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Os Modelos de estudo dos objetos: De E McClung Fleming a Marta Lourenço e Samuel Gessner

CAPÍTULO II. OS OBJETOS-ARTEFACTOS TÉCNICO-INDUSTRIAIS: IDENTIFICAÇÃO E MÉTODOS DE ANÁLISE

5. Os Modelos de estudo dos objetos: De E McClung Fleming a Marta Lourenço e Samuel Gessner

Para o conservador de museu, ele deseja, antes de mais, identificar o objeto, documentá-lo, apontando todos os aspetos históricos e educativos pertinentes para transmitir ao público. Para o investigador do objeto, mais do que os aspetos descritivos ele procura estudar “os contextos de significação”, as problemáticas que encerram, o seu campo simbólico e representativo. O conservador pelo seu lado, tem como responsabilidade preservar o objeto e enriquecer as “significações deste objeto” e, para tal, ele tem que documentar o objeto, reconstituir a sua história, a sua genealogia, esclarecer todos os campos de significação. Contudo, esta tarefa nem sempre é fácil. Se existem objetos em que a informação é abundante, de outros porém, pouco mais se sabe do que a sua proveniência e data aproximada. Crucial é a informação recolhida ou anotada pelo conservador no momento da sua aquisição, junto dos proprietários, operadores, colecionadores. Uma vez sistematizada esta informação, deverá ser cruzada e complementada com documentos escritos, e deste modo será possível partir para a

interpretação do objeto procurando evitar as deformações sobre os seus significados e contextos.

Um dos primeiros aspetos a reter na análise dos artefactos técnico-industriais é o contexto do seu fabrico e da sua aquisição, assim como as relações entre o produtor e o proprietário, ou ainda como estes afetaram o lay-out das unidades industriais, como a sua entrada obrigou a novos procedimentos, à formação específica dos seus diferentes operadores. Defendemos, no âmbito desta pesquisa que estas análises, devem adaptar-se à especificidade da cultura material das sociedades industriais, mas devem seguir, no entanto, os critérios de análise propostos, destacando os aspetos que incidem sobre as performances técnicas do objeto, sobre as condições e as circunstâncias de produção, assim como, as relações sociais e profissionais que este estabelece ao ser produzido, usado, armazenado ou, mesmo, transportado para um museu.

Estes estudos são essenciais para analisar os impactos das técnicas e tecnologias nas sociedades contemporâneas, as motivações empresariais para a realização de contratos de transferência tecnológica e avaliar as capacidades de assimilação destas técnicas e processos industriais. A apreciação dos modelos de análise dos objetos constitui uma premissa deste trabalho, uma vez que pretendemos utilizar e testar um destes modelos para os objetos técnico-industriais.

Nas metodologias desenvolvidas para interpretar as imagens, os instrumentos, os instrumentos científicos, destacam-se os estudos realizados por Panofsky, em 1938, que incluíam modelos de interpretação centrado no observador e que desejavam compreender os seus mais intrínsecos significados e como estes participam na construção dos nossos valores simbólicos e na nossa vida social (Pearce, 1992,p. 265). Este processo foi desenvolvido para a interpretação de imagens e explorava a relação entre as apreciações intuitivas e a produção de conhecimento.

Nos anos de 1970 E. McClung Fleming desenvolveu um modelo para o estudo do artefacto90 que se estrutura em cinco propriedades que permitem estabelecer inter-relações entre os seus significados. Seguindo o seu modelo, verificamos que ele apresenta as propriedades de um artefacto como sendo a sua “história”, “os materiais”, “a sua construção”, “design” e “função”. Estas propriedades pressupõem, quatro operações que devem ser realizadas sobre as cinco propriedades, procurando deste modo, encontrar as respostas às perguntas feitas sobre o artefacto. As quatro operações são: “Identificação”, que inclui

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classificação, autentificação e descrição. A segunda é dedicada à “Avaliação” que é o resultado de um conjunto de julgamentos sobre o artefacto, habitualmente, baseados em estudos comparativos com outros objetos do mesmo tipo ou semelhantes. Uma terceira operação denomina-se “Análise Cultural” e inicia-se após a fase da identificação e da avaliação e irá permitir analisar as várias inter-relações com o artefacto e com a sua contemporaneidade. Esta operação analisa os artefactos segundo diferentes critérios: a sua área geográfica, o seu produtor ou grupo de produtores, a sua linha estética, as características do local ou região. Esta “Análise crítica” permite isolar características comuns de um grupo, permitindo ao investigador realizar ligações de natureza mais geral sobre a sociedade que o produziu ou usou os artefactos. Na base desta análise poderá ser estabelecida uma cronologia das construções técnicas ou dos traços do seu design. A quarta operação é a “Interpretação” e implica um focus na relação entre os todos os factos apreendidos sobre o artefacto e alguns aspectos-chave que se destacam no sistema de avaliação (Fleming, 1974, p. 158).

