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A infusão da alma espiritual: origem da pessoa humana

O objetivo deste tópico é mostrar o amadurecimento da Igreja Católica ao longo da história sobre o momento em que a alma espiritual é infusa, permitindo, deste modo, o surgimento da pessoa humana. E para isto, tal estudo perpassa por renomados teólogos católicos que faziam uma distinção entre o sexo masculino e o feminino quanto ao momento da infusão da alma. Porém, mesmo apesar destas discrepâncias quanto ao momento exato da animação, discussão interna à teologia, tal estudo possibilitará perceber que a posição histórica da Igreja Católica sempre foi de estar ao lado da vida, defendendo-a em todas as circunstâncias.

      

128 PALAZZANI, Laura. “Os significados do conceito filosófico de pessoa e suas implicações no debate atual sobre o estatuto do embrião humano.” In: DE DIOS VIAL CORREA, Juan e SGRECCIA, Elio (orgs). Identidade e Estatuto do Embrião Humano, p. 113-114.

Não é de se estranhar, que o Magistério da Igreja Católica nem sempre foi unânime na sua posição ao longo da história quanto ao momento da infusão da alma ou animação129. Os Padres da Igreja dividiram-se em duas correntes de opinião: os que defendiam a animação imediata, desde o momento da fecundação e os que eram partidários da animação mediata ou retardada, isto é, depois de certo tempo.

Os primeiros explicavam a origem da alma humana por uma pré-existência anterior a sua união com o corpo (platonismo cristão) ou por uma derivação da alma dos pais (traducianismo), eram partidários da animação imediata. Em troca, os segundos, que seguiam a tese de que as almas são criadas por Deus (criacionismo), apoiavam a opinião da animação retardada.130

Tanto que, Santo Agostinho no século V, dizia que somente depois de 40 dias após a fecundação é que se podia falar em pessoa humana, ou seja, que correspondesse a uma unidade de corpo e alma ou ainda, hominização. Isso no caso do feto masculino. Ao passo que para o feto feminino exigia-se o dobro, ou seja, 80 dias para se considerar uma pessoa.131

Esta controversa teológica teve a sua origem na divergência de tradução do texto bíblico de Êxodo 21,22-25. Trata-se de uma divergência textual entre o hebraico e o grego, que, por sua vez, provocou uma repercussão histórica no âmbito da moral cristã.132

O texto bíblico no original hebraico foca a atenção em proteger as mulheres grávidas, prescrevendo ao juiz que devia aplicar penalidades pecuniárias ou recorrer à lei de talião (“vida por vida, olho por olho”), segundo a gravidade dos danos causados à mulher.

O texto grego, ou melhor dizendo, a tradução dos LXX, evidencia uma novidade: os tradutores assimilaram dados da embriologia helênica, especialmente da filosofia aristotélica, que afirmava a necessidade primordial do surgimento ou preparação da matéria, para que somente depois pudesse surgir a forma, ou a infusão da alma racional. Seguindo este raciocínio, os tradutores dos LXX distinguiram e introduziram no texto uma dupla hipótese: a do feto ‘formado’ ou ‘informe’, de modo a considerar que no caso do feto “formado”, aplicava a lei de talião, ou seja, reconhecendo o feto já formado no ventre da mulher e que

      

129 “Os medievais denominaram animação o efeito da ação da alma enquanto dá vida e a ordena na matéria embrionária.” In: FAITANIN, Paulo. “Embriologia tomista: doutrina da animação e individuação do embrião humano em Tomás de Aquino.” Coletânea, Rio de Janeiro-RJ, v. 03, n. 06, pp. 151-297, [jul./dez.] 2004, p. 170. 130 VIDAL, Marciano. Moral cristã em tempos de relativismos e fundamentalismos. Aparecida: Santuário-SP, 2007, p. 89.

131 Cf. DE PAULO DE BARCHIFONTAINE, Christian. Bioética e início da vida. Alguns desafios. São Paulo: Ideias e Letras, 2004, p.111.

