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A defesa da vida humana e a jurisdição brasileira

3.2 O princípio de defesa da vida em caso de anencefalia fetal

3.2.3 A defesa da vida humana e a jurisdição brasileira

A legislação mais antiga a respeito do aborto provocado é a babilônica, que chegou aos tempos atuais por meio do famoso código de Hamurábi, do século II a.C.: “Se alguém ferir a filha de um nobre e fazê-la abortar, pagará 10 siclos de prata pelo feto perdido. Se esta mulher morrer, seja morta a filha do culpado.”452

Procurando partir do próprio documento pontifício em que este estudo está alicerçado, a Evangelium Vitae diz o seguinte sobre a função da lei civil:

Deve assegurar a todos os membros da sociedade o respeito de alguns direitos fundamentais, que pertencem por natureza à pessoa e que qualquer lei positiva tem de reconhecer e garantir. Primeiro e fundamental entre eles é o inviolável direito à vida de todo ser humano inocente.453

Esse mesmo ensinamento aparece claramente em São Tomás de Aquino quando diz que a lei humana só tem legitimidade enquanto está em conformidade com a reta razão como fruto, portanto, da lei eterna. Caso tal lei contrarie a razão humana ela é considerada lei iníqua, e nesse sentido, não tem valor nenhum, pois se torna um ato de violência contra o próprio ser humano: “A lei divina e a razão natural excluem, portanto, todo o direito de matar diretamente um homem inocente.”454 A autenticidade da lei civil consiste na medida em que

deriva da lei natural, caso contrário, a lei civil não pode ser considerada lei, mas corrupção da lei455, uma vez que, “as leis que legitimam a eliminação direta de seres humanos inocentes, por meio do aborto e da eutanásia, estão em contradição total e insanável com o direito inviolável à vida, próprio de todos os homens, e negam a igualdade de todos perante a lei.”456

A Igreja sempre orientou os seus fiéis católicos à obediência com relação às autoridades públicas legitimamente constituídas (cf. Rm 13,1-7; 1 Pd 2,13-14), no entanto, a obediência deve consistir em primeiro lugar a Deus do que aos homens (cf. At 5,29).

Os cristãos, como todos os homens de boa vontade, são chamados, sob grave dever de consciência, a não prestar a sua colaboração formal em ações que,       

451 Idem, 57.

452 SPINSANTI, Sandro. Ética Biomédica. São Paulo: Paulinas, 1990, p. 64. 453 EV 71.

454 Cf. CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ. Declaração sobre o aborto provocado, n. 14. In: DOCUMENTA. Documentos publicados desde o Concílio Vaticano II até nossos dias (1965-2010). 1ª edição, Brasília: Edições CNBB, 2011.

455 Idem, n. 21. 456 EV 71.

apesar de admitidas pela legislação civil, estão em contraste com a lei de Deus. Na verdade, do ponto de vista moral, nunca é lícito cooperar formalmente no mal.457

Dentro dessa busca por uma definição de lei civil, faz parte de sua função assegurar o bem comum de seus cidadãos. No entanto, a compreensão de “bem comum” não consiste no bem da maioria de uma população, mas em procurar as condições necessárias, para que todas as pessoas possam realizar o próprio ser e a própria vida. Nesse sentido, a lei não constitui a ética nem impõe uma ética própria, mas deve ser capaz de criar as condições para a realização do ser humano. Portanto, a lei não coincide com a ética, de modo a impedir sempre o mal uso das liberdades pessoais, mas deve proporcionar condições objetivas para a ética de cada um visando a realização de cada uma das pessoas.458

Ora, entre as condições essenciais e objetivas que a lei deve garantir para o bem das pessoas e para o bem comum (garantia de constitucionalidade e de legitimidade), sem dúvida devem ser consideradas estas duas condições objetivas: 1. A lei deve defender a vida de todos, especialmente dos mais indefesos e dos inocentes. Se não cria essa condição, a de viver, não é mais lei se torna iníqua: deve ser combatida com todos os meios legítimos por parte de todos e em nome de quem não pode se defender; 2. A lei não pode impor a ninguém tirar a vida de outras pessoas, exceto por legítima defesa contra o injusto agressor; e muito menos pode pedir ao médico que ofereça seus serviços para matar; o médico, por profissão, não é chamado a fazer isso.459

