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CAPÍTULO II. OS OBJETOS-ARTEFACTOS TÉCNICO-INDUSTRIAIS: IDENTIFICAÇÃO E MÉTODOS DE ANÁLISE

5. Os Contextos de significação dos objetos

fundamentais sobre os seus objetos, tanto à escala nacional, como internacional. Estas preocupações em relação ao sentido do objeto e à difusão das suas mensagens encontraram eco numa larga produção de trabalhos teóricos e práticos nas áreas da antropologia, sociologia, cujos autores propuseram sistemas descritivos ou classificações (categorização) dos objetos, entre eles, podemos destacar nomes como Jacques Mathieu (1987), Prown (1982) Yves Deforges (1993).

Os sistemas de classificação são produzidos para dar resposta às necessidades das instituições e apresentam modelos, que por vezes são difíceis de utilizar, com denominações fora do contexto que contradizem o sentido do objeto. As abordagens teóricas são, por vezes, pouco operacionais para os técnicos dos museus na medida em que eles criam grelhas descritivas ou de análise muito rígidas, muito complexas e até muito teóricas. Os trabalhos mais recentes apostam em conciliar o conjunto de aquisições e conhecimentos científicos recentes, estimulando o diálogo entre os profissionais dos museus e os investigadores universitários das diferentes disciplinas. Estes estudos têm por finalidade avaliar as práticas científicas no interior do museu, ou seja criar um modelo, uma teoria inovadora que concilie de forma equilibrada os olhares dos dois lados: o dos técnicos do museu e o dos investigadores.

Arqueológos, antropólogos, historiadores, geógrafos, museólogos, linguistas e outros especialistas, com experiência do interior do museu, em conjunto, podem enriquecer as suas diferentes abordagens sobre os estudos dos objetos museológicos e os seus contextos. Nesta linha, foi desenvolvida uma proposta de trabalho para analisar os objetos e os seus contextos de significação que defende as perspectivas pluridisciplinares, a colaboração entre especialistas, considerando que “Ils voient une condition indispensable à la valorisation optimale des messages contenus dans l’ objet, dans une perspective largement pluridisciplinaire et ouverte sur le presente. ” (Mathieu, Leónidoff & Porter, 1987, p. 8) 88

O objeto não é simples. A sua forma, a sua matéria, as suas características particulares, as suas técnicas de construção ou fabrico, são fruto de uma elaboração com diferentes fases. Uma obra de arte é constituída por múltiplos signos, cores, representações. A peça, o objeto resultante de uma tecnologia como o relógio, o aparelho de rádio ou o computador não será tão simples de analisar, pois, trata-se de um objeto composto, multifuncional, com uma multiplicidade de sentidos.

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Jacques Mathieu um dos fundadores do CELAT - Centre d’Etudes sur la langue, les arts et les traditions populaires des francophones en Amérique du Nord e tem por missão estabelecer uma ponte entre a produção científica e a comunicação museográfica, uma ponte entre investigadores e as sensibilidades populares. A proposta foi publicada em Material History Bulletin/ Bulletin d?histoire de la Culture Matérielle n.26 (fall/Automne, 1987) editada por National Museums of Canada.

Recuperando e cruzando parte dos trabalhos de Leroi-Gourham e de investigadores como J. Braudrillard (1968), John R. Porter (1988) e Jean-Pierre Warnier (1999) entre outros, procuramos nos seus trabalhos avaliar os testemunhos histórico-arqueológios e sintetizámos a ideia de que objeto não existe por si, mas enquanto representação. Estas afirmações têm por base as teorias evolucionistas e difusionistas e procuram construir tipologias e taxonomias baseadas nas noções de espécie, de variedades, de géneros, de estilos. Agrupando os diferentes tipos de objetos, eles ilustram um ambiente, um espaço, uma tecnologia ou traçam uma evolução. As taxonomias que os antropólogos desejavam criar permitem distinguir entre o objeto único e as famílias de objetos, que por seu turno permitem estabelecer distinções entre o objeto em si e os seus contextos. No seguimento dos diferentes contributos e análises efetuadas, as pesquisas demonstram os diferentes contextos do objeto integrando os conceitos do funcionalismo, da semiologia e da contextualidade (Mathieu, Leónidoff & Porter, 1987, p. 8).89

Na base destas abordagens colocam-se as questões: De que é representativo o objeto? Como a memória coletiva pode esclarecer os seus contextos? E deste modo exploramos a dimensão imaterial do objeto. Na procura de uma síntese, seguimos Jacques Mathieu, que chama a atenção para a função utilitária do objeto, seja ela primária ou secundária, pois o objeto revela-se portador de valores ideológicos e simbólicos, ele é a expressão de um gosto, de uma estética no tempo e no espaço social e cultural. O objecto faz parte de um sistema que se transforma continuamente, segundo as mudanças que ocorrem o meio social e cultural onde está inserido (Mathieu & Leónidoff & Porter, 1987, p. 8).

