• Nenhum resultado encontrado

Em qualquer discussão que se pode fazer em torno do debate sobre o aborto existe sempre uma pergunta fundamental responsável em iluminar a reflexão sobre a eticidade da interrupção da gestação: “Quando começa a vida humana no desenvolvimento embrionário ou a partir de que momento existe um ser humano ou uma vida humana?”490

No intuito de introduzir essa nossa temática sobre a identidade do embrião humano gostaria de citar o Prof. Jean Bernard, um dos grandes cientistas e conhecedor da bioética, que em uma conferência contou e analisou um caso.

Um casal de americanos viaja para a Austrália com a intenção de realizarem a fecundação in vitro, já que este país se apresentava então mais avançado nesta área. Sendo a mulher de um grande milionário estéril, o casal se prepara para a reimplantação do embrião no útero materno; porém, antes mesmo dessa implantação, se vê diante de uma situação que o obriga, inesperadamente, a regressar ao país de origem. E uma surpresa acontece: o avião cai no oceano Pacífico provocando a morte de todos os passageiros.

O sobrinho herdeiro desse casal sem filhos logo se apressa em entrar em contato com o responsável australiano de fazer a reimplantação do embrião com estas seguintes ordens: “Destruí esses embriões. Eles são os verdadeiros herdeiros”.

Analisemos o imperativo: “destruí os embriões”! Esses são tratados como coisas ou objetos que podem ser descartados e atirados ao lixo, desde que não se quer implantá-los. Todavia, nos chama a atenção dentro da reflexão, o sentido da segunda frase, que por sua vez, justifica a razão do imperativo e, consequentemente, define o sentido e a identidade dos embriões: “eles são os verdadeiros herdeiros”! Então, esses embriões, que num primeiro momento foram tratados como coisas e objetos quaisquer, agora, num segundo momento, são considerados sujeitos de direito, que possuem uma identidade e um código único, dispondo em si mesmos de uma autonomia para se desenvolver, desde que esse itinerário seja respeitado.491

Assim, tendo em vista o objetivo de procurar definir a identidade e o estatuto do embrião humano, para que também suas conclusões éticas sejam reconhecidas e respeitadas, faz-se necessário, primeiramente, levar em consideração os conhecimentos fornecidos pelos

      

490 GAFO FERNÁNDEZ, Javier. 10 Palavras-Chave em Bioética. São Paulo: Paulinas, 2000, p. 47.

491 Cf. JOSAPHAT, Carlos. Ética Mundial. Esperança da Humanidade Globalizada. Petrópolis: Vozes, 2010, pp. 395-396.

dados científicos, expondo as diversas fases do começo do desenvolvimento embrionário e o que ocorre desde o momento da fecundação, a partir da formação do zigoto.

O primeiro dado incontestável, esclarecido pela genética, é o seguinte: no momento da fertilização, ou seja, da penetração do espermatozóide no óvulo, os dois gametas dos genitores formam uma nova entidade biológica, o zigoto, que carrega em si um novo projeto-programa individualizado, uma nova vida individual.492

Partindo desse dado fornecido pela própria ciência, pode-se afirmar, que existe uma relação de dependência entre o conhecimento que as ciências biológicas, sobretudo a genética e a embriologia fornecem e as conotações éticas ou os juízos morais que se pode emitir sobre o embrião humano, que, por sua vez, terão influências na formulação do status jurídico sobre o mesmo.

Quanto à pergunta sobre quando começa uma vida humana, nenhum cientista duvidaria em responder: no momento da fecundação, isto é, quando de duas realidades distintas, o óvulo e o espermatozóide, surge uma nova realidade, diferente, o zigoto, com uma informação genética própria e um poder gerador capaz de desenvolver um ser humano, contando com as condições meio-ambientais maternas adequadas.493

Portanto, neste momento da dissertação, serão desenvolvidas em primeiro lugar os aspectos biomédicos do desenvolvimento embrionário inicial, que por sua vez permitirão examinar a natureza ou a identidade própria do embrião humano, aquilo que também se pode chamar de estatuto do embrião, para que, num segundo momento, se possa fazer uma abordagem ético-teológica do mesmo: “A necessidade do estatuto ético do embrião humano baseia-se no ‘estatuto biológico’ e no ‘estatuto ontológico’.”494

