• Nenhum resultado encontrado

A Arqueologia Industrial elege como objeto central dos seus estudos “a fábrica”, monumento por excelência da revolução industrial, mas investiga, também, um conjunto de técnicas, processos de fabrico aspetos sem os quais não se entenderia com rigor a dimensão do edifício, a sua organização, localização e os equipamentos e infraestruturas ligadas com a civilização industrial. Exemplificando, o moinho, a mini-hídrica, têm de ser interpretados à luz dos objetos, dos equipamentos que estão no interior destes edifícios e que determinaram a sua arquitetura e o seu modelo de construção.

Foram os avanços tecnológicos e científicos, refletidos em novos materiais construtivos, associados às políticas “industrializantes”, às oportunidades de negócios que fizeram nascer “a fábrica”, composta pelos seus edifícios e armazéns cujos materiais construtivos, revolucionaram a arquitetura industrial, como o ferro, o tijolo vermelho, a viga e o pilar de ferro fundido, permitindo construir de forma económica tanto pontes, como naves industriais, de grandes dimensões quer em comprimento, quer em altura. Os caminhos da arquitetura industrial demonstram a sua resposta às questões da funcionalidade, da utilidade e salubridade dos edifícios bem patentes nas suas linguagens. A arquitetura encontrou as soluções estéticas para a experimentação pioneira de novos materiais e tecnologias dos processos industriais. (Aguilar Civera, 1998a).

Os estudos sobre o património industrial, demonstram o relevo colocado por vários autores na gestão do património, na seleção dos edifícios de acordo com a sua representação e

significado, nos problemas inerentes à sua reconversão, mas também na importância da criação dos museus e de estratégias para o estudo e conservação da cultura material à sua guarda e sobre esta última questão chega a afirmar-se que “the categories of recorded information must permit the fullest possible use of artefacts in interpretation, ranging over their physical properties and the contexts of production and use.” (Alfrey & Putman, 1992, p. 153). Os autores não esquecem a multiplicidade de contextos do objeto, referindo a importância de documentar também as coleções ou objetos que não poderão ser integrados nas coleções dos museus e realçam os valores e objetivos próprios deste património. Nesta discussão são, ainda, analisados os valores que norteiam a arquitetura industrial e o interesse pelas denominadas paisagens industriais ou “paisagens de produção” (Sobrino, 1996). Nesta linha os trabalhos de investigação seguem, o método descritivo e comparativo e, tal, como nos enuncia Aguilar Civera (1998 b),

el conocimento de la história del objecto arquitectónico o del conjunto industrial; el estúdio de su evolução através de los distintos sectores industriales o tipologias; las fuentes de energia y los distintos processos de producción; el desarollo de los equipamentos técnicos colectivos y los servicios públicos relacionados com él; el estúdio y análisis de los espácios de trabajo y la relación del trabajador com el orden jerárquico y disciplinario de la fábrica; su en torno socioeconómico y urbano; el estúdio de la evolución tecnológica y nuevos métodos de construcción; el desarollo de la evolución estética y el caracter industrial, claramente comprometida com la arquitectura del momento, el estúdio del impacto industrial en la ciudad y el paysage urbano-industrial en relación com las nuevas redes de comunicación y transporte. (ibidem, p. 171).

Arqueólogos, historiadores, sociólogos, arquitetos e engenheiros envolvem-se em estudos e pareceres para encontrar novos usos, funções, novos atributos dos edifícios e sítios industriais. Desenham novas soluções para integrar ou requalificar e destacam os seus valores arquitetónicos e históricos. Como refere James Symonds (2004)

(…) we may learn a great deal by studying buildings such as Josiah Wedgwood’s Etruria pottery factory from 1769, with its spatial flow of production that transformed raw material into finished goods in a semi-circle that began and ended at the Grand Trunk Canal, or the humble lean-to sheds of Cradley Heath, where the wives of black country miners hand-forged chains. (ibidem, p. 47).