As análises sobre o objeto centram-se, no entanto, em primeiro lugar, na necessidade de observarmos o objeto. Os investigadores que se têm debruçado sobre esta matéria insistem na ideia da análise do objeto em si, nas suas dimensões, formas, matérias e técnicas e nas relações entre as suas componentes, procedimento usual nos museus desde o momento da incorporação, até ao seu inventário. Contudo, para além desta imagem do objeto contrapõem uma outra, num eixo completamente oposto, o objeto nas suas dimensões imateriais. Nesta linha, será necessário compilar os relatos orais e os documentos sobre os saberes e técnicas, as suas funções específicas e os seus usos, ou seja todos os seus significados simbólicos e todos os seus contextos. Os significados do objeto inserem-se, portanto, numa verdadeira cadeia de contextos, de ligações e conexões. Não podemos conhecer exaustivamente o objeto, mesmo

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O texto original: “la recherche des significations de l’objet a finalement culminé dans la mise en évidence de ses différentes contextes (…) Il faut toutefois rappeler qu’au-delà des perspectives disciplinaires, la recherche a favorisé l’élaboration d’approches transdisciplinaires comme le fonctionnalisme, la sémiologie et la contextualité.”

após cada análise, cada perceção, pois, o simples facto de analisarmos as circunstâncias em que o observamos já é um fator que influência o que vemos e como vemos. Neste sentido, citamos “(…) impossible aussi d’envisager une pratique concrète et efficace de l’objet que puisse tenir compte de toutes ces dimensions; impossible enfin de cerner l’objet-mémoire sans transcender les disciplines.” (Mathieu, Leónidoff & Porter, 1987, p. 11). Neste âmbito, os autores propõem um método de trabalho onde é possível definir os fundamentos indispensáveis à transmissão das mensagens contidas no objeto, repartindo melhor os papéis dos intervenientes, assim como, os objetivos e finalidades da sua salvaguarda e difusão. A proposta apresentada “(…) s’appuie sur le fait que, d’ une part, l’objet est un phénomène social total dont l ‘étude n‘a de raison d’être que pour une meilleure connaissance de l’humain et, d’ autre part, qu’ il est possible de combiner une lecture de l’objet et une lecture par l’objet.” (Mathieu, Leónidoff & Porter, 1987, p. 11). Assim, propõe uma definição alargada de objeto. Ele é uma entidade móvel, independente, sem limite de dimensão ou volume, resultante da intervenção humana e que possui um uso ou função. O objeto pode ser um instrumento, um móvel, uma veste, um artefato arqueológico, um documento ou uma obra de arte (Mathieu, Leónidoff & Porter, 1987, p. 10). O quadro conceptual apresentado pressupõe um conjunto de grelhas de leitura que têm por função registar o que é específico do objeto e o que faz parte do seu conjunto, como se faz correntemente nos museus: registo, ficha de inventário, dossiê do objeto, introdução em base de dados (software de inventariação), utilizando diferentes meios para registar a informação sobre o objeto. Esta pode ser enriquecida pela entrevista, pelos registos vídeo, fotografias antigas.

Na prática o conservador do museu é confrontado com o objeto e deve iniciar o processo de documentação, seguindo na direção de recolher todas as informações sobre o seu produtor e sobre os seus proprietários e operadores. Essa recolha, sempre aberta, deve permitir a qualquer momento “angariar” uma informação que será preciosa para ser cruzada com outras análises e investigações e, que será crucial na fase de comunicação e difusão da coleção, do objeto junto dos diferentes segmentos de público.

Pelo lado do investigador, este começa a análise do objeto de forma mais indireta, ou seja ele vai analisar os seus contextos de significação, as problemáticas que ele encerra: os contextos de significação dos objetos e os seus valores culturais. O objeto e os seus espaços de significação, de operacionalidade, ou mais concretamente, o objeto no tempo e nos diferentes contextos temporais, o objeto e o meio social, económico (Mathieu, Leónidoff & Porter, 1987, p. 11).