Na realidade, porém, a partir do momento em que o óvulo é fecundado, inaugura-se uma nova vida que não é a do pai nem a da mãe, mas sim a de um novo ser humano que se desenvolve por conta própria. Nunca mais se tornaria humana, se não o fosse já desde então. A esta evidência de sempre (...) a ciência genética moderna fornece preciosas confirmações.495

A partir do momento em que o óvulo é fecundado imediatamente os dois subsistemas – os gametas, masculino e feminino – se integram iniciando um novo sistema, que tem duas

      

492 SGRECCIA, Elio. Manual de Bioética. Fundamentos e ética biomédica, vol. I. 2ª Ed., São Paulo: Loyola, 2002, p. 342.

493 VIDAL, Marciano. Ética Teológica: conceitos fundamentais. Petrópolis-RJ: Vozes, 1999, p. 402.

494 CIPRIANI, Giovanni. O Embrião Humano. Na fecundação, o marco da vida. São Paulo: Paulinas, 2007, p. 61.

características fundamentais: primeira, o novo sistema “começa a operar como uma nova unidade, intrinsecamente determinada a atingir sua forma específica terminal, se for postas todas as condições necessárias. Daí a clássica e ainda corrente terminologia de embrião unicelular.”496 A

segunda característica, “é que o centro biológico ou estrutura coordenadora dessa nova unidade é o genoma de que está dotado o embrião unicelular (...). É esse genoma que identifica o embrião unicelular como biologicamente humano e especifica sua individualidade.”497

São quatro pontos essenciais desta análise que a própria ciência genética oferece: 3.3.1. O primeiro apontamento refere-se ao zigoto: “o encontro de duas células especializadas, chamadas gametas, uma de origem materna (óvulo) e outra de origem paterna (espermatozóide)”498, que sofrendo o processo de singamia, ou seja, de fusão das duas células, dá origem a uma nova célula - o zigoto - origem de uma nova vida humana.

Este embrião unicelular inicia uma atividade como um novo sistema, como um ser vivente ontologicamente uno. E entre as muitas atividades coordenadas desta nova célula, durante um período de cerca de 20 a 25 horas, pode-se citar as mais importantes:

1) a organização do novo genoma, que representa o principal centro informativo e coordenador para o desenvolvimento do ser humano e de todas as suas ulteriores atividades; 2) o início do primeiro processo mitótico, que leva o embrião a duas células.499

Ainda falando sobre o zigoto, deve-se sublinhar dois aspectos principais: primeiramente, não é um ser anônimo, pois tem sua identidade determinada; e em segundo, esta nova célula é intrinsecamente orientada a um bem definido, formar um sujeito humano, com uma precisa forma corpórea, de modo que, tanto a identidade como a orientação, são essencialmente dependentes do genoma, que leva em si toda a informação genética do novo indivíduo. É exatamente esta informação, substancialmente invariável, que porta o embrião, que estabelece sua pertença à espécie humana.

As ciências biológicas fornecem dados que permitem afirmar que o zigoto é o ponto exato no qual um indivíduo humano inicia seu próprio ciclo vital.

3.3.2. O segundo ponto desta análise vai do zigoto ao blastocisto – a primeira etapa do desenvolvimento do zigoto:

Durante um período de mais ou menos cinco dias acontece uma rápida multiplicação celular, sob o controle de um grande número de genes implicados nos muitos eventos do ciclo mitótico e na produção de       

496 SGRECCIA, Elio. Op. cit., p. 343. 497 Ibidem.

498 VIDAL, Marciano. Op. cit., p. 402. 499 Lexicon, p. 192.

proteínas necessárias para a estrutura e as funções do crescente número de células.500

E dentro desse primeiro estágio de desenvolvimento do embrião é o novo genoma, já constituído no zigoto, quem assume o controle tornando-se a base e o suporte da unidade estrutural e funcional do mesmo.

Com justiça L. Wolpert, conhecido embriologista, notava que a verdadeira chave para compreender o desenvolvimento está na biologia celular, no processo de transferência dos sinais e no controle da expressão dos genes, que leva a modificações do estado da célula, movimento e crescimento.501

3.3.3. O terceiro ponto essencial desta análise segue-se do blastocisto ao disco embrionário – é a segunda etapa do desenvolvimento do embrião. É o estágio em que ocorre a expansão dos blastocistos e seu implante no útero, durante o qual mãe e embrião fazem de tudo para estabelecer uma harmonia.

