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MAPA 1 – Municípios atendidos pelo PROURB/CE

4. GÊNESE E EVOLUÇÃO DO CAMPO DO PLANEJAMENTO URBANO

4.2. Do urbanismo ao planejamento urbano

4.2.2. A emergência da planificação e do plano

Analisando o caso brasileiro, a partir de São Paulo, Nobre (2006, p. 03) indica como entre o final do século XIX e a Revolução de 1930, as intervenções urbanas se articulam principalmente em torno de Planos de Melhoramento das áreas centrais das cidades, visando aperfeiçoar a infra-estrutura necessária aos processos exportadores, articulando três tipologias: reforma e ampliação de portos marítimos e fluviais, melhoramento de áreas centrais e obras de saneamento. Ribeiro (1996, p. 16) indica o sentido internacional de planificação:

(...) entre os anos 1900-1910, a cidade é transformada em objeto global de saber e intervenção. As palavras ou expressões urbanismo, city planning ou ciência da cidade começam a ser utilizadas na França, na Inglaterra e nos Estados Unidos (...) Os países industrializados adotam medidas que instauram uma nova prática administrativa no que concerne à gestão da cidade: na Inglaterra, o Housing and Town Planning Act; na França, são feitas proposições de leis eu posteriormente vão ser transformadas na Lei Cornudet, segundo a qual torna-se obrigatória a elaboração de Planos de Organização, Embelezamento e Expansão das cidades; nos Estados Unidos, é publicado o Plano Burnham para Chicago e, ao mesmo tempo, tem lugar a primeira Conferência Nacional do Movimento City Planning.

Na América Latina, este período é demarcado por variados projetos e plano urbanos para Buenos Aires, Rio de Janeiro, Havana, Caracas e outras. Além disso, também pela circulação de manuais e tratados de urbanismo, criação de instituições e de entidades profissionais e acadêmicas, realização de palestras e de outras atividades de debate e divulgação em meios de comunicação como jornais e rádios, conformando uma “militância intelectual” (Ribeiro, 1996, p. 16). Ribeiro (1996, p. 17) indica como no Rio de Janeiro, em 1916, foi “criado o Centro Carioca com a finalidade de discutir os problemas da cidade, reunindo vários profissionais liberais (engenheiros, médicos, advogados, literatos) e muitos militares”; alguns anos depois, em 1935, seria “criada a Sociedade dos Amigos da Cidade de São Paulo”. Topalov (2006, p. 36) afirma que “os novos especialistas projetam uma imagem de si mesmos, que é a da independência, que dá a entender que não falam e atuam para defender os interesses particulares de nenhum grupo, mas em nome dos interesses superiores da sociedade”. Neste sentido, e referindo-se ao cenário europeu e norte-americano do início

do século XX, Topalov (2006, p. 36-37) desvela como as posições sociais dos novos especialistas adquirem maior inteligibilidade se são percebidas as relações que estabelecem com outros grupos e segmentos sociais:

Os profissionais da reforma procuram alcançar certos objetivos que lhes são próprios e, para começar, o fato de que são imprescindíveis ao progresso: procedem, muitas vezes, de um meio modesto e sua hierarquia social passa por esse reconhecimento. Dessa forma, entrarão em conflito com certos interesses econômicos muito precisos: os dos proprietários de cortiços, das companhias de serviços urbanos e dos empresários, grandes ou pequenos, que abusam da mão-de- obra feminina, do trabalho doméstico e do trabalho temporário. Mas, ao mesmo tempo, necessitam manter vínculos privilegiados com os meios da burguesia reformadora, que podem legitimá-los socialmente e com determinados padrões que lhes serão ainda mais úteis quando não existam os aparatos administrativos que possam recebê-los.

(...) os meios empresariais necessitavam dispor de um pessoal reformador independente, capaz de proporcionar-lhes a legitimidade científica que não tinham (...) ao mesmo tempo, os novos profissionais eram incapazes de prescindir da base social que tal aliança lhes brindava.