A renovação económica e a conservação ética dos espaços resultam de um diálogo entre projetistas, investidores e autoridades locais, os quais nem sempre privilegiam os valores culturais das comunidades e os seus interesses. Nestes processos é comum verificar-se a demolição dos telhados em shed de unidades têxteis ou a destruição de tanques de tinturaria, assim como o esvaziamento total dos pavilhões industriais das suas estruturas e equipamentos. No entanto, estes edifícios industriais, foram projetados para receberem

diagramas de produção, secções, linhas de montagem, grandes mecanismos. No ato de projetar ou ampliar uma unidade fabril, a definição das suas estéticas e as soluções obedecem às necessidades produtivas instaladas. Como refere Munce (1960)

This was most apparent in industrial buildings, of which the very reason for existence is efficiency – in design and layout, purpose and appearance, materials and structure (…) Both Architect and engineer realized very early in the struggle that the machine had come to stay. (ibidem, p.8).

Nesta linha de pensamento também se considera que o edifício industrial não é um monumento como os outros e, como, refere Louis Bergeron e Dorel-Ferré (1996) “(…) Il a

reçu sa vie d’un ensemble d’ équipements énergétiques et de transport, d´espaces de stockage, à l’ occasion d’ établissements agricoles et des réserves foncières, de ressources forestières ou minérales proches, enfin d’ habitats diversifiés” e por isso sublinha que,

(…) les vestiges matériels du patrimoine de l’industrie, doivent être pris en compte tous les outils et machines, y compris les canalisations, transmissions, commandes qui peuvent subsister, et qui ont d´autant plus de chance d´être dans ce cas qu’ils constituent un matériel plus lourd, ou moins facilement commercialisable. (ibidem, p. 5).

O desenvolvimento económico e tecnológico fez nascer novos processos produtivos e tornou obsoletas muitas unidades industriais. Esta realidade levanta várias questões: o que fazer com estes edifícios vazios? o que fazer com as máquinas e equipamentos antigos? e, ainda, o que fazer com as competências técnicas dos seus trabalhadores?

Os estudos no âmbito da Arqueologia Industrial nem sempre aprofundam estas questões, nem têm conseguido apontar caminhos para a salvaguarda do património industrial móvel das sociedades industriais. Se o património industrial está mais facilmente sujeito à usura da especulação imobiliária, os ‘objetos móveis’, ‘os valores técnicos’ invocado nas Cartas, Convenções Internacionais ou na Lei-base de património, consequentemente é aquele que está mais sujeito ao vandalismo, à venda ou até dispersão. Reverter esta situação implica um conhecimento prévio das realidades sociais e económicas e do tecido empresarial, uma atuação dos técnicos e especialistas do património no território, junto dos proprietários, e o entendimento por parte do Estado que o património móvel é um recurso patrimonial, tal como é referido no artigo 7º da Lei 13/85 do Património Cultural Português e revogada no Titulo IV, artigo 14 da lei nº107/2001,

Os bens culturais móveis (…) representam a expressão ou o testemunho da criação humana, ou da evolução da natureza ou da técnica, neles incluindo os que se encontram no interior de imóveis ou que

deles tenham sido retirados ou recuperados, bem como os que estão soterrados ou submersos, ou forem encontrados em lugares de interesse arqueológico, histórico, etnológico ou noutros locais. 59

Os bens culturais móveis incluem entre muitos outros objetos arqueológicos, etnológicos, artísticos. Numa singela seleção podemos enunciar que estes contemplam, por exemplo, a Custódia da Bemposta, peça de ourivesaria barroca, testemunho da atividade de mineração no Brasil, à guarda do Museu Nacional de Arte Antiga60; o coche de D. João V, utilizado para as visitas dos chefes de Estado estrangeiros, um exemplar de talha dourado, atribuído ao escultor José de Almeida (1700-1769), e pertencente às coleções do Museu Nacional do Coche61; o fonógrafo de Edison do Museu da Ciência da Universidade do Porto, fabricado por E. Hardy – Paris e que possui um cilindro com a capacidade de reproduzir 50- 60, que foi adquirido pelo gabinete de Física da Academia Politécnica em 1878, ou ainda pela caldeira a vapor DENAYER oriunda da Bélgica e instalada na Real Fábrica Veiga, na Covilhã, datada do século XIX. 62 A sua localização, dimensão e capacidade fez desta última peça à guarda do Museu de Lanifícios da Universidade da Beira Interior um exemplar raro em Portugal.