O Estado precisa assumir, cada vez mais conscientemente, a sua função de salvaguardar os direitos de cada cidadão, especialmente a de proteger os mais fracos. Para isso, faz-se necessário procurar realizar uma reforma da sociedade, bem como das condições de vida em todos os ambientes no intuito de oferecer ajuda às famílias, às mães solteiras, às crianças recém-nascidas como também de buscar uma regulamentação mais conveniente da adoção como uma alternativa positiva ao invés de facilitar o aborto como solução diante de

      

457 “Em todo caso, deve ficar claro que um cristão não pode jamais submeter-se a uma lei intrinsecamente imoral; e esse é o caso daquela que admitisse, em princípio, a licitude do aborto. Ele não pode participar numa campanha de opinião em favor de uma lei de tal gênero, nem dar-lhe a própria adesão, dar-lhe seu voto ou colaborar em sua aplicação. É inadmissível, por exemplo, que médicos ou enfermeiros se vejam obrigados a cooperar, de maneira próxima, em abortos e de ter que escolher entre lei cristã e a sua situação profissional.” EV 74. Também se pode verificar no documento Declaração sobre o aborto provocado, n. 22.

458 Cf. SGRECCIA, Elio. Manual de Bioética. Fundamentos e ética biomédica, vol. I. 2ª Ed., São Paulo: Loyola, 2002, p. 379.

uma gravidez indesejada. Não compete à sociedade tampouco à autoridade pública reconhecer o direito à vida para alguns e para outros não, o que seria qualificado como discriminação.460

Uma discriminação fundada sobre os diversos períodos da vida não se justifica mais do que qualquer outra. O direito à vida permanece íntegro em um ancião, mesmo que este se ache muito debilitado; um doente incurável não o perdeu. Não é menos legítimo numa criança que acaba de nascer do que um homem maduro. Na realidade, o respeito pela vida humana impõe-se desde o momento em que começou o progresso da geração. Desde a fecundação do óvulo, encontra-se inaugurada uma vida, que não é nem a do pai, nem a da mãe, mas a de um novo ser humano, que se desenvolve por si mesmo. Ele não virá jamais a tornar-se humano, se o não for desde já então.461

A Constituição Federal Brasileira, precisamente no artigo 1º, inciso III, diz que a República Federativa do Brasil é um Estado democrático de direito, e que, “a dignidade do ser humano”, está entre os seus fundamentos principais. Nesse sentido, o valor da dignidade da pessoa humana, como algo integrado a própria natureza do homem, se estende a todos igualmente. É necessário salientar, que, esse respeito à dignidade da pessoa, além de ser um dos fundamentos da Constituição Federal, também está presente nos objetivos fundamentais da República, que consiste em construir uma sociedade livre, justa e solidária e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.462

Não há como se considerar solidária uma sociedade que, ao invés de amparar a família e a gestante, apresenta como pseudo-solução para os problemas sociais e pessoais o assassinato ‘seguro’ de meninas e meninos no seio de suas mães. Isso, custeado com o dinheiro resultante do trabalho e esforço de toda a sociedade, que é o dinheiro público, ou então mediante financiamento internacional (...). E, além disso, também o expresso Texto Constitucional, que não admite preconceito de idade (o nascituro, ou seja, aquele que já foi concebido e tem existência atual e concreta e uma idade própria, anterior ao nascimento e terá outra, após o nascimento – esta última não pode existir

      

460 Cf. CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ. Declaração sobre o aborto provocado, nn. 11, 21 e 23. In: DOCUMENTA. Documentos publicados desde o Concílio Vaticano II até nossos dias (1965-2010). 461 Idem, n. 12.