132 JOSAPHAT, Carlos. Ética Mundial. Esperança da humanidade globalizada. Petrópolis: Vozes, 2010, pp. 407-409.

teve a sua gestação interrompida por causa de um agressor, este devia pagar com a sua própria vida por aquela vida humana intra-uterina que foi prejudicada. E no segundo caso, isto é, a do feto “informe”, não se trata do agressor pagar com a sua própria vida, uma vez que o feto ainda não está formado, mas tal agressor sofria as penalidades pertinentes diante deste atentado.

Porém, é extremamente importante deixar bem claro, que mesmo havendo esta distinção de caráter cultural na tradução dos LXX, a Igreja sempre foi contra a interrupção voluntária da gravidez considerando, inclusive, pecado grave o aborto voluntário. Não se tem dúvida alguma quanto ao empenho do povo de Deus, tanto na Bíblia, quanto na Igreja de sempre proteger a vida antes mesmo do nascimento.

Outro dado relevante a considerar neste momento é o seguinte: somente o aborto praticado no caso do feto já “formado” é que o agressor era condenado por homicídio e objeto de excomunhão pela Igreja.

A tese da animação progressiva ou retardada foi a que permaneceu de forma generalizada durante a Idade Média. A tese criacionista foi a que se impôs e a que passou a ser aceita pela Igreja, de tal maneira que se pode verificar o Papa Pio XII (1876-1958) afirmando, que a fé católica obriga a sustentar que as almas são criadas imediatamente por Deus.133

Santo Tomás de Aquino no século XIII também se utilizou de mesma posição assumida anteriormente por Santo Agostinho, quando então a partir de 40 dias pudesse reconhecer como humano o embrião com a infusão da alma racional. Para combater o traducianismo que defendia a tese da animação imediata como derivação dos próprios pais, Santo Tomás de Aquino defendia a tese da criação progressiva da alma espiritual que é infusa não pelos pais, mas por Deus.134

Tal doutrina foi assumida oficialmente pela Igreja Católica a partir do Concílio de Trento encerrado em 1563, de modo que, era partindo de tal consideração que a Igreja avaliava ética e canonicamente as ações abortivas. Porém, mesmo assim, sempre foi contestada por outros teólogos que, buscando embasamento na autoridade de Tertuliano, século III e de Santo Alberto Magno, século XIII, defendiam a hominização imediata, ou seja, desde a fecundação já tratar de um ser humano em processo.135

       133 Cf. VIDAL, Marciano. Op. cit., p. 89.

134 Cf. DE AQUINO, Tomás. Suma Teológica, parte I, q. 118, a. 1-2.

Como se pode constatar, “na Idade Média há a coexistência das duas teorias, isto é, a animação imediata e a sucessiva.”136

O Magistério da Igreja não interveio decisoriamente na disputa; condenou somente as duas proposições extremas: que a alma se infunde no momento do nascimento (Inocêncio XI, em 1679) e que a infusão da alma tem lugar no primeiro ato da inteligência da criança (Leão XIII, em 1887 contra Rosmini).137

No século XVIII, Santo Afonso Maria de Ligório, falecido em 1787, admitia o aborto terapêutico, caso corresse risco imediato à vida da mãe.

Contudo, essa discussão sobre o feto “inanimado” – que ainda não teria alma – teve por encerrada oficialmente com a divulgação da “Apostolica Sedia” em 1869, quando o Papa Pio IX condenou toda e qualquer interrupção voluntária da gravidez.138

Neste mesmo século XIX, discutia-se sobre o aborto direto e indireto.

E Roma passou a admitir o aborto indireto, em caso de gravidez tubária ou de câncer no útero. Matar diretamente o feto é sempre proibido. A extirpação de um câncer do útero ou a preservação da vida da mãe exigem, por vezes, medidas que não matam diretamente o embrião, mas têm por consequência ‘indireta’, porque não queria por si a expulsão do mesmo, não viável.139

Enquadra-se perfeitamente neste caso o conceito ético do duplo efeito140, que, por ato voluntário de conservação da vida da mãe, pode resultar, consequentemente, um ato involuntário de interrupção da vida do feto.