No âmbito da seleção dos objetos apresentados, temos, no entanto, a perceção que poucos são os objetos pertencentes aos bens culturais do património industrial móvel que se encontram estudados e divulgados. Neste património, para além dos seus materiais construtivos, dimensão e marcas, pouco se sabe sobre eles, em especial, sobre a sua aquisição e quem intermediou a sua entrada na unidade industrial, quais os seus impactos na produção, na organização do trabalho, qual o seu papel na aprendizagem dos novos procedimentos, na propagação das novas tecnologias.

Centrando a nossa análise nos objetos móveis e pretendendo demonstrar a importância do património móvel técnico-industrial apresentamos alguns exemplos da interligação entre o móvel e imóvel, entre o exterior e o interior do edifício industrial, a sua relação e interdependência, a resposta da arquitetura às questões funcionais, desde a chegada da matéria-prima até à expedição dos produtos. Um dos primeiros exemplos que apontamos é o moinho de vento, que com as suas paredes redondas, refletem a necessidade de resistir ao ventos e às intempéries, e cujas áreas interiores são marcadas pela disposição das mós e pelas manobras do moleiro. Neste grupo de edifícios, destacámos o moinho de vento do Barão de Sobral de Monte Agraço, na Vila do Barreiro, um projeto dos inícios do século XIX inovador 59 Disponível em http://dre.pt/pdf1s/2001/09/209A00/58085829.pdf 60 http://www.museudearteantiga.pt/ 61 www.museudocoche.pt

e único em Portugal e o seu mecanismo era constituído por “eixos e rodas fundidas, construídas com exatidão e perfeição para se evitar o atrito e se aproveitar ao máximo a força do vento.” (Ferreira, 1999, p. 95).

A sua dimensão, altura, formas do moinho obedeceu a preceitos técnicos da engenharia e a uma racional distribuição dos seus mecanismos pelos cinco pisos e rés-do-chão do edifício foi realizada de acordo com o sistema produtivo e respetivas ações de moagem e peneiramento previstos.

Fig. 1- Moinho de vento do Barão do Sobral

Fonte: Ferreira, J. Couto (1999). Farinas, Moinhos e Moagens.Lisboa: Âncora Editora, p. 95.

Cerca de 70 anos após este projeto inicia-se em Portugal a construção dos primeiros edifícios moageiros recorrendo à moderna tecnologia austro-húngara que obrigou à construção de edifícios com características específicas que permitiram combinar modernos sistemas de ventilação, limpeza, peneiramento, despontagem, moagem, divisão e ensaque. Os edifícios moageiros construídos nos finais do século XIX, que utilizavam o sistema de moagem austro-húngaro, tinham vários pisos por onde circulavam as matérias-primas e os produtos, obrigando a uma arquitetura vertical, com pisos sucessivos que necessitavam de condutas e ascensores (Ferreira, 1999). As suas fachadas possuíam vários vãos, entradas e saídas. Eles eram a resposta da arquitetura industrial às exigências da moagem, à salubridade dos espaços, à libertação de poeiras emanadas do sistema de produção.

Fig.2 - Diagrama da Companhia de Moagens Harmonia, 1925.

Fonte: Fundo: Museu da Indústria do Porto.

