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2. A DEMOCRACIA EM DISPUTA E CONSTRUÇÃO

2.3. A democracia participativa

2.3.1. Rousseau e a soberania popular

Rousseau busca legitimar o povo enquanto agente político, constituindo o estatuto da igualdade entre todos os indivíduos, uma igualdade que extrapolaria os limites formais da participação através da representação e dos direitos políticos e civis abstratos, e que se inscreveria na ordem social, rompendo com o estatuto da desigualdade que perpassa as estruturas e as relações sociais e políticas (Rousseau, 2001, p 40). Assim, inaugura uma perspectiva de crítica social radical, abrindo horizontes para além da sociedade e da economia burguesa, capitalista e moderna.

Rousseau (1991, p. 220), articulando a democracia à liberdade e à igualdade, destaca a necessidade de encontrar uma “forma de associação que defenda e proteja, com toda a força comum, a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedece contudo a si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes”. Isto remete à constituição política de condições legais e institucionais que permitam problematizar e destruir convenções, hierarquias e deveres sociais que se impõem aos indivíduos, aprisionando-os. Não com o sentido de uma negação absoluta da imposição de toda e

qualquer convenção ou dever social, mas com o intuito de decidir quais convenções e deveres devem ser impostos, e como podem ser legitimadas essas imposições.

Desta forma, na perspectiva roussoniana, a legitimidade política, questão essencial, não se vincula somente a procedimentos formalmente democráticos, mas associa-se à própria natureza da decisão política – entendida enquanto problemática ética – no contexto da soberania popular. Nessa perspectiva, a associação política constitui um corpo moral e coletivo, um corpo público em que todos, igualmente, são cidadãos, participantes da autoridade soberana. Todos também são igualmente vassalos, na medida em que se submetem à lei, o que remete ao fato de que cada “um de nós põe em comum sua pessoa e todo seu poder sob a suprema direção da vontade geral” (Rousseau, 1991, p. 220).

Caracteriza-se a soberania como exercício dessa vontade geral, o povo associado e ativo politicamente, onde o pacto social dá ao “corpo político um poder absoluto sobre todos os seus” (Rousseau, 2001, p 43). A democracia, portanto, vincula-se à efetivação da soberania, vontade declarada que se torna lei, determinação moral de caráter universal, direito e dever que a todos atinge sem distinção; assim, obriga os cidadãos à obediência às leis derivadas da vontade geral, expressão da soberania popular.

O Estado expressa o princípio ético essencial e a força moral que ordena os comportamentos, prescreve as restrições, indica os direitos e deveres, funda a legitimidade do poder político, o direito e a obediência. Essa moralidade coletiva não se funda na força, mas na soberania, entendida enquanto reiterada expressão de um povo consciente e organizado politicamente, capaz de auto-afirmar-se permanentemente através da lei. O Estado como força moral se torna legítimo através da lei que realiza a universalização da vontade geral, afirmando conjuntos de direitos e de deveres que regulam a vida em sociedade, pautando a possibilidade da afirmação do ser humano em sua dignidade.

Nessa perspectiva de exercício direto do poder político, a participação não é somente um direito, mas também um dever, uma obrigação, uma responsabilidade e, portanto, o cidadão detém o direito e o dever de avaliar os problemas e questões coletivas e tomar decisões políticas que afetam os particulares e estruturam a ordem social, evidenciando-se o caráter ético dos atos decisórios. A legitimidade da lei somente decorre se esta assenta na soberania popular entendida enquanto exercício direto do poder político.

A vontade geral afirma universalmente os interesses comuns e, para além de uma visão utilitarista, fundamenta uma ordem social fundada em valores e estatutos que

constituem a dignidade essencial do ser humano, através de direitos e deveres que articulam processos sociais de humanização de cada um e de todos os indivíduos. Além disso, a participação direta constitui-se como um ato de afirmação da soberania popular onde o direito e o dever de participar impulsionam as experiências políticas vivenciadas como processos educativos que fundamentam a consciência dos indivíduos e reiteram o aprendizado da vida pública (Rousseau, 2001, p 23).

Para Rousseau, a ordem social moderna teria negado a liberdade humana originária. Portanto, a afirmação da liberdade na contemporaneidade estaria assentada na ruptura e na negação da ordem burguesa, onde o homem “encontra-se aprisionado” em uma ordem social demarcada por dualidades entre esfera privada e esfera pública, indivíduo e coletividade, vontade particular e vontade geral. Para além dessa negação, trata-se também da afirmação política de uma ordem social alternativa, onde a vontade geral seja reconhecida como afirmação de vontades particulares que se subordinam ao estatuto da dignidade humana, aos direitos humanos que potencializam dinâmicas e processos universais de humanização. Desta forma, a vontade geral afirma o indivíduo enquanto ser humano pertencente à coletividade/comunidade e capaz de encontrar nesta as condições para sua afirmação, para a expansão das aptidões e das potencialidades humanas.

2.3.2. A democracia participativa na atualidade

Retomando questões e idéias postuladas por Rousseau e outros pensadores, a partir dos anos 1960, autores como Nicos Poulantzas (1985), C.B. Macpherson (1982) e Carole Pateman (1992) elaboram uma vertente da democracia que busca articular mecanismos de democracia representativa e de democracia direta, enfatizando a participação direta dos cidadãos nas decisões coletivas e públicas, a multiplicação das instâncias de poder, a organização política e o associativismo de caráter local.26

Além dos aspectos de utopia ou de projeto que se articulam a vertente da democracia participativa, que viria a influenciar as lutas sociais ao final do século XX, destaque-se também um viés culturalista que parece acompanhar essas concepções. Esse viés culturalista

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Nicos Poulantzas (com obras como Poder político e classes sociais; O Estado, o poder, o socialismo), C.B. Macpherson (A teoria política do individualismo possessivo) e Carole Pateman (Participação e teoria democrática).

está presente, por exemplo, nas reflexões de Carole Pateman que articula a participação dos cidadãos a processos e dinâmicas de capacitação ou formação que potencializariam posturas autônomas. Almeida (2006, 63), refletindo sobre as diferentes vertentes democráticas presentes no século XX, caracteriza aspectos importantes da democracia participativa, afirmando que “defendem a necessidade da participação cidadão no processo de tomadas de decisões das políticas públicas, assim como a criação de canais de controle da sociedade sobre o Estado para além das instituições centrais da democracia liberal”. Comentando a obra da autora de Participação e Teoria Democrática, Almeida (2006, 63), destaca que:

[...] a participação gera atitudes de cooperação, integração e comprometimento com as decisões. Destaca o sentido educativo da participação, a qual, como prática educativa, forma cidadãos voltados para os interesses coletivos e para as questões da política. Os defensores da democracia participativa inovam com sua ênfase na ampliação dos espaços de atuação dos indivíduos para além da escolha dos governantes e ao destacar o caráter pedagógico da participação.

Além dessa função educativa, Almeida (2006, p. 63) evidencia duas funções para a participação na democracia participativa, quais sejam, a de facilitar a aceitação das decisões tomadas, o que se refere à legitimidade, e a de possibilitar processos e dinâmicas de integração do indivíduo à sociedade.