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Giovanni Sartori, os comitês e a democracia como processo decisório

2. A DEMOCRACIA EM DISPUTA E CONSTRUÇÃO

2.1. A democracia liberal-representativa

2.1.2. Giovanni Sartori, os comitês e a democracia como processo decisório

Nos anos 1970, Sartori (1994, p. 18-19) afirmava que a “democracia ainda tem inimigos; mas, agora, a melhor forma de evitá-la é fazê-lo em seu nome e com seu próprio nome”. A partir desta avaliação, e caracterizando o que denomina de época da “democracia confusa”, este autor assume a tarefa de reconstrução do que denomina de corrente principal ou dominante da teoria democrática, referenciada nos marcos de uma perspectiva liberal, e compreensível a partir de duas chaves analíticas.

A primeira remete ao caráter constituinte das tensões fato-valor na democracia, vinculada aos diálogos entre teorias normativas/prescritivas e descritivas/empíricas da democracia, implícita também uma “teoria da tradução”. Desta forma, o autor afirma que a democracia resulta “de interações entre seus ideais e sua realidade e é modelada por elas: pelo impulso de um deve ser e pela resistência de um é” (Sartori, 1994, p. 24). Desvela-se uma concepção de democracia como invenção social decorrente de escolhas estratégicas, em um jogo onde estão postos, a cada momento, custos, riscos e ganhos para os agentes sociais envolvidos. A partir dessa referência, a segunda chave analítica é histórica, remetendo às

dinâmicas de tentativa e erro, através da materialização das experiências históricas nas palavras/discursos.22

Essa perspectiva abre espaço para a existência de um conjunto de agentes sociais que, a priori, seriam livres para definir, valorativa e normativamente, as concepções e as propostas que caracterizariam ou orientariam a democracia, seus sistemas e suas práticas. Se a democracia é valor, estão pressupostos atores sociais responsáveis pela geração, difusão, afirmação, negação e concretização empírica de idéias e ideais que fundam, dinamizam e reproduzem – ou não – a democracia enquanto um fato social.

A democracia torna-se uma disputa entre agentes sociais que, mobilizando diferentes idéias e ideais, manejam conceitos que expressam significações, valores e normas diversos. Os conceitos em disputa não são entendidos como abstrações mentais, e sim rememorações de experiências sociais, trazendo em si um lastro histórico que carregaria uma objetividade socialmente situada e não poderia, de forma abstrata, ser desprezada. Aqui se evidencia o lastro ou vínculo social que, ao ser articulado à noção de escolhas sociais, mantém uma perspectiva liberal de compreensão do mundo, situando a liberdade em um contexto social demarcado por uma objetividade utilitarista, que associa os processos de tentativa e de erro a uma racionalidade instrumental, onde o agente avalia custos e benefícios.

Posto que é na política que se reproduzem as mediações e as articulações entre as preferências, as potencialidades, as restrições e as vontades, as reflexões de Sartori (1994) introduzem um traço de pragmatismo no debate teórico, ao enfatizar as relações e os vínculos entre o ideal e o possível, em uma dinâmica de constituição do real que perpassa a processualidade de invenção da democracia. Porém, ao mesmo tempo, esses condicionamentos sociais, potencialidades e restrições são percebidos de forma genérica e abstrata, ao não articularem teoricamente relações e estruturas sociais. No máximo, a construção social da democracia vincula-se a lastros intersubjetivos – idéias e ideais gerados e transmitidos socialmente – e a processos, também abstratos e genéricos, de escolhas articulados a riscos, custos e benefícios, tentativas e erros. No âmbito das experiências sociais, processos e dinâmicas de tentativa e erro seriam capazes de afirmar as escolhas sociais empiricamente mais eficazes no que se refere aos custos e benefícios articulados aos sistemas e às práticas políticas.

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“A estrutura da democracia repousa, portanto, em idéias e ideais moldados e escolhidos (mantidos ou descartados) pela corrente principal do discurso intelectual que começou na Grécia antiga e que foi seletivamente transmitido de geração a geração através de palavras (conceitos) que são rememorações de experiências” (Sartori, 1994, p. 14).

Ao mesmo tempo, Sartori (1994, p. 42) problematiza a democracia como governo ou poder do povo.23 Afirma a concepção de povo enquanto uma parte maior expressa por um princípio de maioria limitada.. Neste sentido, o princípio da maioria limitada indica que “nenhum direito de nenhuma maioria pode ser “absoluto” (isto é, ilimitado)”, derivando a definição da democracia “como um sistema de governo de maioria limitado pelos direitos das minorias” (Sartori, 1994, p. 44-45).

