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CAPÍTULO III. REPRESENTAÇÕES DO PATRIMÓNIO INDUSTRIAL DO PORTO: COLEÇÃO E MUSEU

8. A constituição da coleção do Museu da Indústria do Porto e a sua representatividade no processo de industrialização da região do Porto

8.1. A coleção técnico-industrial

O “Inventário do Património Industrial” e o desenvolvimento do “Programa Museológico” do museu foram documentos basilares do novo projeto museológico, que permitiram a constituição da sua coleção técnico-industrial. Os trabalhos de campo efetuados possibilitaram o reconhecimento do processo histórico associado à industrialização, dos edifícios industriais e localizar múltiplos objetos, máquinas, ferramentas e, ainda, documentação de relevante importância para a história da indústria e da técnica: manuais técnicos, revistas especializadas, catálogos, arquivos administrativos, etc..

As coleções definem-se por serem grupos de objetos/peças com uma determinada identidade e representatividade. A relação entre os objetos de uma coleção pode estar associada ao colecionador ou ao facto destes terem “(…) sido recolhidos pela mesma pessoa ou grupo, ou por estarem associados a um lugar ou acontecimento determinado. Uma coleção consiste num grupo de objectos reunidos por uma razão concreta.” (Nabais, 2005, p. 44). Por seu lado, Susan Pearce refere que “the collections are an immensely complex body of material evidence (…) but also of how this past has itself been interpreted as decade has succeeded decade (…)”(Pearce, 1992, p. 134) e Humberto Eco afirma “(…) uma colecção é sempre aberta e poderia sempre ser enriquecida com outro elemento qualquer” (Eco, 2009, p. 165). Justapondo cada definição, tentaremos sintetizar que uma coleção é um conjunto de objetos de uma mesma natureza, aos quais lhe é reconhecido um valor histórico e patrimonial, que se ligam e se relacionam entre si por possuírem em comum, uma espécie ou domínio. Estes objetos por possuírem fabricantes, proprietários, operadores e consumidores estabelecem relações com espaços ou regiões específicas e, ainda, com outros objetos, numa sucessão quase infinita. Nesta definição enquadra-se o conjunto de objetos que ao longo de 18 anos foram recolhidos, no Porto, em ações de Arqueologia Industrial ou fruto de ofertas e doações de cidadãos que se identificam com a missão deste museu dedicado ao património industrial.

As peças espalhadas por naves industriais, cantinas, laboratórios, secções de acabamentos e outros locais, resultavam do facto das empresas as considerarem obsoletas, antigas, e sem valor financeiro ou funcional. A realidade demonstrava que, mesmo as empresas no ativo não preservavam (ou não possuíam os meios para o fazer) os produtos, réplicas ou modelos, nem as máquinas ou peças associadas à introdução de uma nova técnica (ou tecnologia) quando esta se torna obsoleta.

Estas peças perdiam o interesse à medida que outros modelos eram produzidos e se efetuava a renovação do processo fabril: produtos e máquinas que entravam na lista do património para “abate”. Poucas eram as empresas que preservaram as suas primeiras máquinas, as ferramentas do avô-fundador, os seus modelos (e moldes) e produtos. Na maioria dos casos, só as empresas cuja administração era constituída, maioritariamente, por elementos da família dos fundadores é que promoviam algumas ações de conservação de peças e documentos antigos. Eram as que tinham consciência do valor histórico (e para eles também afetivo), do seu património mantendo-os na receção da empresa, ou em espaços próprios, a que chamam “museu” ou “arquivo”. Por outro lado, também, as empresas de grande dimensão, detentores de participações do Estado tinham procedido ao longo dos anos à preservação de um património arquitetónico, documental e arquivístico que ganhou a dimensão de património público, e permitiu a criação de museus como, o já citado, Museu da Electricidade da EDP ou o Museu da Água da EPAL – Empresa Pública de Águas de Lisboa.

A constituição da coleção do Museu da Indústria, a recolha de objetos foi pautada pelo sucesso ou insucesso da mediação que se estabelecia entre os proprietários e a equipa no terreno. Nestas recolhas procurava-se para além da “máquina” ou dos “utensílios”, a documentação relativa à fundação e ao funcionamento da fábrica. Neste contacto era, ainda, essencial que os técnicos procurassem sensibilizar os empresários, os técnicos, os antigos funcionários para colaborarem neste processo de recolha e na descrição do funcionamento da peça, no relato sobre os processos de aquisição, alterações e mudanças e suas vivências no espaço fabril. Procurava-se que estes antigos operários participassem na desmontagem das máquinas e na sua montagem no interior do Museu, pois, conheciam melhor do que ninguém onde desaparafusar e como transportar, além disso, conheciam a história do objeto, porque ficaram obsoletas e relegadas para o fundo dos armazéns ou porque foram conservadas.

A maioria destas peças não dispõe de informação sobre o modo de emprego, instruções sobre o seu funcionamento, sobre a sua aquisição e resgatando o sentido proposto de Bruno Latour, elas são autênticas “caixas negras” (Latour, 1992, p. 78) impossíveis de identificar. Enfim, estes instrumentos não são como os do século XIX feitos de materiais

nobres, utilizados por príncipes ou cientistas. Eles não são bonitos, nem valiosos, senão não teriam escapado aos antiquários e colecionadores. Na sua maioria são volumosos, pesados e colocam vários problemas de manutenção, de armazenamento e exposição.