Estes dois caminhos têm pontos de partida inversos, mas que só serão úteis e frutíferos se um enriquecer o outro, intercetando-se, cruzando-se nos seus caminhos. Os resultados destes serão fruto de um diálogo entre os diferentes níveis de leitura do objeto, que assim permitiram compilar e avaliar toda a informação que foi recolhida entre os diferentes pólos de pesquisa. Neste processo os grupos envolvidos: investigadores e conservadores possuem tarefas e objetivos distintos, mas complementares. Para o conservador do museu tudo parte do objeto - o primeiro nível de leitura – e voltará ao objeto, considerado o lugar eleito da memória. O conservador tem como função a preservar o objeto e contribuir, na sua medida, para enriquecer os significados deste objeto. Ele deve documentar o mais exaustivamente possível o objeto, deve cobrir todos os contextos de significado para a compreensão do objeto, informar sobre a peça, em si, e sobre o que ela representa, ou seja reconstituir a sua história a sua genealogia, alimentar os diferentes contextos de significação Sabemos que esta tarefa não é fácil, certos objetos possuem bastante documentação associada, mas outros pouco mais sabemos do que a sua proveniência, denominação, datação aproximada. O conservador deve recolher o máximo de informação no ato da recolha, no momento da aquisição. Os autores desta proposta neste ponto afirmam que deve ser recolhida documentação que vá além do objeto em si e permita contemplar os dois níveis de documentação. O primeiro nível deve permitir obter informação sobre o contexto do fabrico do objeto: a sua produção e aquisição, assim como, as relações entre produtores e o proprietário. Esta informação procura registar a sua performance, as condições e as circunstâncias de produção, assim como, as relações sociais e profissionais que permitem entender o porquê da criação e existência do objeto. Trata-se de registar a vida, a história do objeto associando os diversos contextos para esclarecer a sua significação. Por exemplo: o fabrico de móveis antigos corresponde a um espaço-tempo particular e a tarefa do conservador é tentar saber tudo sobre o objeto, tudo o que se ignora acerca dele. Neste processo, o conservador deve distanciar-se do objeto para ter um olhar incisivo e lhe permita perguntar se o objeto corresponde à memória de uma época ou se ele representa uma memória mais alargada. Pelo lado inverso, o investigador de ciências socais e humanas preocupa-se antes de mais com os contextos de significação e com a sua pertinência no presente. (Mathieu, Leónidoff & Porter, 1987, p. 12).

No conjunto de relações entre investigadores e os conservadores de museu, o esquema aqui apresentado identifica os lugares de encontro e de repartição de responsabilidades e preocupações principais. Ele indica a estreita necessidade de complementaridade entre os dois grupos de especialistas. Nenhum conservador de museu consegue apresentar o objeto sem ter em conta os seus contextos de significação. Nenhum investigador pode tornar as suas

problemáticas credíveis se não se puder apoiar a sua argumentação sobre as fontes tangíveis, sejam elas uma pintura, uma carta, documento ou objeto. A concertação oferece aqui vantagens formidáveis para a investigação centrada no objeto.

Fig.-3 – Pirâmide de encontro de abordagens e especialistas

Fonte: Mathieu, Leónidoff & Porter, 1987, p. 11.

O objeto está no topo desta pirâmide de avaliação e num segundo momento ela engloba um sistema onde estão presentes o produtor e o proprietário, que são a causa direta da existência do objeto. Estes por sua vez repousam sobre quatro pilares (a base da pirâmide) que justificam diretamente sua existência: o tempo, o espaço, a sociedade e a cultura – Os contextos de significação. O esquema de estudo deixa antever duas vias diferentes de estudo e a construção de uma dialética entre elas, permitindo ao investigador abordar o objeto segundo diferentes ângulos, movimentando-se entre perspetivas diversas (Mathieu & Leónidoff & Porter, 1987, p. 8).

Fig. 4 - Proposta apresentada por Jacques Mathieu, Georges-Pierre Léonidoff e John R. Porter para recolher a informação. Está dividida em três níveis e contextos diferentes, o primeiro sobre objeto e as suas características (dados mais básicos), o segundo sobre o seu produtor e o terceiro sobre o proprietário.

Fonte: Mathieu, Leónidoff & Porter, 1987, p. 13-14.

As informações que obtemos da esfera do produtor e do proprietário permitem contar a história de vida do objeto: a sua criação, a sua utilização e reutilizações, desenvolvendo a biografia do objeto, linha de abordagem desenvolvida por Karin Dannehl e já apresentada anteriormente. Estes dois contextos: o de produção e da apropriação (proprietário) situa o objeto numa serie e sequências de outros objetos similares ou complementares. É possível estabelecer linhas de continuidade, ruturas, vias de circulação, cadeias tecnológicas, a intensidade e a natureza das relações. Dando um exemplo: uma peça de artesanato, única, é distinta, pois estabelece uma relação com objetos produzidos em serie e de consumo corrente. Assim, o que os distingue de facto é que uma peça (artesanato/artística) tem um valor estético e as outras têm uma função utilitária.

No estudo dos objetos devem ser registados desde os dados básicos, mas também dados que possam apoiar futuras investigações. Devem ser registadas as segundas utilizações, os valores estéticos, as mudanças de função ou de proprietário, as mudanças no espaço e no tempo dos proprietários e de produtores, informações que podem modificar a representatividade do objeto e, no limite, podem mesmo mudar a denominação do objeto.