Sartori (1994, p. 57), mesmo questionando a definição etimológica da democracia afirma que ela fornece os alicerces de compreensão, em alguns aspectos importantes: 1) estabelecendo um princípio relativo às origens e à legitimidade do poder, indicando que o “poder só é legítimo quando é realmente concedido de baixo, só quando é uma emanação da vontade popular e só quando repousa em um consenso básico expresso”; 2) afirmando que a sociedade tem precedência sobre o Estado, que os governados e o governo devem aceitar o “princípio de que o Estado está a serviço dos cidadãos, e não os cidadãos a serviço do Estado, que o governo existe para o povo, e não vice-versa”.

Nessa perspectiva, Sartori (1994, p. 52), distinguindo entre a titularidade e o exercício do poder, afirma que as democracias modernas dependeriam de poder limitado da maioria, de procedimentos eleitorais e da transmissão do poder dos representantes. Desta forma, abre espaço para defender uma compreensão da democracia como “processo decisório das decisões coletivizadas”. O que o autor compreende por decisões coletivizadas é explicado por ele próprio (Sartori, 1994, p. 287-288):

Decisões individuais, grupais e coletivas referem-se todas a um sujeito, a quem toma as decisões. As decisões coletivizadas são, ao invés, decisões que se aplicam e são impostas a uma coletividade independentemente de serem tomadas por uma pessoa, por algumas ou pela maioria. O critério de definição não é mais quem toma as decisões, mas seu alcance: seja quem for que tome as decisões, decide por todos. Isso significa que as decisões coletivizadas são políticas no sentido de serem (a) soberanas; (b) inescapáveis; e (c) sancionáveis. Soberanas no sentido de poderem se sobrepor a qualquer outro poder; inescapáveis (...) porque se estendem até as fronteiras que definem territorialmente a cidadania; e sancionáveis no sentido de serem sustentadas pelo monopólio legal da força.

A partir dessas reflexões, Sartori (1994, p. 289) centraliza suas reflexões na questão, tornada operacional ou pragmática, da coletivização ou não de determinadas decisões,

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Questiona o sentido etimológico do termo “povo” ao fazer referência a seis interpretações da palavra: 1) todo o mundo; 2) grande parte indeterminada, muitos; 3) classe inferior; 4) entidade indivisível, um todo orgânico; 5) uma parte maior expressa por um princípio de maioria absoluta; e 6) uma parte maior expressa por um princípio de maioria limitada (Sartori, 1994, p. 44-45).

referindo-se a dois questionamentos: 1) quando é necessário ou conveniente coletivizar uma área de decisões? 2) como devemos proceder ao coletivizar as decisões? Sua resposta (Sartori, 1994, p. 289) remete a dois axiomas que vinculam “custos decisórios” e “riscos” nas decisões coletivizadas:

Axioma 1: Toda decisão de grupo ou coletiva tem custos internos, isto é, custos para os próprios tomadores de decisões, em geral denominados custos de tomada de decisões.

Axioma 2: Toda decisão coletivizada envolve riscos externos, isto é, riscos para os destinatários, para quem recebe as decisões de fora (...).

Desta forma, para Sartori (1994, p. 289-290), os custos decisórios são custos intragrupo – internos e procedimentais –, referindo-se apenas a quem decide, enquanto os riscos externos são riscos extragrupo, envolvendo prejuízos que podem atingir a coletividade para quem as decisões são tomadas. Nessa perspectiva, para Sartori (1994, p. 289-290) os custos internos referem-se aos custos do processo de decidir – de tempo, energia e coisas do gênero – e não às perdas e ganhos dos membros do órgão decisório. Da mesma forma, quando se refere aos riscos externos está fazendo referência a “um tipo particular de incerteza, qual seja, uma potencialidade percebida em sua periculosidade” (Sartori, 1994, p. 290). Além disso, para Sartori (1994, p. 289-290), como as decisões coletivizadas envolvem riscos externos, a questão política essencial torna-se exatamente aumentar a probabilidade de “resultados satisfatórios” e minimizar a probabilidade de “resultados danosos”.24

A coletivização de uma decisão implica a criação de um órgão decisório e de um grupo externo exposto ao risco, o que leva Sartori (1994, p. 292) a afirmar que ao aumentar o número de pessoas que decide, ocorre um aumento nos custos das decisões e uma redução nos riscos externos. Deriva a questão essencial da busca de um equilíbrio ótimo entre os riscos externos e os custos decisórios. Para pensar essa questão, agrega três variáveis: 1) o número de pessoas que toma as decisões; 2) o método de formar o órgão decisório: como é recrutado ou designado e qual é sua composição ou natureza; e 3) a regra de tomada de decisões: os princípios e procedimentos para a tomada de decisão (Sartori, 1994, p. 294).

Sartori (1994, p. 298) avalia que a representação seria o grande instituto político que permitiria a redução drástica dos riscos externos, sem agravar os custos decisórios, ao promover a redução dos representados para um pequeno grupo de representantes. Desta

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Sartori (1994, p. 290) destaca a existência de dois tipos de risco político: I) riscos de opressão; II) riscos decorrentes da incompetência, estupidez ou interesses sinistros.

forma, a democracia, mais uma vez, desloca a sua centralidade para o método de formação do órgão ou do sistema decisório (Sartori, 1994, p. 298).