Entre o décimo primeiro e o décimo terceiro dia da fecundação o disco embrionário atinge o diâmetro de aproximadamente dois décimos de milímetros e mais ou menos no décimo quarto dia, na região caudal aparece um grupo de células chamado estria primitiva indicando a formação de um terceiro estrato de células, o mesoderma dando início à morfogênese.502

3.3.4. O quarto apontamento da análise é a fase chamada de fetal levando em consideração o plano geral do corpo, em que ocorre a modelagem dos diferentes órgãos e tecidos, tendo como sequência a organogênese e a histogênese:

Na quinta semana de gestação, no embrião, com cerca de 1 cm de comprimento, já se esboça o cérebro primitivo, coração, pulmões, os tratos gastro-entérico e genito-urinário; na sexta semana já são claramente visíveis os esboços dos membros e, ao fim da sétima semana, a forma corpórea está completa.503

O grande embriologista C.H. Waddington chegou a uma reflexão não somente do ponto de vista descritivo, mas desenvolvida por meio de um aprofundamento lógico do processo biológico em que ele a definiu de “epigênese” ou “a contínua emergência de uma forma de etapas precedentes”, coloca em evidência três propriedades extremamente importantes: a coordenação, a continuidade e a graduação.504

       500 Idem, 193. 501 Ibidem. 502 Cf. idem, p. 194. 503 Lexicon, p.194. 504 Cf. idem, p. 195.

A primeira propriedade é a coordenação: “Em todo o processo da formação a partir do zigoto, há uma sucessão de atividades moleculares e celulares sob a guia da informação contida no genoma.”505 A presença do genoma no embrião humano, garantindo e exigindo uma rigorosa

unidade do ser em desenvolvimento, leva a uma conclusão que tal embrião, mesmo nos primeiros catorze dias não pode ser tratado como um acúmulo de células, visto que já é um indivíduo real a cada etapa num processo dinâmico e autônomo criando o seu próprio espaço como organismo.

O zigoto, a célula fundada, já tem em si todo o ser humano adulto programado. Ele não tem celebro, não pode pensar ou ter idéias. Mas pode criar um cérebro, seguindo leis e normas que estão no código vivo que é essa celulazinha menor que a cabeça de um alfinete.506

A segunda propriedade é a continuidade: “O zigoto é o primórdio do novo organismo, que está no verdadeiro início do seu próprio ciclo vital. Se considerarmos o perfil dinâmico desde ciclo no tempo, aparece claramente que isso procede sem interrupções.”507 Neste processo de

desenvolvimento não há nenhuma etapa mis importante que outra; todas são parte de um processo contínuo, de modo que, se cada etapa não se realiza normalmente no tempo e numa sequência, o desenvolvimento seguinte não será possível.

A terceira e a mais importante propriedade é a graduação508: “É uma lei intrínseca do processo de formação de um organismo pluricelular o fato de ele adquirir a sua forma final através da passagem de formas mais simples a formas cada vez mais complexas.”509É justamente a existência

dessa lei da gradualidade que manterá permanentemente a identidade e a individualidade do embrião humano através de todo o processo de desenvolvimento.

É precisamente por causa desta lei epigenética intrínseca, que está inscrita no genoma e começa a atuar desde o momento da fusão dos dois gametas, que cada embrião e, portanto, também o embrião humano, mantém permanentemente a própria identidade, individualidade e unicidade, permanecendo sem interrupção o mesmo indivíduo idêntico durante todo o processo de desenvolvimento, desde a singamia em diante, apesar da sempre crescente complexidade de sua totalidade.510

      

505 SGRECCIA, Elio. Manual de Bioética. Fundamentos e ética biomédica, vol. I. 2ª Ed., São Paulo: Loyola, 2002, p. 344.

506 JOSAPHAT, Carlos. Op. cit., p. 397. 507 Lexicon, p. 195.

508 Cf. idem, p. 196.

509 SGRECCIA, Elio. Op. cit., p. 344.

510 ÁNGEL FUENTES, Miguel. As Verdades Roubadas. 1ª edição em português, São Paulo: IVEPRESS, 2007, p. 173-174.

