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3. FUNDAMENTOS PARA UMA SOCIOLOGIA DO CAMPO DO PLANEJAMENTO URBANO

3.2. Entre os habitus e as disposições sociais

Passiani (2005) permite compreender como o ingresso e a permanência no campo não é um fato automaticamente associado à distribuição dos diferentes capitais, vinculando-se a percepções, significados, valores e representações que, constituindo-se na própria gênese e evolução do campo, instituem fronteiras, pertencimentos e posições sociais bem definidas, embora geralmente implícitos e/ou invisíveis. Nessa perspectiva, Bourdieu (2004, p. 23),

desenvolve a noção de habitus para evidenciar as categorias sociais que permitem aos indivíduos e coletividades, praticamente e em ato, perceber, representar, classificar e organizar suas ações em interação com os demais agentes sociais. Desta forma, um elemento essencial que perpassa o campo, vinculado aos habitus e disposições sociais, é a idéia da existência de princípios de classificação em disputa entre os agentes.

Nesta pesquisa, entende-se que os habitus evidenciam a existência de disposições sociais que funcionam como princípios diferenciados e diferenciadores, geradores e unificadores das ações sociais. Bourdieu (2004, p. 26) faz referência ao espaço social e aos grupos que nele se distribuem enquanto produtos de lutas históricas nas quais “os agentes se comprometem em função de sua posição no espaço social e das estruturas mentais através das quais eles apreendem esse espaço”. No desenvolvimento de suas concepções, essas estruturas mentais complexificam-se, e Bourdieu (2004, p. 25) passa a entender o habitus como um “sistema de esquemas adquiridos que funciona no nível prático como categorias de percepção e apreciação, ou como princípios de classificação e simultaneamente como princípios organizadores da ação”. Ocorre uma transição, para percepções, significados, representações e estruturas mentais e corporais – as disposições sociais –, evidenciando toda uma dinâmica e processualidade subjetiva que perpassa os processos e as práticas sociais. Neste sentido, é relevante destacar o caráter prático do habitus, o que remete ao fato de “que as estruturas cognitivas não são formas de consciência, mas disposições do corpo”, e que a obediência prestada às injunções sociais “não pode ser compreendida como submissão mecânica a uma força nem como consentimento consciente a uma ordem (no sentido duplo)” (Bourdieu, 2004, p.117). É por isto que o habitus constitui mais do que maneiras de “perceber, julgar e valorizar o mundo”, como aponta Thiry-Cherques (2006, p. 33) ao afirmar que ele articularia ethos, héxis e eidos, distinguindo-os:

(...) ethos, os valores em estado prático, não-consciente, que regem a moral cotidiana (diferente da ética, a forma teórica, argumentada, explicitada e codificada da moral, o ethos é um conjunto sistemático de disposições morais, de princípios práticos); pelo héxis, os princípios interiorizados pelo corpo: posturas, expressões corporais, uma aptidão corporal que não é dada pela natureza, mas adquirida (...); e pelo eidos, um modo de pensar específico, apreensão intelectual da realidade (...), que é princípio de uma construção da realidade fundada em uma crença pré-reflexiva no valor indiscutível nos instrumentos de construção e nos objetos construídos (...).

Já Vasconcelos (2002, p.03) compreende o habitus como uma matriz “determinada pela posição social do indivíduo que lhe permite pensar, ver e agir nas mais variadas situações”, traduzindo estilos de vida, julgamentos políticos, morais, estéticos, e assumindo o

sentido de um “meio de ação que permite criar ou desenvolver estratégias individuais ou coletivas”. O próprio Bourdieu (2004, pp. 21-22) parece assumir essa perspectiva, em alguns momentos, ao fazer corresponder a noção de habitus às “classes de posições”:

A cada classe de posições corresponde uma classe de habitus (ou de gostos) produzidos pelos condicionamentos sociais associados à condição correspondente e, pela intermediação desses habitus e de suas capacidades geradoras, um conjunto sistemático de bens e de propriedades, vinculadas entre si por uma afinidade de estilo (Bourdieu, 2004, p.21).

O habitus é esse princípio gerador e unificador que retraduz as características intrínsecas e relacionais de uma posição em um estilo de vida unívoco, isto é, em um conjunto unívoco de escolhas de pessoas, de bens, de práticas (Bourdieu, 2004, p.21-22).

A questão problemática, na avaliação aqui efetuada, refere-se à afirmação de que o habitus seria “determinado pela posição social do indivíduo”, pois, ao que parece, essa visão reintroduz uma determinação estrutural a priori, que afirmaria uma perspectiva substancialista e negaria a perspectiva relacional defendida por Bourdieu, daí decorrendo um mecanicismo analítico. Tratar-se-ia de um objeto externo, não processual e não inscrito na prática social. A correspondência absoluta e estática entre habitus e posição social nega a compreensão da gênese e da evolução do próprio habitus a partir de uma processualidade associada ao campo, às interações entre os diferentes agentes, reintroduzindo a percepção do agente social como ente isolado, objetal e não relacional.

