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Estruturas e padrões tecnoburocráticos e lutas sociais urbanas

MAPA 1 – Municípios atendidos pelo PROURB/CE

5. ENTRE A REFORMA URBANA E O PLANEJAMENTO ESTRATÉGICO

5.1. Estruturas e padrões tecnoburocráticos e lutas sociais urbanas

Após a Segunda Guerra Mundial e até o final do século XX, pelo menos, dois processos podem ser indicados como componentes essenciais à constituição do campo do planejamento urbano no país. Um processo de constituição e fortalecimento técnico e burocrático do Estado e, ao mesmo tempo, o desenvolvimento de ativismos, mobilizações, movimentos e lutas sociais urbanas, através de um conjunto amplo de agentes. É interessante perceber que no caso brasileiro, os anos 1970 representam, ao mesmo tempo: 1) um momento singular e essencial nas tentativas históricas de constituir um modelo ou padrão tecnoburocrático de intervenção urbana; 2) um período onde as lutas sociais que redundam posteriormente no ideário da Reforma Urbana se constituem molecularmente nas cidades brasileiras: 3) e uma fase anterior à emergência, no país, de uma perspectiva estratégica que influenciará profundamente o planejamento urbano no Brasil.

No que se refere aos padrões tecnoburocráticos, de matiz centralizador a partir da esfera federal, é possível destacar, além da existência do Banco Nacional de Habitação – BNH, também o Serviço Federal de Habitação e Urbanismo – SERFHAU, ambos criados através da Lei Federal 4.380, de 21 de agosto de 1964.53 O SERFHAU foi criado com um conjunto de atribuições, dentre as quais aquelas relacionadas diretamente aos planos diretores: Art. 55. O Serviço Federal de Habitação e Urbanismo terá as seguintes atribuições: [...]

g) prestar assistência técnica aos Estados e Municípios na elaboração dos planos diretores, bem como no planejamento da desapropriação por interêsse social, de áreas urbanas adequadas a construção de conjuntos habitacionais; [...]

m) estabelecer normas técnicas para a elaboração de Planos Diretores, de acôrdo com as peculiaridades das diversas regiões do país;

n) assistir aos municípios na elaboração ou adaptação de seus Planos Diretores às normas técnicas a que se refere o item anterior[...].

Desta forma, o processo de fortalecimento técnico e burocrático do Estado brasileiro ocorre a partir dos anos 1960 no âmbito da institucionalidade federal, atingindo o campo do planejamento urbano.54 Essa matriz tecnburocrática consolidada e difundida durante o regime militar possui como uma de suas características essenciais a articulação entre entidades públicas e privadas nos processos de formulação e execução de planos, programas, projetos e políticas públicas, como é possível perceber através de duas atribuições do SERFHAU: estimular a organização de fundações, cooperativas, mútuas e outras formas associativas em

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Vide, por exemplo, Gomes (2006).

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programas habitacionais, propiciando-lhes assistência técnica; prestar assistência técnica aos Estados, aos Municípios e às empresas do país para constituição, organização e implantação de entidades de caráter público, de economia mista ou privadas, que terão por objetivo promover a execução de planos habitacionais ou financiá-los, inclusive assisti-los para se candidatarem aos empréstimos do Banco Nacional da Habitação ou das sociedades de crédito imobiliário.

O Decreto Nº. 59.917, de 30 de dezembro de 1966, regulamentou o SERFHAU, caracterizando-o enquanto “entidade elaboradora e coordenadora da política nacional no campo de planejamento local integrado”. O Art. 6º desse Decreto normatiza a intervenção dessa autarquia, consolidando essa articulação entre público e privado no campo do planejamento urbano do país, ao afirmar que o SERFHAU deve concentrar-se nas “tarefas globais de planejamento, coordenação e supervisão”, delegando “as tarefas pròpriamente executivas a outros órgãos e entidades especializadas de direto público ou privado”. É interessante perceber como dessa estrutura institucional derivou uma dinâmica que perpassa o conjunto das cidades brasileiras, articulando não somente uma mesma lógica, mas também uma temporalidade semelhante. Neste sentido, é interessante perceber como o fortalecimento técnico e burocrático do Estado brasileiro impulsionou, articulou e fortaleceu empresas e entidades privadas não lucrativas, integrando-as estruturalmente ao campo do planejamento urbano. Desta forma, há uma interpenetração entre o público e privado nos diferentes níveis e esferas governamentais do Estado brasileiro. Para ilustrar, basta pensar, por exemplo, no caso dos municípios cearenses, na presença e importância dos escritórios de assessoria jurídica, contábil e financeira, aliado às fragilidades técnicas da estrutura institucional da maioria das Prefeituras.