A defesa da vida humana no seu início, assumida pela Igreja como um princípio de sua missão, foi adquirindo um amadurecimento ainda maior com as novas descobertas da biologia, de modo especial da embriologia, o que leva a pensar, que, se os cientistas, filósofos

       136 Ibidem.

137 VIDAL, Marciano. Op. cit., p. 90.

138 Cf. DE PAULO DE BARCHIFONTAINE, Christian. Op. cit., p. 111. 139 Ibidem.

140 “Visa a dar conta do fato de que um ato que é, em si mesmo, obrigatório ou permitido pode, apesar disso, ter conseqüências ruins. Critérios necessários: 1) o objetivo do ato e o ato em sim mesmo precisam ser bons; 2) as conseqüências ruins do ato não são visadas como um objetivo do ato, nem como fins em si, nem como meios visando a um outro fim; 3) o bem visado e associado ao próprio ato, é proporcional ao mal que suas conseqüências comportam, ou seja, que o primeiro leve vantagem sobre o segundo. Dentro deste princípio, podemos citar as reflexões de São Tomás de Aquino sobre o valor moral das ações humanas e em sua tese em defesa do direito de matar em situação de legítima defesa (Suma teológica), defendido pela teologia católica a partir do século XVI. É o caso de guerra, desde que seja pacifista em legítima defesa. Basta que o mal não seja visado intencionalmente, que ele não faça parte do objetivo buscado. Partindo do princípio do duplo efeito, uma gestante, que está com câncer no útero, por exemplo, pode se submeter aos tratamentos da doença, mesmo que tal tratamento venha resultar na perda do feto.”In: BYRNE, Peter. “O princípio do duplo efeito.” In: CANTO- SPERBER, Monique (org). Dicionário de Ética e Filosofia Moral,pp. 488-489.

e teólogos, que sustentaram a teoria da animação retardada, conhecessem as atuais descobertas científicas na área da biogenética, não teriam sustentado tal teoria.141

E mesmo havendo esta disparidade, quanto ao momento em que acontece a infusão da alma, teoria da animação imediata e teoria da animação retardada ou sucessiva, a Igreja sempre foi a favor da vida humana em qualquer de sua etapa tomando posição veementemente contra o aborto.142

Ao longo da história, os Padres da Igreja, bem como os seus Pastores e os seus Doutores, ensinaram a mesma doutrina contra o aborto partindo do princípio: “vida provável, vida certa”143, “sem que as diferentes opiniões acerca do momento da infusão da alma espiritual tenham introduzido uma dúvida sobre a ilegitimidade do aborto.”144

A posição magisterial da Igreja sobre o momento em que começa a existir o ser humano e quando se dá a infusão da alma não é outra senão o momento da fecundação, visto que a partir deste momento se dão nesse novo ser, três propriedades fundamentais que sinalizam que há um indivíduo autônomo, mesmo que ainda não tenha desenvolvido todas as suas virtualidades. E sobre estas três propriedades fundamentais do embrião será explanado a seguir no próximo tópico justificando a origem da vida humana já no instante da fecundação à luz do dado científico:

As conclusões da ciência acerca do embrião humano fornecem uma indicação valiosa para discernir racionalmente uma presença pessoal desde esta primeira aparição de uma vida humana.145

Do ponto de vista da ética, faz-se necessário levar em consideração os pressupostos ontológicos e antropológicos sobre o valor da vida humana.

Numa perspectiva clássica ou tradicional da ética, pode-se afirmar que o ser humano não é meramente um ser da natureza, mas um ser composto de corpo e princípio vital ou alma, que, sendo espiritual, tem destinação transcendente, ou seja, capacidade de abertura para Deus e para os outros. Portanto, a vida é um dom sagrado, que, por consequência deve ser inviolável.146 Esta é a base sobre a qual está assentada a ética tradicional no ocidente.

      

141 Cf. ÁNGEL FUENTES, Miguel. As Verdades Roubadas. 1ª edição em português, São Paulo: IVEPRESS, 2007, p. 169.

142 Cf. idem, p. 168. 143 Idem, p. 169.

144 SAGRADA CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ. Declaração sobre o Aborto Provocado. In:

DOCUMENTA. Documentos publicados desde o Concílio Vaticano II até nossos dias (1965-2010). 1ª edição, Brasília: Edições CNBB, 2011, n. I, 7. Daqui em diante segue-se DsAP.