Na perspectiva aqui defendida, parece haver uma distinção entre a vinculação do habitus a uma posição social e a vinculação do habitus a um campo. Deve-se pensar esta questão quando se percebe que os habitus não são somente princípios diferenciados e diferenciadores, mas também devem permitir, em algum grau, posturas, percepções e representações que gerem reconhecimentos e interações, posto que um campo não se faz somente de iguais. Decorrem disto questões sociológicas e políticas relacionadas, por exemplo, aos dissensos e consensos, às convergências e divergências. Mais do que isto, qual o papel do habitus, no que se refere à capacidade de gerar práticas sociais que permitam a interação e a convivência entre os diferentes, tendo em vista a própria estrutura analítica relacional que distingue o pensamento de Bourdieu? Ao que parece, a concepção descrita na citação seguinte permite re-situar o debate, posto que o habitus é vinculado a um “setor particular do mundo”, o que é distinto de sua vinculação a uma “posição social”:

O habitus preenche uma função que, em uma outra filosofia, confiamos à consciência transcendental: é um corpo socializado, um corpo estruturado, um corpo que incorporou as estruturas imanentes de um mundo ou de um setor particular

desse mundo, de um campo, e que estrutura tanto a percepção desse mundo como a ação nesse mundo (...) E quando as estruturas incorporadas e as estruturas objetivas estão de acordo, quando a percepção é construída de acordo com as estruturas do que é percebido, tudo parece evidente, tudo parece dado. É a experiência dóxica pela qual atribuímos ao mundo uma crença mais profunda do que todas as crenças (no sentido comum) já que ela não se pensa como uma crença (Bourdieu, 2004, p.144).

Da questão teórica levantada, decorre a problematização da própria natureza do habitus. Assumir uma concepção do habitus como unidade e/ou homogeneidade que gera, portanto, representações, percepções e classificações necessariamente unificadas ou homogêneas, além de torná-lo um objeto externo às práticas sociais, e derivar em uma percepção mecanicista da realidade social, nega o caráter relacional do campo e o sentido inventivo inscrito nas práticas sociais que não podem mais ser percebidas como estratégias, tornando-se fatos sociais em um rígido sentido durkheimiano. Ao contrário, se os habitus são mediadores apropriados diferenciadamente por cada agente, a partir das trajetórias e das correlações de força e necessidades inscritas em situação, abre-se espaço para apropriações demarcadas por interpretações, significações e intervenções diferenciadas e diferenciadoras que compartilham, porém, uma base comum.

Além disso, essa perspectiva abre espaço para afirmar a existência de habitus diferentes em disputa no campo, apesar da pressuposição de aspectos comuns que devem perpassar as diferenças. Dito de outra forma, pode-se falar em disposições sociais que detém uma base comum e aspectos diferenciados, adquirindo importância, principalmente em uma situação de transição no campo, a delimitação do comum e do diverso, daquilo que é compartilhado e daquilo que é divergente. Thiry-Cherques (2006, p. 33) ajuda a compreender o que se entende por disposições sociais:

As disposições não são nem mecânicas, nem determinísticas. São plásticas, flexíveis. Podem ser fortes ou fracas (...) São adquiridas pela interiorização das estruturas sociais. Portadoras da história individual e coletiva, são de tal forma internalizadas que chegamos a ignorar que existem. São as rotinas corporais e mentais inconscientes, que nos permitem agir sem pensar. O produto de uma aprendizagem, de um processo do qual já não temos mais consciência e que se expressa por uma atitude “natural” de nos conduzirmos em um determinado meio.

Para aprofundar essa reflexão, pode-se pensar, por exemplo, em distintas matrizes de planejamento urbano convivendo em um campo, e nunca de forma estanque ou pura; pensar, também, em conceitos tais como plano diretor, democracia, participação. Existiria um conceito a priori de plano diretor, de democracia ou de participação? Ou existe apenas um conceito que é construído a partir das matrizes, relações e interações inscritas no campo, a

partir dos confrontos e conflitos, das divergências e acordos, dos dissensos e consensos? Ou existem conceitos diferentes e diferenciadamente apropriados pelos agentes sociais? Ao que parece, a resposta a essas questões remete, mais uma vez, à intuição essencial de Bourdieu: a necessária articulação entre objetividade e subjetividade, entre campo e disposições sociais, posto que não existe uma construção, inclusive conceitual, de plano diretor, democracia ou participação somente enquanto uma disputa subjetiva, existe sim um campo de probabilidades, um campo de possíveis, e de restrições, que encontram sua dinâmica através da intervenção concreta de agentes sociais situados estruturalmente e capazes de participar das lutas sociais. Neste sentido, talvez as disposições sociais permitam não somente a cada agente participar do campo e das lutas, mas também instituir reconhecimentos básicos sem os quais as próprias disputas e debates não poderiam ocorrer. As categorias sociais desvelam-se enquanto instrumentos de luta e os habitus constituem/inscrevem e difundem categorias de percepção, de representação e de classificação.