• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO II. OS OBJETOS-ARTEFACTOS TÉCNICO-INDUSTRIAIS: IDENTIFICAÇÃO E MÉTODOS DE ANÁLISE

3. Leituras dos objetos técnico-industriais

A arqueologia industrial veio colocar num plano de relevo os equipamentos, maquinismos e instrumentos técnicos e industriais ao considerá-los como valores patrimoniais e como fontes históricas, como já referimos anteriormente. Elegeram a fábrica como monumento por excelência da revolução industrial, como objeto central dos seus estudos, caracterizando a sua arquitetura e funcionalidade, investigando o conjunto de técnicas, os maquinismos, os processos de fabrico, e ainda as relações laborais e sociais, as vivências, aspetos sem os quais não se entenderia com rigor a dimensão social e cultural dos edifícios fabris, a sua organização, nem as outras infraestruturas ligadas com a civilização industrial. Nesta linha de pensamento são importantes as políticas de desenvolvimento industrial, os contextos socioeconómicos locais e regionais onde a fábrica (o sector industrial) se instala, a seleção de um determinado território e as relações de dependência com os recursos naturais existentes, as infraestruturas para a criação de circuitos comerciais, a importação de tecnologia, entre outros aspetos.

Elegemos, nesta tese, os objetos técnico-industriais como o objeto do nosso estudo, pois consideramos que eles transportam-nos para os processos de industrialização, para as etapas tecnológicas que marcaram o desenvolvimento das sociedades nos últimos dois séculos, para os diagramas de produção, mas também para a relação entre o homem e a máquina, para os contextos laborais, sociais e culturais, para a relação entre a natureza e a tecnologia, esta última criada pelo homem a fim de alterar a natureza.

Os objetos industriais assumem um papel singular na cadeia das representações sociais e técnicas de uma determinada região, na história dos processos de industrialização, na

recorremos à introdução das técnicas e máquinas de soldadura na indústria de conservas que vieram a desencadear processos de ascensão social (Valente, 1981).81 Hoje, uma lata de conservas fabricada em folha-de-flandres estampada encerra muitos outros processos e histórias, mas está associada à história dos soldadores e do seu estatuto no interior da indústria conserveira. A simples lata em folha-de-flandres, remete-nos para as cadeias sociais do trabalho no interior da fábrica, para as regras da indústria alimentar, para as diferentes máquinas utilizadas na soldadura e para a renovação tecnológica. Séculos mais tarde, estudar a sua introdução, a sua função, o seu envelhecimento e a sua transformação em objetos de valor simbólico é traçar os percursos dos homens e das mulheres que as produziram, das fábricas que se ergueram nas cidades, os circuitos comerciais dos produtos e a circulação de saberes e técnicas, é entender o que os une e o que separa regiões com industrias semelhantes (ex: a indústria conserveira em Matosinhos e em Setúbal). É, sobretudo, olhar os objetos como elementos que nos possibilitam fabricar as nossas próprias identidades. Esta visão é particularmente importante para esta tese, uma vez que desejamos compreender os caminhos da valorização da cultura técnico-industrial e para tal, no capítulo IV, traçaremos o percurso de um objeto técnico-industrial propondo uma metodologia de análise, recenseada da literatura existente.

Na década de 1960, como já foi referido, a arqueologia industrial colocou em evidência esta cultura material, estudando edifícios, pontes, moinhos, etc., não só, sob o ponto de vista técnico, mas também, e mais recentemente, procurando através deles compreender os valores socais, as populações urbanas, a transmissão de saberes e de tecnologias. Foi a arqueologia industrial que valorizou o edifício fabril, as suas máquinas e as vivências no interior dela. Foi, no âmbito dos seus estudos que foi valorizada a história oral, através dos registos dos operários ao descreverem a sua máquina, ou o empresário referindo as suas opções administrativas, as decisões dos fundadores sobre as aquisições de maquinaria ou as formas de recrutar o seu pessoal. A estes associam-se outras fontes essenciais como escrituras notariais, processos de licenciamento, atribuição de alvarás, arquivos empresariais, nomeadamente, a correspondência trocada com fornecedores, importadores, clientes, faturas e recibos, livros de registos, copiadores e ainda, documentação fotográfica, antigos filmes, folhetos publicitários, anúncios… Elementos, que fazem hoje parte do universo de fontes e testemunhos das sociedades industriais e dos seus protagonistas: suporte essencial para a historiografia e para a museologia.