Carpintero (1996, p. 228) indica como:

A partir de 1914 (...) as expectativas de desenvolvimento e futuro das cidades modernas são fortalecidas graças a um grupo de higienistas, economistas, sociólogos, arquitetos e engenheiros, ditos responsáveis pela divulgação do urbanismo como ciência complexa da vida da cidade. As universidades inglesas, americanas e francesas de arquitetura ou de ciências sociais foram as primeiras a introduzirem o curso de urbanismo.

Carpintero (1996, p. 228) refere-se ao Instituto de Engenharia, de São Paulo, fundado em 15 de fevereiro de 1917, entidade que influenciou nacionalmente as intervenções urbanas, congregando profissionais que também possuíam presença importante na política paulista e brasileira:

Os boletins e as revistas publicadas pelo Instituto representavam uma fonte de comunicação e de informação para os técnicos de todo o Brasil (...)

Foi no decorrer dos encontros, palestras e das reuniões promovidas pelo Instituto de Engenharia que o urbanismo moderno, a partir dos anos 20, passou a adquirir novos adeptos em todo o Brasil.

Leme (1996, p. 246) destacando a constituição do pensamento urbanístico em São Paulo, na primeira metade do século XX, indica a importância da influência dos urbanistas europeus e americanos nesse processo:

Identificam-se três formas principais de contato com estas idéias. Uma se refere à contratação pelos políticos locais, dos serviços destes profissionais para a elaboração de planos e projetos urbanos, como foram as contratações de Joseph Antoine

Bouvard, em 1911, para São Paulo, ou de Donat Alfred Agache, em 1926, no Rio de Janeiro. A segunda forma era a realização de cursos no exterior (...) A terceira forma, mais usual e constante, consistia na leitura de obras publicadas e na participação em congressos e exposições.

Nesse processo de formação do urbanismo paulistano, com repercussões para outras cidades no país, o primeiro período abrange entre os anos 1880 e os anos 1920. Leme (1996, p. 246-7) destaca a criação da Intendência de obras municipais, em 1892, e quatro anos depois a criação de uma Comissão de Melhoramentos da Cidade, sendo esta um “fato inovador”, pois tem como atribuição “a organização do plano ou projeto geral da cidade”, vinculando “pela primeira vez a execução de obras, edificações, retificações, melhoramentos e embelezamentos à organização de planos ou projetos urbanos.49 Leme (1996) afirma que as “primeiras experiências de projetos e planos urbanos” no Brasil vincularam-se ao campo da engenharia sanitária, destacando a importância de Francisco Saturnino de Brito:

O projeto de saneamento e expansão que ele realiza para a cidade de Santos, de 1905 a 1910, é considerado a sua mais importante obra construída. Nela, Brito inovou no emprego de técnicas para a solução de drenagem de águas pluviais e no escoamento e tratamento de esgotos. Mas o aspecto principal de seu projeto (...) é o plano de expansão da cidade. Ele não se limitava a resolver os problemas sanitários das partes construídas, mas projetava, também, as áreas de expansão da cidade. Brito foi o exemplo mais significativo de uma prática, usual à época, de atuação profissional em diferentes cidades brasileiras. Ele fez projetos para um grande número de cidades brasileiras, entre elas Recife, Vitória e Porto Alegre (Leme, 1996, p. 247).

(...) o engenheiro sanitarista Saturnino de Brito (1864-1929), responsável, ao longo de toda a República Velha, por dezenas de planos de saneamento, melhoramentos e expansão das principais capitais e cidades brasileiras, como Campinas e Santos, no Estado de São Paulo, Recife, capital do Estado de Pernambuco, Curitiba, capital do Estado do Paraná, João Pessoa, capital do Estado da Paraíba, inúmeras cidades do Rio Grande do Sul, entre outras não menos importantes (Andrade, 1996, p. 288).

