apontando “a inclusão dos monumentos na idiossincrasia da nação” (Rosas, 2010, p. 43). Para o historiador esta consciência em defesa do património só poderia singrar se houvesse uma aposta no sistema de ensino, em especial, na educação artística, com a formação de técnicos habilitados para a preservação dos monumentos.

Um passo importante para a preservação do património nacional foi a ação legislativa do Ministro do Reino Passos Manuel (Manuel da Silva Passos, 1801 - 186217, nomeadamente, com a publicação do Decreto de 1836, que estabeleceu a criação de um depósito geral de máquinas, modelos, utensílios, desenhos e livros relativos às diferentes artes e ofícios com a denominação de Conservatório de Artes e Ofícios de Lisboa. No conjunto, a ação deste ministro visava promover a civilização geral dos portugueses, a difusão da instrução pública e o gosto do belo (Rocha-Trindade, 1993, p. 30). As primeiras classificações de monumentos nacionais foram promovidas pelo Conselho Superior dos Monumentos Nacionais, ainda em 1897, mas cuja lista só foi aprovada oficialmente pelo Governo em 16 de julho de 1910 (Martins, 2006, p. 22). No entanto, o Conselho de Monumentos Nacionais considerou uma lista de catorze monumentos classificados como nacionais que fez publicar no decreto de 10 de janeiro de 1907 e aos quais acrescentou a classificação do castelo de Guimarães (Rodrigues, 2010, p. 28) Nesta lista, apenas, encontramos património construído, salientando nela edifícios como o Palácio do Freixo, no Porto, o Aqueduto de Águas Livres (só a parte de Vale de Alcântara), em Lisboa, o Palácio Nacional da Ajuda, a Igreja de Conceição Velha, e em Évora, a Anta dos Silvados, o Paço de Évora, a Igreja de S. Francisco e o Templo Romano (de Diana), a Igreja da Graça.

Neste conjunto, encontramos essencialmente edifícios religiosos e palácios, mas também vários vestígios e estruturas arqueológicas, nomeadamente, pré-históricas. A esta classificação não foi alheio o papel da Associação dos Architectos e Archéologos

Portugueses, que desde a sua origem (1863) teve um papel importante na divulgação do

legado patrimonial português. Esta Associação primou por delinear secções de estudo

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Ministro do Reino de D. Maria II, (entre 10 de setembro de 1836 e 1 de junho de 1837) Passos Manuel (o seu nome de batismo era Manuel da Silva Passos) deixou um extraordinário conjunto de reformas na área da instrução pública.

correspondentes aos interesses preponderantes dos mais destacados membros, ditando, assim, o curso definitivo da sua História. (Martins, 2006, p. 23).

Desde a criação da Sociedade dos Arquitectos Portugueses (S.A.P.) em 1902, que a Associação dos Arqueólogos Portugueses (AAP) se viu esvaziada das suas secções, mas apesar das vicissitudes da vida desta associação, foi possível a formação de sete grupos de trabalho que foram anunciados, ainda, em vida de J. Possidónio da Silva: Archeologia

prehistórica; Archeologia Christã, Archeologia Nacional; Archeologia de Lisboa; numismática, Heráldica, Biographia archeologica (Martins, 2006, p. 23). A divisão dos

estudos arqueológicos demonstra a intenção de divulgar e preservar o património existente em resultado de um esforço interdisciplinar, no entanto, em 1910, a maioria das subseções desapareceu, subsistindo apenas o grupo de trabalho dedicado aos estudos lisbonenses e, em meados de 1925, a “Secção de (Arqueologia) Histórica” da AAP promoveu, os estudos históricos e a preservação do património móvel e imóvel (Martins, 2006, p. 25). Esta atitude apresenta um novo enquadramento, relativamente às questões que envolvem o património móvel, aqui nomeado e distinguido e cujo conceito iremos explorar no desenvolvimento deste capítulo.