As características funcionais ditaram a fisionomia destes edifícios, assim como a sua localização junto de porto fluviais ou marítimos ou linhas de caminho-de-ferro, de que são exemplos bem marcantes a Moagem Ceres no Porto, ao lado da estação ferroviária de Campanhã, ou ainda a Fábrica de Moagem do Caramujo, localizada na freguesia da Cova de Piedade (Almada) junto ao estuário do Tejo.

Outro exemplo que podemos referir diz respeito à fisionomia das modernas unidades de fiação e tecelagem construídas em finais do século XIX e inícios do século XX que possuíam grandes naves industriais, com telhados em shed, que iluminavam os pavilhões e onde eram distribuídos os longos contínuos de fiação, as longas engomadeiras, as urdideiras e os teares de tecelagem, implicando uma milimétrica economia de espaço no interior das longas naves têxteis. Um terceiro exemplo é a instalação da máquina a vapor e das suas caldeiras que determinaram a construção de um edifício com características próprias: a casa das caldeiras que obedece a regras muito específicas para a sua montagem, funcionamento e manutenção de todos os equipamentos. A dimensão e a forma dos edifícios dependiam das necessidades funcionais das caldeiras, máquinas, bombas e outros elementos mecânicos, bem como do abastecimento de carvão e água à fábrica. Estes edifícios industriais eram, ainda, sujeitos ao aquecimento, aos vapores, ao perigo de explosão. Segundo Heinrich Salzmann (1942), as caldeiras eram instaladas num piso térreo devido ao perigo de explosão.

Las calderas están siempre en planta baja, cubiertas por un tejado ligero. (...). Delante de las calderas debe haber espacio bastante para poder sacar en caso de necessidades ciertas piezas, como hogares, emparrillados, tubos, etc. (…). La casa de máquinas conviene que esté inmediata a la de calderas para

acortar las tuberías que llevan el vapor.(…) Es indispensable una buena ventilación y sobre todo un alumbrado completo de estos locales, dada la elevada temperatura y el desprendimiento de humedad que se produce, particularmente cuando las máquinas son de vapor. (ibidem, p. 282 e 286)

Os edifícios industriais, respondem às necessidades funcionais e mecânicas dos processos produtivos. No seu interior, pontuam diferentes espaços, secções, com linguagens específicas, dimensões próprias, onde se instalam tanques, postos de transformação, geradores a vapor, máquinas horizontais, condutas verticais, entre outros equipamentos e estruturas. Estes objetos conjugam-se, entre si, criando diagramas de produção, linhas de fabrico ou secções de produção específicas, e transportam-nos para o “saber-fazer” de gerações, para a mecanização ou automatização dos processos tecnológicos, para a aplicação prática de princípios técnico-científicos. O papel da máquina tem estado dissociado dos contextos sociais e económicos e nem sempre se resgata o seu valor patrimonial no interior dos projetos de requalificação, nem sempre a sua história entra para o museu e como refere James Symond (2005) “Futher insights may be gained into the social aspects of technology by examining the role that machines played in the struggle for control between factory owners and workers.” (ibidem, p. 47).

Sempre que esvaziamos um edifício industrial, a leitura da sua arquitetura, das suas formas, dos seus diferentes espaços passará a tornar-se aos olhos do comum cidadão um lugar sem significado, fruto de um processo estético e imaginativo, passará a estar descontextualizado da realidade que esteve subjacente à sua construção. Dando um exemplo, mais concreto, muitas das chaminés que hoje pontuam a paisagem urbana, são um símbolo industrial e demonstram, que ali outrora existiu uma unidade fabril, no entanto, se não formos cautelosos nos processos de conservação e de informação, as futuras gerações pouco ou nada saberão sobre a razão de existência da chaminé industrial, da sua função e dos equipamentos que lhe estão associados. Não saberão que a chaminé é, apenas, uma parte de um processo operativo, onde se destaca a caldeira e a máquina a vapor, um dos símbolos centrais da revolução industrial. Face a esta realidade importa ter uma maior atenção para com os significados e representações dos objetos técnico-industriais.