81

Por exemplo “ (…) os soldadores de Setúbal aprenderam a sua arte com os soldadores franceses importada de Nantes (…) só eles gozavam de um estatuto próximo do de um a trabalhador permanente.” (Valente, 1981,p. 627).

O contributo do arqueólogo industrial é tanto mais relevante num processo analítico e crítico da cultura material das sociedades industriais, quanto maior for a sua capacidade de lançar uma nova abordagem e levantar novas questões. Nesta linha, James Symonds chama atenção para o contributo dos estudos locais e regionais para o conhecimento de práticas, processos de assimilação e transferência de tecnologias (Symonds, 2004, p. 46). Estes estudos podem fornecer um sentimento de apropriação da sua identidade, de reforço positivo junto das comunidades, ao valorizar suas narrativas e ao destacar as suas capacidades técnicas, as suas habilidades, a resiliência das populações antigas, bem como, abordar questões tão sensíveis como a inclusão social ou as redes de solidariedades nas comunidades operárias.

Os arqueólogos industriais e os historiadores da indústria de uma forma geral estão de acordo quando referem ser indispensável uma visão global do património industrial, que englobe edifícios, máquinas, saber-fazer, produtos, imagens, não separando os locais (sítios) estudados do seu meio de origem. Mas para que estes processos sejam bem sucedidos é necessário a integração dos vestígios da indústria na história da industrialização, assim como alargar dos horizontes e dos locais da pesquisa, conjugados com mecanismos de observação que atualizem os dados do território. As abordagens devem caminhar para serem cada vez mais abrangentes, devem ser trans e interdisciplinares, introduzindo as novas noções de fontes e reconhecendo o seu contributo na compreensão dos diferentes fenómenos nesta sociedade em acelerada transformação. No interior da “Arqueologia Industrial” alguns autores avançam mesmo com a denominada “Arqueologia da Produção”, conceito que integra “las arquitecturas del trabajo, las máquinas, los grupos sociales, los modos de producción, los regímenes de propriedad y las mentalidades, se insertan en un territorio concreto, el cual passado el tiempo, adquire una resonancia histórico-espacial (…)” (Sobrino, 2013, p. 8). Os novos trilhos da investigação devem, pois, alargar os seus enquadramentos, propor novos pontos de partida, procuras cruzar diferentes abordagens de estudo e nesta linha, comungámos das reflexões mais recentes que referem que,

(…) the major challenge that faces the archeology of industrial periods in future years is the need to move beyond the documentation of machines and the history of technology to create stories that highlight the individual and the collective social experience of industrial worlds. (Cassella & Symonds, 2004, p. 53).

François Sigaut, ao escrever sobre o valor dos ecomuseus e dos museus destaca a importância dos instrumentos do quotidiano, mas também os objetos da cultura técnica e refere,

Nos objets font partie intégrante de nos sociétés, ils nous distinguent, ils nous identifient (…) et sans les objets qui sont à la fois les moyens et les produits de son art, l’homme est aussi peu homme que l’araignée sans sa toile, le rossignol sans son chant, le castor sans sa cabane ou son terrier (Sigaut, 1992, p. 39).

A sua abordagem é muito clara, a cultura material é a expressão do homem e aponta que a estética não é o único valor suscetível de ser sacralizado, também o é a performance, o progresso, a modernidade, entre outros aspetos que podem ser valorizados. A cultura técnica deve sair dos seus limites e como refere Sigaut “l´esthétique n’est pas la seule valeur susceptible d’être sacralisée”. (Sigaut, 1992, p. 52)

É sempre mais fácil celebrar os avanços da ciência ou das técnicas de ponta do que propor a sua compreensão crítica e os seu impactos sociais e culturais, que apesar de serem pertinentes, exigem um esforço considerável de reflexão e pesquisa. Se de facto reduzirmos a técnica aos seus aspetos utilitários não haverá cultura técnica possível no sentido profissional do termo. Das bordadeiras, aos condutores de máquinas, ao varredor, ao engenheiro, ao marinheiro, às secretarias, aos ciclistas, ao informático, ao cirurgião, ao servente…, esta cultura, ou melhor, estas culturas porque são diferentes umas das outras, comunicam pouco umas com as outras, mas são elas que interessam aos etnólogos, aos arqueólogos das sociedades industriais e é sobre elas que repousa o funcionamento da nossa sociedade. (ibidem).