A salvaguarda do património artístico e arqueológico estava confinada a tudo o que se conhecesse, por esse facto, em meados de 1926 foi trilhado um caminho que deu relevância ao estudo do património local/regional e foi promovida a realização de uma lista do património móvel (associado ou não ao imóvel) como parte integrante de um passado que se pretendia resgatar ao esquecimento coletivo e às brumas da História. Juntamente com este inventário foi lançado em todo o território nacional incluindo as ilhas, processos de classificação, considerados a única forma de proteger o património nacional.

A primeira República (1910-1926) desejosa de lançar os fundamentos da modernidade, mas debatendo-se com palácios, paços e conventos devolutos e abandonados e com os novos movimentos artísticos, criou um sistema de proteção, salvaguarda, conservação e transmissão da herança cultural que se espelha na legislação produzida procurando, deste modo, evitar a perda do património e resultando no lançamento das bases de uma reforma orgânica de serviços e numa política constitucional para o ‘Património da Nação’ (Custódio, 2010, p.86).

Decorrente das políticas emanadas a partir do Golpe militar de 1926, o Estado português criou no ano de 1929, a Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais – DGEMN, no seio do Ministério do Comércio e Comunicações, cujo objetivo era reunir os serviços associados com a recuperação e restauro de monumentos nacionais (Neto, 1995, p.

16). Este organismo procurava solucionar um problema que se iniciara, em 1834, e que foi agravado pela Lei da separação do Estado e da Igreja em 1911, colocando o Estado Português como proprietário de inúmeros edifícios e bens de grande valor histórico-artístico que careciam de manutenção, conservação e, por vezes, de intervenções de restauro. O ressurgimento nacional saído do golpe militar de 1926, trouxe um novo quadro de ação sobre os valores nacionais e o seu património. No campo do património arquitetónico implicou a atribuição de critérios de seleção de acordo com valores históricos, mas muitas vezes contraditórios (Alves, 2010). Neste enquadramento foi criada, em 1929, a DGEMN – Direcção-Geral dos edifícios e Monumentos Nacionais que será responsável pelo desenvolvimento de um conjunto de iniciativas junto do património arquitetónico classificado, marcando, em Portugal, o início de uma política de restauro e salvaguarda dos monumentos nacionais que irá até à década de 1960 e que englobou as ações de restauro implementadas pelo Estado Novo ao longo dos anos de 1940 (Neto, 1995).

Por ocasião das comemorações do VIII Centenário do Nascimento de Portugal (1143) e do III Centenário da Restauração da Independência portuguesa (1640) o governo português, através da Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, lançou um programa de intervenção (conservação e restauro) no património arquitetónico nacional (Mosteiro de Batalha, Sé de Lisboa e vários outros edifícios (catedrais, igrejas, mosteiros, palácios), cuja filosofia base assentava nos valores de engrandecimento da nação, visando a consolidação dos ideais do novo regime (Neto, 1995). Neste contexto, desenvolveram-se várias obras: na Sé de Lisboa, no Mosteiro de Odivelas, no Palácio de Belém e Sintra, no Castelo de Leiria, no Convento de Cristo em Tomar (Neto, 2001, p. 97). Este ação não estava descontextualizada de todo um ideário político, sendo o seu dinamizador o Ministério das Obras Públicas, conduzido pela mão do então ministro Duarte Pacheco (1899-1943), e tinha como objetivo transmitir uma visão de modernidade e de grandiosidade da nação. As ações seguiam uma linha ideológica que consagrava os monumentos nacionais como documentos vivos das épocas de glória e o poder político fez deste projeto de salvaguarda uma «cruzada». “Os monumentos restaurados serão, aqueles que ilustram a história ‘reescrita’ pelo regime, funcionando como testemunhos vivos que autenticavam os monumentos de triunfo da Nação secular.” (Neto, 2010, p. 159). A noção de património estava, portanto, sujeita a princípios de ordem ideológica, mas era influenciada pelos movimentos internacionais, como iremos ver ao longo deste capítulo.