Em 1982, os contributos de J. Prown91, e mais tarde de R. Elliot (1985)92 permitiram desenvolver um método que envolveu a definição de “material”, de “construção”, de “função”, “proveniência” e “valor” desenvolvendo a ideia de que o valor dos artefactos pode ser interpretado de forma diferente consoante o observador. Nesta linha de trabalho, também, Susan M. Pearce propõe no seu trabalho, Museusm Objects and Collections: a cultural study, uma análise crítica sobre a evolução dos vários modelos de análise que foram sendo desenvolvidos nas décadas de 1989/90 e apresenta um modelo assente nas disciplinas da arqueologia e da antropologia. Tal como Fleming começa pela premissa dos objectos e na descrição das suas características básicas: “Material”, segue-se a “História”; depois a análise do seu lugar no meio “Ambiente” e o seu significado “Cultural” (Pearce, 1992, p. 273). Esta autora aponta oito passos distintos na sua análise: 1 Material (construction); 2 Material (design); 3 Material (characterization) 4 History; 5 Environment, (context); 6 Environement (location); 7 Significance; 8 Interpretation. Esta é uma proposta mais subdividida e detalhada que termina com a interpretação do papel do artefacto na cadeia da organização social. (Pearce, 1992, p.270)93.

Os trabalhos desenvolvidos na História da Ciência nos anos de 1990, nomeadamente, através de Helden e Hankins (1994), David Kingery (1996), Heloísa Barbury (1995) e, mais tarde, com J. A. Bennet (2005), Lorraine Daston (2005) e Samuel Alberti (2005), que já

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Prown, J. (1982). Mind in Matter: An Introduction to Material Culture Theory and Method. In Winterthur Portfolio 17, 1: 1-19.

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Elliot, R. et al (1985). Towards a Material History Methodology. Material History Bulletin 22, Fall:31-40. 93

referimos anteriormente, permitiram uma nova visão crítica do instrumento e da cultura material, realizando uma análise biográfica dos objectos e integrando-a numa biografia cultural. Mais recentemente Marta Lourenço Samuel Gessner (2012) apresentaram uma nova proposta tendo em consideração as reflexões e experiências práticas resultantes de um programa de colaboração entre a Universidade Lisboa o Museu de Ciência e História Natural e o CIUHCT – Centro Interuniversitário da História das Ciências e da Tecnologia. A análise incidiu sobre os objectos de ciência e como estes se transformam em objectos museológicos no interior do Museu transmitindo informações preciosas para a história da ciência, ou seja, sendo fontes importantes no processo historiográfico e ampliando os horizontes da produção de Ciência.

A palavra-chave deste processo é como nos refere os autores “documentation does not refer exclusively to archives or manuscripts – it is more process than content.” (Lourenço & Gessner, 2012, p. 730).

Partilhamos deste enuciado e ainda da ideia, veiculada que é no museu que encontramos “the ‘Big Picture” about “objects lives” (Lourenço & Gessner, 2012, p. 730) e para este processo devemos congregar, ativamente, todas as fontes (documentais, materiais, bibliográficas, orais, tangíveis e intangíveis) associadas ao objecto. O museu é também o responsável pela preservação destas fontes e pela sua relação com os objetos, assim, como torná-las acessíveis para serem estudadas por outros.

A compilação de informação pode e deve ser feita ao longo da vida do objeto, nomeadamente, no interior do museu, mas o momento da recolha do objecto é crucial para o seu reconhecimento como bem cultural, como objeto museológico, ou seja, para o seu processo de patrimonialização, já referido no ponto anterior. Esta recolha permite valorizar as “outras vidas” do objecto antes deste entrar no museu.

Samuel Gessner constroe a sua proposta para os objectos de ciência e refere que esta análise tem 3 fases (stages) distintas. O primeiro stage (fase) pode ser designado “regular use”’ ou seja a primeira utilização, aquela a que ele se destinava, podendo operar na universidade, no laboratório, no hospital, na escola. Segue-se a ‘fase II’ que se inicia quando um dado instrumento é considerado obsoleto e substituído por outro mais moderno e com uma melhor performance. Esta fase é denominada de “limbo” durante a qual várias coisas podem acontecer. Por exemplo, pode-lhe ser atribuída uma nova capacidade ou competência ao objeto ou pode voltar para a ‘fase I’. O objeto nesta fase pode ser dividido e podem ser usadas diferentes partes ou componentes do objeto; pode, ainda, ser colocado noutro gabinete ou laboratório e ficar lá meio esquecido. Chegados à última ‘fase III’ designada de

“eliminação”, ou seja o objeto foi considerado inútil e fisicamente removido do seu local para um armazém, por exemplo. O seu último destino é o lixo ou, mas por uma ação de reconhecimento do seu valor ou singularidade pode entrar na colecção de um museu.

Este processo, em três fases pode ser muito mais complexo e as dinâmicas muito diferentes. Um instrumento pode estar na ‘fase II’ e até na ‘fase III’ e voltar à ‘fase I’, ou passar diretamente da ‘fase I’ para a ‘fase III’ (Lourenço & Gessner, 2012, p. 730).