462 Cf. CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA. Brasília: Centro Gráfico do Senado Federal, art. 3º, inciso I e inciso IV.

sem aquela primeira), nem quaisquer outras formas de discriminação (vide artigo 3º, inciso IV, da Constituição).463

Em se tratando dos casos de anencefalia fetal, atualmente a legislação brasileira não permite o abortamento para tal anomalia, no entanto, a discussão se faz latente no meio dos profissionais da saúde se a interrupção é ou não um ato benéfico para a gestante que se encontra nessa situação. Essa mesma discussão também se faz presente no judiciário, para que as possibilidades legais sejam garantidas caso seja admitido o aborto.

O ponto crucial em que a humanidade vive atualmente, precisamente o Estado brasileiro sobre a questão do embrião humano tem a sua origem também na reflexão ética das técnicas de fecundação artificial in vitro: “Do ponto de vista técnico, com efeito, essa técnica torna possível uma produção largamente discriminatória de embriões.”464 E tal produção discriminatória

levou à reflexão jurídica acerca do estatuto do embrião humano, visto que, esta técnica provocou uma situação totalmente nova, ou seja, o não-desenvolvimento e, portanto, a morte de embriões controlados pelo próprio ser humano.

Em torno desta reflexão, é imprescindível buscar apoio interdisciplinar na embriologia, na filosofia, na teologia, na ética e na jurisdição, pois “são as ciências humanas que dirão qual é a dignidade do embrião e os seus conseqüentes direitos.”465

Como já se viu no segundo capítulo dessa dissertação - 2.1.2. “Aspectos jurídicos do aborto no Brasil – de acordo com o Código Penal de 1940, art. 128, incorre em caso de impunibilidade o aborto apenas quando praticado por médico no intuito de salvar a vida da gestante e no caso de estupro. Porém, tal legislação poderá ampliar os casos de aborto incluindo os de anencefalia fetal, visto que existem projetos, como também já vimos anteriormente, tramitando atualmente no Congresso Nacional visando tal aprovação. No entanto, não se pode perder de foco, que um dos fundamentos da República é a promoção e a defesa da dignidade da pessoa humana, conforme se verifica na Constituição Federal Brasileira de 1988, conforme supracitada.

No art. 5º a inviolabilidade do direito à vida é o primeiro de todos os direitos, sobre o qual todos os outros direitos são construídos: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade       

463 LUIZ DE PAULA RAMOS, Dalton. Bioética Pessoa e Vida. 1ª edição, São Caetano do Sul-SP: Ed. Difusão, 2009, p. 224.

464 EUSEBI, Luciano. “Proteção ao embrião humano: perfis jurídicos.” In: DE DIOS VIAL CORREA, Juan e SGRECCIA, Elio. Identidade e Estatuto do Embrião Humano. Atas da Terceira Assembleia da Pontifícia Academia para a Vida. Bauru-SP: Editora da Universidade do Sagrado Coração, 2007, p. 350.

465LUISA DI PIETRO, Maria. “Estatuto ontológico do embrião humano.” In: CINÀ, Giuseppe; LOCCI, Efísio; ROCHETTA, Carlo; SANDRIN, Luciano. Dicionário Interdisciplinar da Pastoral da Saúde. São Paulo: Paulus, 1999, p. 427.

do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.”466 É neste sentido, que a Evangelium Vitae insiste em defender a vida humana desde o momento da concepção: “O ser humano deve ser respeitado e tratado como uma pessoa desde a sua concepção e, por isso, desde esse mesmo momento, devem-lhe ser reconhecidos os direitos da pessoa, entre os quais e primeiro de todos, o direito inviolável de cada ser humano inocente à vida.”467