Portanto, os processos de tecnificação e burocratização do Estado brasileiro impactaram as três esferas governamentais, com a difusão de sistemas, hierarquias, posições, processos, políticas e formas e modos de gestão e avaliação mediados pela burocracia e pela técnica. Ao mesmo tempo, essa mediação tecnoburocrática mobilizou e articulou interações e relações cotidianas e sistemáticas com entidades privadas, reproduzindo uma característica essencial ao campo: a intervenção privada em parceria com o poder público, e também com financiamento público.55

Destaque-se que esse deslocamento, além de não ser homogêneo, também apresenta retrocessos, descontinuidades e rupturas, além de articulações com formas e modos

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clientelistas e patrimonialistas de constituição do Estado. Neste sentido, o caso de Fortaleza é exemplar. Em primeiro lugar na tentativa precária e frágil de tecnoburocratização, abortada como demonstra a extinção do instituto de planejamento municipal. Em segundo lugar, através da mobilização das estruturas, posições e sistemas técnico-burocráticos fragilmente constituídos por lógicas e relações de poder mediados de forma majoritária pelo clientelismo e patrimonialismo. E, em terceiro lugar, mas não menos importante, pela existência e difusão de uma mentalidade tecnocrática autoritária, que opõe exemplarmente técnica e política, elite e povo.

No que se refere ao processo de constituição técnica e burocrática do Estado, é importante perceber que ele representa uma das bases materiais de uma concepção modernista funcionalista de planejamento urbano, tradicionalmente demarcada por aspectos já discutidos anteriormente, tais como: a valorização do plano e do zoneamento; a predominância dos profissionais e saberes da arquitetura, do urbanismo e das engenharias, em detrimento de saberes das ciências humanas; uma concepção restrita de planejamento urbano, no máximo vinculada à estrutura, forma ou desenho urbano, sem considerar aspectos sócio-espaciais de desenvolvimento; a dualidade entre técnica e política, entre elites e povo; a concepção restrita de exercício do poder político e negativa de democratização e participação.

Um processo vinculado à institucionalização tecnoburocrática, talvez menos conhecido e no qual o surgimento do SERFHAU é um sintoma importante, é o fato de que esse processo estimulou, impulsionou e articulou a constituição e a articulação de/entre um conjunto amplo de escritórios, entidades, equipes e profissionais de várias disciplinas, através de projetos e financiamentos públicos, evidenciando interfaces e articulações diversas entre o setor público, o setor privado e a sociedade civil. Não se trata, efetivamente, de um processo novo no campo do planejamento urbano, tendo em vista que desde o início do século XX, pelo menos, a contratação de profissionais é uma prática comum ao Estado, permeada por intenções, conflitos, tensões e interesses diversos. Porém, o padrão atual é crescentemente o de aprofundamento de uma racionalidade técnica e burocrática e, ao mesmo tempo, de aliança com indivíduos, instituições e coletividades inscritos de forma profunda e complexa em processos de reprodução do capital. Neste sentido, Ferreira (2007, pp. 27-28)56 é bastante elucidativo em suas colocações:

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FERREIRA, Mauro. Planejamento urbano nos tempos do SERFHAU. Tese de Doutorado, Arquitetura e Urbanismo. São Paulo, São Carlos: UFSCAR, 2007.

(...) foi a regulamentação do SERFHAU que ofereceu as condições para que empresas de engenharia e consultoria se introduzissem no setor denominado “desenvolvimento urbano”, elaborando planos diretores.

(...) estas empresas se organizaram internamente, reunindo equipes multidisciplinares constituídas por equipes de engenheiros, arquitetos, engenheiros mecânicos, economistas, administradores, advogados, geólogos, sociólogos, dentre outros.

Estas empresas privadas vão incorporar quadros técnicos da universidade e dar suporte aos projetos do governo, assim como se reorganizam no âmbito do aparelho do Estado, instituições voltadas para o planejamento (...).

Os produtos que efetivaram essa perspectiva de planejamento, no estado do Ceará, foram o “Plano de Desenvolvimento Integrado da Região Metropolitana de Fortaleza – PLANDIRF” de 1972, e o “Plano Diretor Físico de Fortaleza”, elaborado entre 1975 e 1979. O PLANDIRF foi elaborado por um consórcio de empresas formado pela Serete S. A. Engenharia, SD Consultoria de Planejamento Ltda. e Jorge Wilheim Arquitetos Associados, definindo a composição da região metropolitana de Fortaleza, formada por cinco municípios. Dois elementos estão bem presentes no Plandirf, quais sejam, os vínculos estruturais entre o poder público e os segmentos empresariais que confeccionaram o Plano, e a perspectiva funcionalista que hegemoniza as concepções mobilizadas, profundamente influenciadas por um urbanismo francês (Muniz, 2006). Para ilustrar essa perspectiva funcionalista, cabe citar em torno da função metropolitana, a articulação de dez outras funções, compondo as análises e as proposições do Plano: emprego e renda; industrial e comercial; abastecimento; habitação; educação; saúde; transporte; outros serviços urbanos; organização do espaço; administrativa (Muniz, 2006).