Em síntese, apoiados nesses dados científicos, pode-se dizer:

A rapidez do desenvolvimento e da organização é tal que no final da 8ª semana (...) a organização está terminada e o embrião possui, ainda que em miniatura, todas as estruturas características do homem, com um sexo bem definido, como são reconhecidos no final da gravidez.511

Recentemente foi introduzido uma nova nomenclatura embriológica, que depois foi se generalizando. A embriologista Ana McLaren e outros autores deram a sugestão de diferenciar o termo “pré-embrião” do de “embrião” propriamente dito. O “pré-embrião” ou embrião pré-implantatório consiste no período que vai da constituição do zigoto até o 14º dia da fecundação do óvulo coincidindo com a culminação da implantação na mucosa uterina. Tem a responsabilidade em definir as etapas sucessivas de divisão e organização celular do óvulo fecundado, até que ocorra a nidação no útero.

O termo “embrião” ou “embrião pós-implantatório” indica a fase que se desenvolve com a implantação estável na parede uterina iniciando por volta do 14º dia e culminando umas 8 ou 10 semanas depois, aproximadamente pelo terceiro mês, quando começa a fase fetal caracterizado por um progressivo amadurecimento dos órgãos e suas funções.512

Todavia, esta posição que faz distinção entre os termos citados acima, alguns chegam a considerá-la arbitrária e até mesmo uma estratégia jurídica com o intuito de manipular as palavras para polarizar a discussão ética e justificar uma possível legalização do aborto no período “pré-implante”: “Alguns tentam justificar o aborto, defendendo que o fruto da concepção, pelo menos até um certo número de dias, não pode ainda ser considerado uma vida humana pessoal.”513

Todavia, quais são as razões dessa discriminação dos primeiros 14 dias? Serão apontadas logo em seguida três razões, mas nenhuma delas se sustenta do ponto de vista racional:

Para alguns, não existe certeza de que o embrião humano possa prosseguir em seu desenvolvimento enquanto não tenha sido implantado no útero da mulher, visto que não está ainda sendo alimentado por ela. Mas assim como não é a alimentação que produz a criança, também não é a implantação no útero da mãe que faz do embrião um ser humano.

A implantação faz com que o embrião cresça e se desenvolva. Nos primeiros dias, o embrião se alimenta daquilo que encontra no óvulo       

511 Idem, p. 345.

512 Cf. VIDAL, Marciano. VIDAL, Marciano. Ética Teológica: conceitos fundamentais. Petrópolis-RJ: Vozes, 1999, p. 404.

fecundado, e depois de implantado é alimentado pelo corpo da mulher. Mas já está ativo, já existe.514

Para outros, até o 14º dia não se formaram os sinais do que será o cérebro, ou seja, não existem ainda os fios neurológicos. O cérebro do embrião se desenvolve não por causa do cérebro da mãe, mas por causa dos genes inerentes ao embrião desde o primeiro momento da fecundação. Neste sentido, o cérebro se desenvolve porque o embrião o faz desenvolver-se.

“Essa é uma visão racionalista da pessoa que, considerando a razão seu elemento constitutivo, sustenta ser indispensável detectar, no mínimo, a presença de condições neurofisiológicas que permitam seu desenvolvimento orgânico.”515

Outros ainda se apóiam no argumento de que o embrião pode se dividir em dois, depois da implantação no útero da mãe gerando a incerteza sobre sua identidade.

Mas, na ocorrência de gêmeos, a divisão do embrião não destrói o primeiro embrião; separando-se, algumas células se tornam um outro embrião. O primeiro embrião continua o mesmo e o segundo embrião segue em seu desenvolvimento. Temos, então, o dobro de motivos para defendê-los, pois são dois embriões.516

Alguns, ainda, chegaram a negar o valor de filho ao “neo-concebido”. À nova vida, recém-surgida na fusão dos gametas, era negado o nome de “filho” até o décimo quarto dia depois da concepção, visto que, antes desta data, devia ser considerado um acúmulo de células e não um ser humano.517

Os termos zigoto, pré-embrião, embrião e feto podem indicar, no vocabulário da biologia, estágios sucessivos do desenvolvimento de um ser humano. Entretanto, o ensinamento da Igreja atribui a eles uma relevância ética idêntica desde o primeiro momento de sua existência até o instante de seu nascimento.

O fruto da geração humana, desde o primeiro momento da sua existência, isto é, a partir da constituição do zigoto, exige o respeito incondicional que é moralmente devido ao ser humano na sua totalidade corporal e espiritual. O ser humano deve ser respeitado e tratado como pessoa desde a sua concepção e, por isso, desde esse mesmo momento devem lhe ser

      

514 MARCELO COELHO, Mário. O que a Igreja ensina sobre ... 4ª Edição, São Paulo: Canção Nova, 2008, p. 295.

515 PALAZZANI, Laura. “Os significados do conceito filosófico de pessoa e suas implicações no debate atual sobre o estatuto do embrião humano.” In: DE DIOS VIAL CORREA, Juan e SGRECCIA, Elio. Identidade e Estatuto do Embrião Humano. Atas da Terceira Assembleia da Pontifícia Academia para a Vida. Bauru-SP: Editora da Universidade do Sagrado Coração, 2007, pp. 104-105.