O aborto provocado em caso de estupro, a mãe, além de sofrer o mal do estupro, estaria se submetendo a um outro mal ou trauma: praticar injustiça contra o filho que também é seu e não somente do estuprador. Testemunhos de mães que foram violentadas e que resolveram continuar com a gestação e assumir seus filhos mostram que a violência sofrida não as impede de amá-los e estes se mostraram profundamente agradecidos a elas pelo amor demonstrado. No que diz respeito aos riscos de morte para a mãe durante a gestação, o que, por sua vez, é muito raro neste início do século XXI para a medicina devido ao grande avanço, resultando em recursos revertidos para tentar salvar, tanto a vida da mãe, quanto a do bebê, mesmo quando o parto tem que ser realizado precocemente. A morte do nascituro pode acontecer na tentativa de salvar a vida da mãe, mas não se deve admitir a intervenção intencional da vida de alguém para salvar outrem.468“A admissão do aborto, é a própria quebra do princípio da igualdade entre os seres humanos, que assim ficam divididos em duas ‘castas’: os não- nascidos e os já nascidos que passam a ter total poder de vida ou de morte sobre os primeiros.”469

Buscando resgatar na história a perspectiva jurídico-filosófica vale à pena citar no Título V, do Livro I, do Digesto470, “De statu hominum” (a condição dos homens), pode-se encontrar testemunhos que salvaguardavam o concebido “quo in útero est” (aquele que esta no útero), bem como princípios a respeito de sua proteção, o que só comprova que as malformações graves são conhecidas há milênios, e, no entanto, a estes eram assegurados a proteção jurídica devida a seres humanos.471

O respeitadíssimo jurista italiano Mássimo Vari, Vice-Presidente Emérito da Corte Constitucional Italiana, dizia em um artigo intitulado, “O Direito de Nascer”, publicado na

      

466BAPTISTA HERKENHOFF, João. Curso de Direitos Humanos. Aparecida-SP: Santuário, 2011, p. 121. 467 EV 60; DV 78-79.

468 Cf. LUIZ DE PAULA RAMOS, Dalton. Bioética Pessoa e Vida, p. 214. 469 Idem, p. 215.

470 “O Digesto, contendo sentenças dos jurisconsultos romanos, constitui um dos livros mandados compilar por Justiniano (482-565), imperador bizantino (527-565), e, juntamente com os dois Códigos, as Institutas e as Novelas, constitui o que veio a ser posteriormente denominado Corpus Iuris Civilis.” In: CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Instituto Nacional de Pastoral (org). A dignidade da Vida Humana e as Biotecnologias. Brasília: edições CNBB, 2006, p. 61.

471 SILVEIRA MARTINS LEÃO JUNIOR, Paulo. “A dignidade da vida humana e as biotecnologias, questões e perspectivas a partir do Direito.” In: CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Instituto Nacional de Pastoral (org). A dignidade da Vida Humana e as Biotecnologias, pp. 48-49.

Revista Ibero-Americana de Direito Público, editora América Jurídica, do ano de 2005, pp. 215-216:

O direito à esperada vida, portanto, tem sua base na concepção. Atacar este princípio traz conseqüências muito negativas para o conjunto da sociedade. Isto já sabiam os romanos, tanto é verdade que há mais de 20 séculos o concebido (conceptus o qui in utero est) ou o embrião, gozavam de uma ampla proteção por parte dos juristas romanos (prudentes), os quais anteviam o direito baseando-se em princípios (além das técnicas), enquanto hoje os ‘legisladores’ e juízes inserem sufocadamente as questões tecnológicas, e, muitas vezes, perdem de vista os princípios e o sistema.472

O direito à vida e a sua inviolabilidade desde o momento da concepção tem sido cada vez mais ameaçado por diversas situações em todo o mundo. E diante destas ameaças, a Igreja entende como sendo ainda mais urgente a sua missão de serviço à vida, que não deve ser apropriada arbitrariamente, mas acolhida por todos como dom a ser protegido e cuidado. Este é o caminho percorrido pela Igreja em todo o mundo e no Brasil: chamar as consciências para a reflexão ética e moral sobre os perigos que se levantam contra o ser humano e sua vida.