O autor contrapõe à democracia majoritária o que denomina de democracia consociativa. Nessa vertente, Sartori (1994, p. 304-305) destaca a importância dos comitês como órgãos decisórios, indicando a sua dispersão e o papel crucial que desempenham no interior de qualquer sistema político. Sartori (1994, p. 304-305) distingue três características que constituiriam um comitê: a) um grupo pequeno de interação face a face; b) um grupo durável e institucionalizado (institucionalizado no sentido de sua existência ser reconhecida, legal ou informalmente e pelas tarefas a ele atribuídas; durável quando seus membros agem como se fossem permanentes); c) um grupo que toma decisões em relação a um fluxo de decisões, indicando um contexto decisório contínuo que difere de decisões específicas sobre questões específicas. Além disso, Sartori (1994, p. 305-306) qualifica como os comitês realmente funcionam, indicando que não funcionam nem com base na regra da maioria nem com base na regra da unanimidade, caracterizando o que denomina de código operacional:

Em geral, os comitês chegam a um acordo unânime porque cada componente do grupo espera que aquilo que concede numa questão lhe seja devolvido, ou retribuído, em uma outra questão. Como esse é um acordo tácito, pode ser chamado de código operacional.

As noções de ajuda mútua, negociação, solução de contemporização e acordo também se referem a esse modus operandi (...) O que é peculiar aos comitês é que seus membros se envolvem em trocas que vão além do momento presente, tendo especialmente em vista um tempo futuro (...) compensação recíproca retardada.

Para Sartori (1994, p. 307-308), os comitês revelariam um “um sistema de tomada de decisão eficiente e de uso muito difundido, porque gira em torno de incentivos e recompensas muito realistas”, desvelando um processo baseado “na compensação recíproca retardada”. Fazendo referência à teoria dos jogos, Sartori (1994, p. 309) articula nesse “sistema de compensação” tanto pagamentos internos como pagamentos externos ou laterais, todos compreendidos como mecanismos de coordenação (os pagamentos laterais são “concessões que cada comitê tem de fazer aos outros comitês”). Nessa perspectiva, Sartori (1994, p. 309- 310) afirma:

Quanto maior a complexidade da rede (...), tanto maior a necessidade de ajustamentos automáticos ou quase automáticos. Isso significa que a maior parte dos pagamentos laterais não é negociada de forma explícita, mas ocorre simplesmente em termos de reações antecipadas. Os comitês, como os indivíduos, calculam de antemão, implicitamente, as reações prováveis de terceiros afetados por suas decisões.

Em síntese, um sistema de comitês atua, no interior de cada comitê, na base de compensações (ou trocas) recíprocas retardadas e, qua sistema, na base de pagamentos laterais guiados em grande parte pelas reações antecipadas. Os pagamentos internos (compensações recíprocas) conduzem a decisões unânimes e a resultados de soma positiva. Os pagamentos laterais externos representam os custos, mas também a condição sine qua non de um processo espontâneo (em contraposição a imposto) de ajustamento e coordenação.

Para Sartori (1994, p. 310-311), os comitês, entendidos como formadores ou tomadores de decisão, estariam em plena multiplicação na contemporaneidade, avaliando que essa “proliferação dos comitês maximiza a democracia participativa abrindo mais espaço para a ‘participação real’”. Nessa perspectiva, finaliza-se com as palavras do próprio Sartori (1994, p. 316-317), quando afirma:

Há muito a dizer em favor dos comitês. Em primeiro lugar, só pequenos grupos face a face, com um código operacional bem estabelecido, mas extremamente flexível (compensações recíprocas podem ser adiadas) permitem uma elaboração de decisões “pensada” e discutida. Em primeiro lugar, então, (a) pode-se dizer que os comitês são a unidade ótima de formação das decisões. Além disso, (b) os comitês não apenas levam em conta a intensidade desigual das preferências, mas usam-na de forma eficiente. E quando os “comitês de representantes” se constituem, então se pode atribuir os seguintes méritos adicionais a um sistema de comitês; (c) permitem uma redução drástica dos riscos externos (de opressão) sem aumento, ou com um aumento mínimo, dos custos decisórios (em comparação aos custos da assembléia); e (d) produzem resultados de soma positiva para a coletividade em geral (distribuição entre o demos). Por fim, mas igualmente importante, as minorias substantivas (étnicas, religiosas ou outras), inexoravelmente derrotadas quando as decisões chegam ao voto majoritário, encontram nos comitês a situação onde (e) suas reivindicações mais intensamente preferidas têm uma boa probabilidade de obter aprovação.