Os contextos de significação podem ser plurais. Se tomáramos como exemplo uma cómoda finamente trabalhada, poderíamos referir que esta raramente terá entrado na casa do camponês, no entanto, esta é uma peça muito característica no interior das casas. Por um lado, este móvel pode ser preservado pelos valores iniciais que possui: estéticos funcionais, materiais, no entanto, na sua preservação, outros contextos de significação devem ser tomados

em consideração: as suas representações simbólicas, utilitárias, decorativas, as características específicas de uma época, inerentes a um grupo social, estabelecidas num tempo e num espaço (local), e constituindo a sua expressão cultural e artística. (Porter, 1989, p.193).

Os conteúdos destes diferentes contextos de significação são na maior parte das vezes informações que carecem de uma maior exploração, por essa razão, os contextos são por isso abertos, mas com estreitas relações entre si. Os autores apresentam os diferentes contextos:

Os contextos espaciais - a localização de um bem no espaço que deve ir para além da sua morada e contemplar todas as mudanças de locais. As diferentes localizações de um objeto demonstram a sua reutilização, reciclagem e adaptabilidade a novos espaços, localizações, que podem ou não manter a sua função, a sua utilidade. A documentação de um objeto deve contar com as diversas temporalidades: o tempo do acontecimento; o tempo do quotidiano; a duração; os ciclos sazonais, os calendários da vida, o tempo estrutural associado à duração dos ciclos; o tempo próprio do objeto: desde o seu fabrico, às suas utilizações, aos seus valores.

Os contextos sociais - Neste nível há que considerar os diferentes meios, no plural. A pesquisa em história social mostra a complexidades das pistas dos caminhos da investigação. Seguindo esta linha, destaca-se: o individuo, a família, o parentesco, a vizinhança, os grupos de pertença identitários, as associações, os grupos profissionais. A relação que um indivíduo tem com um objeto pode provocar identificação, comparação, distanciação ou enriquecimento. O objeto exposto num museu favoriza a troca, a apropriação, a transmissão de conhecimento e de valores entre pais e filhos.

Os contextos de significação – neste nível apresentam-se os valores culturais (os últimos e mais difíceis parâmetros de avaliação e compreensão do objeto) e implica abordar um sistema amplo de representações constituindo um lugar privilegiado da imaginação e criatividade. As rubricas deste nível são muito extensas e cobrem todas as dimensões culturais do objeto e as suas representações no interior de uma dada sociedade.

Esta proposta de análise aplica-se a todo o tipo de objeto, memória de uma cultura, de uma sociedade e deve respeitar as suas especificidades. O carácter operacional desta proposta possui grandes campos e tem subjacentes diferentes questionários. Estes devem, no entanto, ser adaptados a cada circunstância e em função de cada objeto, dependendo, ainda, dos seus objetivos. Cabe ao conservador e ao investigador diversificar o ângulo de análise e efetuar as combinações as mais pertinentes, podendo privilegiar os aspetos tangíveis e intangíveis, (materiais e imateriais), explícitos e implícitos do objeto, a sua matéria e as suas funções evocadoras.

Instrumento de conhecimento e de compreensão, o esquema de documentação proposto é uma leitura que permite colocar em evidência os valores e as qualidades do objeto, a sua autenticidade, a sua originalidade, a sua exemplaridade, bem como, um conjunto de suas mensagens e representações simbólicas. Este esquema visa menos estabelecer um sistema descritivo detalhado e refinado, do que precisar a natureza das informações úteis numa grelha de leitura. É possível realizar uma leitura pluri/interdisciplinar do objeto, que deve ter em consideração as realidades e as conotações do objeto em cada um dos níveis de leitura que se podem fazer. Em síntese, a proposta e os esquemas apresentados permitem uma leitura consistente, baseada num processo de interrogações que dá um sentido ao objeto, reduzindo as possíveis leituras subjetivas, apostando num sentido crítico, diminuindo os riscos de distorção e valorizando a interpretação dos testemunhos materiais de uma sociedade. Esta leitura é tão lucrativa para os que realizam as aquisições científicas, como para as experiências pessoais de um visitante no museu e as eventuais relações que cada um estabelece com o objeto. Ela mostra como e, em quê, a documentação do objeto pode traduzir a complexidade, as dinâmicas e as harmonizações vividas. Esta análise tem vindo a estimular os estudos sobre os objetos e o desenvolvimento de teorias e métodos de análise dos objetos museológicos como apresentaremos seguidamente.

5. Os Modelos de estudo dos objetos: De E. McClung Fleming a Marta Lourenço e