Ao mesmo tempo, um outro elemento importante a destacar nesse período é a existência nos circuitos tecnoburocráticos do staff governamental federal não somente de uma atenção, mas de proposições relacionadas à participação comunitária, o que pode ser percebido na proposta de Lei de Diretrizes Urbanas – LDU, que foi elaborada no Ministério do Planejamento na segunda metade dos anos 1970.

No que se refere aos ativismos, mobilizações, movimentos e lutas sociais, também cabe destacar com mais detalhe essa trajetória. Os anos 1950 presenciam as primeiras “lutas de resistência para garantir o direito de posse da terra” (Braga, 1995, p. 140). Na década seguinte, destaca-se a luta do Pirambu – uma favela na zona oeste da cidade – pela regularização jurídica da posse da terra. Essa luta, que constitui um marco nos movimentos e

nas lutas urbanas da cidade, apoiada pela Igreja Católica e pelo PCB, foi vitoriosa, revelando uma grande capacidade de mobilização e reivindicação (Braga, 1995, p. 141).

Bonduki (1994, p. 118) indica como a partir da Revolução de 1930, o Estado brasileiro assume uma nova perspectiva de intervenção, incorporando setores sociais emergentes como base de sustentação política, principalmente as “massas populares urbanas”. Essa incorporação ocorre através da legislação e das políticas sindicais e trabalhistas e também através de outras políticas sociais, dentre as quais a habitacional, através de três iniciativas do Varguismo: 1) a criação das Carteiras Prediais dos Institutos de Aposentadoria e Previdência em 1938, iniciando a produção direta e o financiamento da habitação popular; 2) a Lei do Inquilinato em 1942, regulando as condições e os preços de locação de imóveis; 3) o Decreto- Lei 58 de 1938, “que regulamentou os loteamentos populares, garantindo a aquisição de terrenos à prestação” (Bonduki, 1994, p. 119).

No período pós-segunda guerra mundial, a intervenção do Partido Comunista Brasileiro (PCB), através dos Comitês Democráticos e Populares (CDPs), adquire importância na constituição de modos específicos de organização e de luta urbana. Nessa perspectiva, Bonduki (1994, p. 132) evidencia a concepção que perpassa a intervenção à época, compondo a herança dos movimentos sociais urbanos no país:

Os comunistas procuravam canalizar a organização e mobilização da população para os canais institucionais que eles passaram a priorizar, ou seja, o Legislativo e o Executivo. Assim, a prática levada adiante pelo PCB de dirigir os problemas ao Estado conseguiu deixar marcas bastante profundas nas organizações de base local. Se durante o período populista é lançada a tese de que o Estado é responsável pela resolução do problema da habitação e das condições urbanas de existência, o papel desempenhado pelos CDPs e pelo PCB é bastante importante para isso. O PCB, até mesmo porque tem como objetivo tomar nas mãos o aparelho de Estado e fortalece- lo, ao contrário dos anarquistas, procurará fazer do Estado o interlocutor válido ao qual a população deve se dirigir para melhorar as condições de habitação. Assim agindo o PCB, ao mesmo tempo que joga a responsabilidade da crise sobre o governo, legitima e fortalece o Estado.

Kowarik e Bonduki (1994, p. 155) avaliando as lutas em São Paulo, em um contexto de expansão dos CDPs, avaliam que estes tornaram-se “núcleos pioneiros de organização local, capazes de sentir os problemas concretos e encaminha-los ao poder público” Mais do que isto, para Kowarik e Bonduki (1994, p. 155-156):

A partir daí, forjaram-se aglutinações que detectavam e priorizavam os problemas da periferia, criando uma tradição reivindicatória e desenvolvendo formas de luta e de organização que passaram a ter no Estado o seu marco referencial (...) A repressão que atingiu o PCB e os CDPs após 1947, entretanto, não fez refluir estes movimentos, nem a mobilização dos moradores. Ao contrário, gerando outras formas organizativas – principalmente as Sociedades Amigos de bairro 9SABs) –,

este tipo de movimento tendeu a crescer na mesma proporção em que crescia aceleradamente a abertura de loteamentos desprovidos de qualquer melhoramento urbano.

Nessa perspectiva, as organizações e os movimentos populares assumem práticas reivindicativas e de demanda de melhorias urbanas em suas áreas de mobilização social. Kowarik e Bonduki (1994, p. 154) avaliando a urbanização, as políticas e os movimentos e as lutas urbanas em São Paulo entre os anos 1940 e meados dos anos 1960 evidenciam características importantes das relações e articulações entre a sociedade civil e a sociedade política no período:

A relação que se estabelece durante o período populista entre, de um lado, a prefeitura e os políticos que dominaram seus aparelhos e, de outro, os setores populares organizados na periferia é nova na história de São Paulo. É uma relação quase sempre baseada numa política clientelista de troca, na barganha entre obtenção de melhorias para o bairro e o apoio eleitoral, sem que fosse colocada em questão a ordem política social e econômica que diferenciava as condições de vida das distintas classes sociais e dos bairros que eles habitavam.