145 DV I, 1.

Todavia, a partir dos anos 1970, surge um novo momento histórico de discussões em torno da questão sobre o aborto em vista dos problemas de malformações decorrentes de drogas, como é o caso da talidomida, instaurando um novo modo de avaliar as coisas:

Defende-se que ambas as perspectivas são complementares, não de exclusão mútua. Como os princípios são prima facie, ora prevalecerá um, ora outro, de acordo com as circunstâncias, porém com este limite: jamais eliminar a vida de uma pessoa ou infligir-lhe dano injusto, em contradição com o princípio da beneficência e não-maleficência. Com efeito, o mal intrínseco não se justifica por nenhuma circunstância.147

Mesmo diante de uma situação de malformação fetal, seja qual for a sua origem, “o homem é chamado a viver a mesma entrega ao Senhor e a renovar a sua confiança fundamental naquele que cura todas as enfermidades.”148 A família deste novo ser, especialmente a mãe, é

chamada a abandonar-se totalmente à vontade do Altíssimo, ao seu desígnio de amor, mesmo quando toda esperança de saúde parece não ser possível para o feto, que está sendo gestado em seu ventre materno, mas

o crente está animado pela fé inabalável no poder vivificador de Deus. A doença não o leva ao desespero nem ao desejo da morte, mas a uma invocação cheia de esperança: Confiei mesmo quando disse: ‘Sou um homem de todo infeliz’.149

Por isso, a sua opção é sempre em favor e defesa da vida humana, visto que ele não é senhor nem da vida nem da morte, mas o seu administrador e tutor. O ser humano é ministro do desígnio de Deus.

O homem do mundo grego compreende a vida em sua realidade e riqueza natural.

“Causa e sujeito da vida é uma energia vital, muitas vezes denominada psyché = alma. O princípio vital é mais tarde diferenciado em vida segundo a natureza e faculdade racional (nous ou lógos).”150

A faculdade racional, sobretudo na filosofia platônica, foi sempre entendida como elemento divino no homem, indestrutível e imortal. A vida divina, da qual participa o homem pela sua imortalidade, compreendida como sendo a verdadeira vida, foi sempre o centro de atenção de toda a religiosidade antiga: “A Gnose quer ensinar e abrir o caminho através do qual a alma alcança à vida eterna, donde provém.”151

       147 Idem, p. 32.

148 EV 46. 149 Ibidem.

150 HERMANN SCHELKLE, Karl. Teologia do Novo Testamento. Ethos Comportamento Moral do Homem, vol. 4. São Paulo: Loyola, 1978, p. 237.

É sempre partindo da concepção que se faz do ser humano, que são deduzidas as normas de ação sobre o mesmo, pois “de acordo com o velho adágio do agere sequitur esse – agir segue o ser, as normas do agir devem ser adequadas à natureza de quem as deva cumprir.”152

Portanto, conceber o ser humano meramente como uma espécie de gorila ou mamífero vertical, também significa conceber normas de ação diferentes daquelas decorrentes da concepção tradicional do homem como “a única criatura na terra que Deus quis por si mesma”153,

criado segundo a imagem e semelhança do divina (Cf. Gn 1,26). Assim afirma o Sagrado Magistério:

desde o momento da concepção, a vida de todo ser humano deve ser respeitada de modo absoluto, porque o homem é, na terra, a única criatura que Deus quis por si mesma, e a alma espiritual de cada um dos homens é imediatamente criada por Deus; todo o seu ser traz a imagem do Criador. A vida humana é sagrada porque desde o seu início comporta a ação criadora de Deus e permanece para sempre em uma relação especial com o Criador, seu único fim.154

Certamente, os avanços da medicina, em especial da biologia (embriologia), trouxe para a reflexão teológica melhores condições para que a Igreja pudesse se fundamentar cientificamente a respeito de sua missão em defender a vida humana já a partir da fecundação. Portanto, em seguida se verá a posição da Igreja Católica sobre a origem da vida humana à luz da ciência. Em outras palavras, o esforço se concentrará em evidenciar o contributo da biologia em suas pesquisas, descobrindo, que, tais dados científicos não têm se levantado contra o posicionamento da Igreja Católica, mas corroborado a sua missão de defender e de promover a vida humana desde o momento da sua concepção.