516 MARCELO COELHO, Mário, Op. cit., p. 296. 517 Cf. Lexicon, p. 191.

reconhecidos os direitos da pessoa, entre os quais e antes de tudo, o direito inviolável de cada ser humano inocente à vida.518

No intuito de elucidar o estatuto do embrião humano, a corporeidade é o ponto de partida para se afirmar que “o que é biológico no homem não pode ser separado do que é humano.”519É verdade que não se pode ver a forma desenvolvida da corporeidade humana no

zigoto, mas ele já traz em si o nascimento do corpo humano contendo todos os elementos essenciais que mais tarde aparecerão no corpo adulto. Desde o momento da concepção o corpo que pertence à espécie humana evolui por meio de um princípio intrínseco sem que o sujeito unitário desse desenvolvimento deixe de ser o mesmo.

O embrião humano não está certamente em condições de exercer as atividades tipicamente humanas, nem o feto ou o recém-nascido são capazes de se exprimir por meio das faculdades mentais; não se pode negar, contudo, que desde o momento da fecundação está constituída a capacidade real de ativar essas atividades superiores.520

J. Watson, que ganhou o Prêmio Nobel de Medicina, fez um cálculo afirmando que as células do corpo humano se renovam num ritmo de 0,5% ao dia. Como um corpo humano na sua fase adulta possui cerca de 60 bilhões de células, calcula-se que cerca de 300 milhões destas células se renovam diariamente. Neste sentido, pode-se concluir que o organismo é renovado quase inteiramente a cada sete meses. Seguindo este mesmo raciocínio, pode-se dizer com toda certeza, que, o corpo de hoje não é o mesmo de cinco anos atrás e que difere do corpo como criança, feto e embrião, porém era e sempre continuará a ser o mesmo “eu”.521

A corporeidade não pertence à esfera do ter, mas à do ser, de modo que o corpo não deve ser concebido como algo que se possui, mas se é o corpo. Ele não é apenas um modo de entrar numa relação com o mundo, mas é a condição indispensável da capacidade de habitar o mundo e viver a vida nele. Portanto, o corpo humano participa plenamente da realização do eu. Assim, a frase “o seu corpo é seu” esconde em si uma ideia equivocada: é exatamente porque “o seu corpo é você”, que ele não pode ser seu!

A corporeidade é a expressão de um ser humano uno e indiviso, de modo que a pessoa é constituída ao mesmo tempo de espírito e de corpo que se desenvolvem juntos, sem saltos

      

518 CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ. Instrução Dignitas Persone. Sobre algumas questões de Bioética, n. 4. In: DOCUMENTA. Documentos publicados desde o Concílio Vaticano II até nossos dias (1965- 2010). 1ª edição, Brasília: Edições CNBB, 2011. Daqui em diante segue-se DP; cf. DV I, 1.

519 LUCAS LUCAS, Ramón. “O estatuto antropológico do embrião humano.” In: DE DIOS VIAL CORREA, Juan e SGRECCIA, Elio. Identidade e Estatuto do Embrião Humano, p. 212.

520 SGRECCIA, Elio. Manual de Bioética. Fundamentos e ética biomédica, vol. I. 2ª Ed., São Paulo: Loyola, 2002, p. 124.

qualitativos. O corpo não é a prisão ou o receptáculo da alma, conforme uma concepção antiga que remonta ao dualismo antropológico de Platão (427-347).

A existência humana, tomada no homem concretamente existente e realizado, apresenta-se como corporeidade e espiritualidade ou como simples corporeidade? Essa é a primeira pergunta à qual deve responder o filósofo, especialmente o filósofo da biologia e da medicina.522

Para Aristóteles o embrião humano possui desde a concepção a alma própria da espécie humana, isto é, a alma intelectiva. Deste modo vale a pena fazer uma recapitulação do ensinamento aristotélico em Metafísica IX sobre o conceito de homem em potência para desmistificar alguns equívocos usados em nome do filósofo, quando alguns chegam a dizer