Na proposta de Gessner são identificadas várias questões às quais se pretende dar resposta: onde, porquê, o quê, e como? E estes desenvolvem um quadro de questões que pretendem descrever os “aspetos físicos” (physical details) do objeto, seguindo a análise dos “propósitos e objetivos do objecto” (Purpose). Segue-se uma terceira etapa dedicada aos “usos e desenvolvimentos” (Use and development), e ainda “outros instrumentos envolvidos” (Instruments)”, terminando com “pessoas e outras instituições envolvidas” (People and Institutions), (Lourenço & Gessner, 2012, p. 742).

Um outro nível de análise corresponde à sua caracterização ao nível externo dos objetos, ou seja analisar o impacto de determinado evento ou acontecimentos na vida do objeto e que lhe alteraram a sua fisionomia, ou o local de uso e os autores apontam como exemplo um terramoto que destrói o local onde o gabinete estava instalado e com ele o desaparecimento do seu acervo. Estes momentos são denominados pelos autores de ‘critical points’ e devem ser documentados. Determinar e analisar estes fatores externos, traçar o percurso do objeto e encontrar nos arquivos documentação associada com esses momentos e como eles interferiram na vida do instrumento/objeto é o objetivo desta abordagem.

Apresentamos de seguida a organização das questões, método e fontes seguidas no modelo desenvolvido:

Tabela I – Grelha de análise proposta para o estudo dos objetos de ciência

Organization of questions, methods and sources according to the model

Views Questions Methods Sources

Synchronic View

Material Condition of the Instruments

Examination by all senses (visual, tactile, manipulation (re- enacting the historical

experiments, CT-Scan…) Disassembling, measuring (size, weight, focal length, etc.) Comparing.

Micro-observation e.g. with magnifying lens.

Material analysis: (X-ray, fluorescence

The singular instrument and associates existing instruments. Present state of the art,

Literature about physical reality, biological phenomena,

Mathematical properties

Diachronic View

Questions about the instrument past, from their pre-history to yesterday

Histographical methods, particularly reconstitution of past stages (I, II and III).

Historical experiments.

Historical Sources

The instruments, archival material and literature documenting the instruments pre-and post-museum lives

Historical accounts of the objects , descriptions , explanations , interpretations given by past actors

Singular aspects

Questions about aspects that are specific to and singular in the one instrument und scrutiny

Connoisseurship.

Microstoria. Local History of science

The one instrument under study and all documents linked to its trajectory and provenance

Generic aspects

Questions about aspects the given instruments shares with equivalent or similar instruments (e.g. contemporary ones of the same type, or other instruments by the same maker)

Theorical explanations of scientific, historical cultural phenomena. Re-enacting the historical experiments with replica instruments. Statistical methods.

History of science:

evaluation of the cognitive and cultural role of this type of scientific instruments.

The universe of all associated instruments (same type, same maker, geographic origin, same time, period). Extant in world collection.

All documents related to this type of instruments (treatises, manuals, trade catalogues, etc)

Fonte: Lourenço & Gessner (2012). Documenting Collections: Cornerstone for More History of Science in Museums (table 2), Sci & Educ, 23, 727-745.

Este modelo pretende ser uma guia exploratório para interpretar os objetos e as suas diferentes fases e implica um trabalho envolvendo equipas multi/interdisciplinares, desenvolvendo-se através de uma rede de perguntas e identificando uma rede de fontes e bibliografia (Lourenço & Gessner, 2012, p. 734).

Esta proposta, que incorporou os contributos de McClung Fleming e Susan Pearce, constitui uma “Toolkit”, integrando três níveis de análise. O primeiro a diversidade de materiais, as suas estéticas e funcionalidades, o seu fabrico, proveniência, mudanças de proprietário, aspetos simbólicos e significados atuais. Um segundo nível relacionado com o tipo de coleção, os seus objetivos e fronteiras, incorporação e dispersão, localização física e definição da coleção e, finalmente, um terceiro nível, dedicado à validação e interpretação da informação recolhida, encontrada nos arquivos, iconografia e bibliografia, etc.. (Lourenço & Gessner, 2012, p. 741).

Após a apresentação dos diferentes modelos, iremos, no capítulo IV desta tese seguir este último modelo explorando e cruzando com os conceitos de “contextos de significação” apresentados por Jacques Mathieu. Deste modo, testaremos a aplicação desta metodologia diretamente a um artefacto técnico-industrial: o motor Eléctrico ASEA.

Para enquadrar o nosso estudo de caso, necessitamos de realizar, uma reflexão sobre a criação dos museus da indústria em Portugal94, a sua diversidade e localização e, como no seio destes movimentos, nasceu, no Porto – cidade com um passado industrial – o projeto do Museu da Indústria do Porto, que permitiu a constituição de uma coleção de património industrial, composta de objetos técnico-industriais, o que apresentaremos no próximo capítulo.

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Consideramos como Museus Industriais os museus que se dedicam a estudar, conservar e divulgar o património industrial móvel e imóvel.

CAPÍTULO III. REPRESENTAÇÕES DO PATRIMÓNIO INDUSTRIAL DO