Andrade (1996, p. 304; 306) inclui o urbanismo sanitarista do engenheiro Saturnino de Brito “no conjunto de operações em grande escala que redefiniram a paisagem urbana de diversas cidades da América do Sul no primeiro quartel do século XX”, avaliando que tais intervenções, nos quadros de “institucionalização de um novo Estado centralizador, revelam o fim da concepção centrípeta de cidade e promovem, com seus planos de expansão, uma visão centrífuga do espaço urbano”. Leme (1996, p. 248) indica um grupo de profissionais importantes para a formação das primeiras gerações de engenheiros civis e engenheiros-

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Destaque-se que a expressão melhoramento “designava tanto os planos e projetos urbanos, como toda e qualquer intervenção na cidade, desde obras de saneamento à abertura de praças, alargamento e extensão de vias”, sendo utilizada até os anos 1940, convivendo com os termos urbanismo e planejamento urbano (Leme, 1996, p. 248). A expressão melhoramento teria surgido pela primeira vez, no Brasil, em um artigo de Victor da Silva Freire, denominado “Melhoramentos de São Paulo”, publicado em 1911 na Revista Politécnica.

arquitetos que atuaram em São Paulo, dentre os quais Victor da Silva Freire, Fonseca Rodrigues, João Florence de Ulhôa Cintra e Francisco Prestes Maia, todos conjugando a situação de professor na Escola Politécnica da USP e de funcionários públicos.50

Ribeiro (1996, p. 18) indica como, na constituição do urbanismo no Brasil, vinculada estruturalmente a uma inserção periférica na modernidade, as “teorias e modelos importados tiveram funções cognoscíveis da realidade e, ao mesmo tempo, legitimadora dos atores e das suas escolhas históricas”. Nessa perspectiva, uma das “características do projeto de modernidade é, precisamente, colocar-se como universal, fundado nas propriedades gerais, cientificamente construídas, relativas ao Homem e à Sociedade”. Ribeiro & Cardoso (1996, p. 59) evidenciam como a Reforma Pereira Passos, no Rio de Janeiro do início do século XX, detinha o objetivo de produção de uma nova imagem da cidade, da nação e das elites emergentes, o que remete à centralidade da cidade e das intervenções urbanas como espaços de luta simbólica, vinculados a produção de mecanismos de representação e de distinção social. Aos poucos, o urbanismo assume o papel de representar e exaltar a grandeza e a prosperidade da cidade e demarcar e estabelecer a ordem burguesa no e através do espaço urbano. Porém, esse processo, no Brasil, se é periférico é também tardio, como indicam Ribeiro & Cardoso (2006, p. 58-59):

Ao longo da Primeira República, as intervenções na cidade não configuram exatamente o modelo do plano urbanístico, já que, em geral, não consideram a cidade na sua totalidade, mas apenas se dedicam a intervenções localizadas. Apenas na década de 20, têm início os debates sobre a necessidade de introdução do urbanismo no Brasil, principalmente na imprensa especializada, culminando com o convite a Agache para a elaboração do plano do Rio de Janeiro.

A constituição do urbanismo remete à existência de recursos que adquirem caráter simbólico, gerando categorias de percepção que materializam princípios de visão e de divisão e configuram estilos de vida, grupos profissionais e estatutos sociais diferenciados socialmente. Bourdieu (2004, p. 156-157) indica que a realidade social é, também, um objeto de percepção e, portanto, deve-se ter como objeto não apenas o que se considera a realidade objetiva, “mas também a percepção dessa realidade, as perspectivas, os pontos de vista que, em função da posição que ocupam no espaço social objetivo, os agentes têm sobre essa realidade”. Isto remete à questão de que o mundo social “pode ser dito e construído de diferentes maneiras, de acordo com diferentes princípios de visão e divisão” (Bourdieu, 2004,

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Victor Freire, por exemplo, ocupou por 26 anos a chefia do Departamento de Obras da Prefeitura, e este contexto contribuiu para gerar possibilidades de ascensão e transmissão de cargos.

p. 159). Nessa perspectiva, a constituição do urbanismo remete a mudanças nas “maneiras de fazer o mundo”, mudanças na visão de mundo e nas “operações práticas pelas quais os grupos são produzidos e reproduzidos” (Bourdieu, 2004, p. 166). Mais uma vez, é relevante a constatação de Topalov (2006, p. 37-38) ao analisar o contexto das reformas urbanas no início do século XX, ao afirmar que os “problemas sociais” assim “construídos pelos novos profissionais adquirem a qualidade de realidades objetivas”, tornam-se “despolitizados e escapam ao âmbito das controvérsias fictícias e perigosas do enfrentamento democrático”. Porém, se há perspectivas e concepções que se constituem hegemônicas, isto não deve obscurecer o fato de que existem divergências e contradições entre as posturas, as idéias e as práticas de diferentes agentes.