Jean Paul Goux na sua abordagem sobre “Toutes choses sont tuées deux fois” enuncia as abordagens possíveis que os objetos podem ter, as múltiplas questões que se levantam aos estudiosos da cultura técnica, referindo as incontáveis questões que se colocam ao arqueólogo industrial, ao etnólogo, ao antropólogo, ao historiador, uma vez que eles partilham todos desta visão global do Homem do século XXI e aponta,

Innombrables usines et innombrables ateliers où les histoires sont toutes différents et particulières, innombrables fabrications, innombrables métiers, innombrables savoir-faire, innombrables cités et innombrables histoires, toutes différents et singulières. (…) A quoi devais-je m’intéresser? A l’histoire des usines? (…) Celle des capitaux ou celle des techniques? Celle de l’organisation du travail ou celle des procédés de fabrication? (…) Celles de luttes sociales? Celles des institutions qui les médiatisent? Celle des comités d’entreprise et celle des syndicats? Et quelle usine? Celles des produits ou celle des hommes? Celle des fabrications ou celle des bâtiments, avec leur implantation, leur aménagement, leur évolution? A l’histoire des hommes au travail ou à l’histoire des hommes en dehors du travail? A l’histoire des cités et à l’histoire de chacune d’elles ou à l’histoire des hommes qui les habitent et à chacune des histoires de chacun de ceux qui les occupèrent? (Goux, 1992, p. 102).

Os estudos sobre o património técnico-industrial, em especial, o móvel, não têm sido fomentados e são poucas as reflexões produzidas até hoje, como já mencionámos. Nos

últimos anos, têm, no entanto, surgido trabalhos que procuram explorar a ideia de “Making

History Through Objects, valorizando assim a cultura material enquanto fonte histórica, os

seus campos de significação e a sua representatividade. Resgatando estas abordagens procuraremos aplicá-las à cultura material das sociedades industriais, realizando um conjunto de reflexões em torno dos artefactos, transformados em objetos museológicos e sobre os métodos de análise das sociedades industriais, não dispensando uma análise das relações entre as técnicas, os seus saberes, os seus protagonistas, os seus impactos sociais culturais, urbanísticos e, neste sentido, salientamos a pergunta de Marc Bloch (2001) “Se aceptará que le historiador de una época en la que la reina la máquina ignore como se constituyen y modifican las máquinas?”(ibidem, p. 89).

Defendemos que o património técnico-industrial contribui para a história “global e total” que temos vindo a apontar ao longo deste capítulo. Os objetos da nossa cultura técnico- industrial são representações técnicas e sociais e definem-se por integrarem o universo dos objetos que foram utilizados por fábricas, laboratórios, escolas técnicas, universidades. Eles encerram em si “o estudo dos processos técnicos e estabelecem relações com o desenvolvimento da civilização” (Lourenço & Granato, 2011, p. 89). A tecnologia humana implica uma dinâmica entre o homem e a sua capacidade de gerar técnicas, a sua invenção é um processo dinâmico, criando e recriando sempre novos dispositivos e esta “tendência técnica exprime-se plenamente a partir da época industrial e confere aos objetos técnicos uma histoiricidade” (Havelange & Lenay & Stewart, 2003, p. 122). Os objectos técnico-industriais não são apenas objetos materiais e a sua dimensão “técnica” implica a existência de uma relação entre sujeito e objeto e visa uma intencionalidade, uma complementaridade entre técnicas e usos assim como, uma mudança das funções do individuo no tempo e no espaço. A musealização destes objetos implica, muitas vezes, a sua retirada do contexto original, e para que estes sejam expostos e apresentados numa exposição ao público, necessitamos de ter um conhecimento profundo dos contextos e representações que ele transporta consigo.

Em suma, salientamos que os objetos técnico-industriais encerram, em si, um conjunto de informações, que os fazem ascender a fonte histórica no âmbito dos estudos sobre a história da técnica e da indústria, registando-se uma atenção crescente do seu papel para o conhecimento das sociedades industriais, uma vez que eles podem assumir a dimensão de lugares de memória e de identidade. Estes objetos permitem-nos caracterizar o seu produtor e operador, as relações sociais de dominação e as hierarquias estabelecidas. Ao arqueólogo industrial, ao estudioso do património industrial cabe a responsabilidade de estudar a cultura material das sociedades industriais e destacar os seus contextos e representações. As

abordagens sobre cultura técnico-industrial são diversas e estão longe de terem sido devidamente aprofundadas, existindo um longo caminho a percorrer e, no âmbito desta tese, propomos-nos demonstrar um dos muitos caminhos.