A missão que tínhamos no terreno era a salvaguarda dos testemunhos de uma atividade fabril que estava a encerrar, a deslocalizar-se ou mesmo a desaparecer da cidade do Porto. A urgência desta ação era tão real, quanto a destruição ou venda de máquinas, alguns modelos raros, que iam para a sucata e para a fundição. Rivalizávamos no tempo e no espaço, com sucateiros, compradores de máquinas em segunda mão. Cada um possuía o seu próprio “olhar”, completamente distinto e dele resultava o “fim” que desejávamos dar a cada objeto, máquina, ferramenta, catálogo, copiador, cartaz, fatura, etc..

Quando entravamos nos espaços industriais, cada artefacto industrial, fosse ele “máquina-motora”, “máquina-operadora”, “máquina-transmissora”, “máquinas-ferramentas”, “ferramentas”184, “produtos”, “moldes”, e “materiais de publicidade e marketing”, constituíam

vestígios da laboração, testemunhos do processo de produção e das suas tecnologias. Este património poderia ser musealizado in situ, transladado de um espaço para outro, ou ainda reutilizado por outra empresa ou oficina. Neste processo era importante, também registar as memórias dos operários, dos técnicos e engenheiros que os instalaram e os utilizaram e, em muitos casos, esse trabalho foi desenvolvido, tendo sido realizadas várias gravações com relatos de vida e explicações sobre o funcionamento das máquinas, fornos e outros equipamentos

Os artefactos encontrados constituíam testemunhos de um “saber-fazer”, de uma técnica de uma forma de pensar e de fabricar. Correspondendo a esta forma de atuar, e neste contexto partilhamos do sentido da frase do Newfoundland Museum – Canada “(…) When you are looking to an artefact you are looking at the person thoughts (…).”185

Este processo de recolha era acompanhado por um levantamento de dados históricos sobre as peças/objetos e os edifícios industriais de origem, pesquisa essencial para determinar o seu valor histórico e abrir um dossiê de dados sobre a peça e a respetiva unidade industrial de proveniência.

Na aquisição ou recolha de uma coleção, os técnicos e conservadores procuram “o objeto autentico” definido como o objeto que possui uma “aura” e à qual esta associada o seu carácter “único” estabelecendo uma relação genuína com o passado. (Gonçalves, 1988;

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“Este acervo é basicamente constituído pelas máquinas motoras e operadoras, transmissões, ferramentas e máquinas ferramentas, o património arquivístico (arquivos de empresariais, incluindo os arquivos físicos,) e produtos existentes - coleção de moldes, amostras, desenhos (…)” (Menezes, 2009).

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Bejamim, 1969; Fabian, 1983). Os museólogos, os arqueólogos procuram a sua individualidade, a sua particularidade. A justificação usual para o seu levantamento e conservação é que foi encontrado, utilizado ou produzido num tempo ou local particular, num dado contexto e quadro social sendo portadores de uma memória e de um significado próprio (Menezes, 2005, p. 30). O objeto transforma-se em prova, evidência, testemunho, ele próprio é informação, na relação que estabelece com os seus diferentes utilizadores, e num segundo momento ele cria uma nova informação. Michel Harnois (2000) aponta a este propósito,

L’entrée d’un objet dans une collection obéit toujours à un examen critique, puisqu’elle le sauve de la poubelle (…). La conservation d‘artefacts technologiques est une mission primordiale pour la documentation de l’entreprise, mais aussi de l’histoire collective d’une société. (ibidem).

A incorporação destes objetos no Museu suscita uma reflexão sobre a cultura científica e tecnológica como parte integrante da sociedade (Cordeiro, 2008, p. 21). A sua principal missão no interior de uma coleção deverá ser, não só, a de prestar um contributo para a compreensão da sua anterior função na cadeia produtiva, como a de ser um testemunho do ambiente social ou económico da época em que se encontrava em funcionamento. Os objetos industriais devem, “auxiliar as pessoas a descobrirem e a compreenderem a influência que a ciência e a tecnologia exercem sobre os seus hábitos e modos de vida” (Cordeiro, 2008, p. 11).

Estes objetos recolhidos eram “únicos” porque pertenciam ao tecido industrial portuense, eram “únicos” e singulares porque já não eram utilizados correntemente na atividade industrial, tendo sido substituídos por outros mais recentes e com maior rendimento. Eram “únicos”, porque eram modelos produzidos em finais do século XIX e primeiras décadas do século XX. Eram “únicos” porque mantiveram-se no interior das fábricas e em laboração até aos anos de 1970/80186, porque foram lançadas leis como a do condicionamento industrial que, em muitos casos levou à manutenção de processos e técnicas. Eram “únicos” porque o tecido empresarial possuía pouca capacidade de investimento, o que levou à permanência em funcionamento de tecnologias antigas e obsoletas, contrastando com uma Europa que cedo tinha acelerado as suas mudanças tecnológicas.