Carpintero (1996, p. 228), por exemplo, ao estudar o Instituto de Engenharia de São Paulo, nas primeiras décadas do século XX, evidencia contraposições ao modernismo/futurismo e posturas minoritárias que articulam o enfrentamento da questão urbana à viabilização da construção de moradias para a população de baixa renda. Carpintero (1996, p. 231-2) faz referência à realização do I Congresso de Habitação, em 1931, na cidade de São Paulo, com participação de duzentos e vinte congressistas, médicos higienistas, sociólogos, engenheiros, dentre outros representantes significativos da arquitetura e do urbanismo paulistano:

O objetivo central do congresso era buscar soluções para os problemas urbanos de São Paulo, e, entre eles, viabilizar a construção de moradias para a população de baixa renda. São estudos preocupados, fundamentalmente, em marcar um novo momento no campo da construção civil, sendo que as questões em torno da racionalização e da funcionalidade da construção ocuparam posição central. Ao lado dessas discussões, encontramos preocupações com a legislação, financiamento e higiene.

De forma geral, os argumentos “apresentavam soluções para o problema da moradia a partir de um conjunto de conhecimentos técnicos, sempre acompanhados de preceitos morais e higiênicos” (Carpintero, 1996, p. 232). Desta forma, o discurso urbanístico se inscreve no projeto reformista em curso a partir da Revolução de 1930, com amplas repercussões no Estado brasileiro e nas articulações entre este e as classes sociais. Analisando, por exemplo, artigo do engenheiro Marcelo Taylor Carneiro de Mendonça, publicado nos anais do Congresso, Carpintero (1996, p. 232) indica:

Ainda no entender deste engenheiro, as favelas e os “cabeças de porco” são causas diretas de desorganização operária, são um empecilho absoluto ao reerguimento físico e moral da classe operária. Com o pressuposto de que o “meio-ambiente” é o responsável pela vida e a saúde da população de baixa renda, estes profissionais

discutiam a interferência nos costumes e hábitos desta população a partir da organização do espaço da casa. Portanto, em cada projeto de habitação econômica apresentado no Congresso de Habitação encontramos discursos que revelavam seu caráter racional, linear e moralizador.

Carpintero (1996, p. 233) também indica como, inclusive em consonância com o I Congresso Pan-Americano da Vivenda Popular – realizado em Buenos Aires em 1930 e contando com a participação de representantes do Instituto de Engenharia de São Paulo –, os artigos apresentados em São Paulo “enfatizaram que a expansão das cidades e dos povoados deveria obedecer a um plano de conjunto, previamente estudado e organizado, de acordo com a topografia e com as sugestões de engenharia sanitária”. Nessa perspectiva, entre os anos 1920 e 1930, é patente nos debates urbanos vinculados ao Instituto de Engenharia a defesa da “influência positiva da moradia e do lazer na formação moral e cívica dos indivíduos”, em consonância com as representações e as formas hegemônicas de compreensão e de enfrentamento da questão social. Carpintero (1996, p. 234-5), indica que:

A importância do meio como elemento eficaz na formação do caráter dos indivíduos aparece no decorrer dos anos 20, como tema central de uma série de Congressos Internacionais, promovidos por entidades preocupadas com a questão social. É o caso do Congresso Americano de Prisão que, em 1926, chegou à conclusão de que os problemas da criminalidade estão relacionados com a ausência dos meios de lazer (...) muitos problemas seriam evitados se toda a cidade oferecesse à população meios adequados de lazer, como parkways, jardins botânicos e zoológicos.