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Tensões e confluências entre a reforma urbana e o planejamento estratégico

MAPA 1 – Municípios atendidos pelo PROURB/CE

5. ENTRE A REFORMA URBANA E O PLANEJAMENTO ESTRATÉGICO

5.4. Tensões e confluências entre a reforma urbana e o planejamento estratégico

No decorrer da primeira década do século XXI, o campo do planejamento urbano parece adquirir contornos mais contraditórios, onde as diferentes matrizes e vertentes parecem se confundir ou misturar em alguns momentos. Porém, antes de abordar essa questão, cabe indicar alguns condicionamentos sociais importantes que, em sua evolução, interferem nesse campo.

Um primeiro deles se refere ao fenômeno da mundialização do capital, que evidencia, em articulação com a emergência da política neoliberal entre os anos 1980 e 1990 e com a difusão da reestruturação produtiva contemporânea, a instituição de novos padrões de acumulação e regulação do capital e do trabalho. Cabe também considerar que no caso brasileiro enquanto os anos 1990 vivenciaram uma hegemonia neoliberal, a partir dos Governos Lula, mantêm-se alguns pontos do programa neoliberal, mas assume-se concepção diferenciada de Estado e de sociedade, onde a intervenção estatal é fomentada por referências neo-institucionalistas e neo-desenvolvimentistas.

Dois aspectos iniciais podem ser destacados. O primeiro se refere às formas recriadas de territorialização e desterritorialização que impactam profundamente os processos e as dinâmicas de produção social do espaço urbano, articulando forças, agentes e condicionamentos de diferentes escalas (global, internacional, nacional, regional, estadual, municipal, local), e tornando mais complexos os jogos econômicos e as lutas políticas. Neste sentido, apesar das crises e dos ciclos que perpassam o processo de reprodução do capital, em suas diferentes interfaces e escalas, multiplicam-se as potencialidades de apropriação privada e reprodução do capital, através de uma infinidade de formas de investimentos, financiamentos, associações e mecanismos de circulação de capital público e privado. Aqui entra em cena um outro elemento importante. Trata-se das conseqüências e impactos vinculados à financeirização da economia, com o predomínio e liderança do capital financeiro, com os seus agentes centralizando processos e dinâmicas de articulação de negócios e do processo de reprodução do capital. Neste sentido, multiplicam-se as formas assumidas pelo capital e as oportunidades de negócios, intereferindo diretamente no processo de produção social do espaço urbano. Para exemplificar, é possível indicar articulações, não isentas de tensões e contradições, entre vários tipos de capital bancário, turístico, imobiliário e industrial.

Na cidade de Fortaleza, assim como em diversas outras capitais do nordeste brasileiro, os impactos desse novos padrões de acumulação e regulação do capital atingem

profundamente os agentes sociais, reconfigurando os grupos, segmentos e classes sociais pertencentes ao campo do planejamento urbano. Neste sentido, cabe citar, a presença cada vez mais ampla de capitais de outras origens (nacionais e internacionais), com âmbitos de intervenção também diferenciados e impulsionando diversos tipos de associações, parcerias e negócios, em áreas como a indústria da construção civil e o turismo.

Essa trajetória adquire maior inteligibilidade se situado em um contexto de descontinuidade histórica no fortalecimento institucional técnico e burocrático do planejamento urbano no país, durante o período de transição democrática e hegemonia neoliberal, com a sua retomada no século XXI, a partir dos Governos Lula. Neste sentido, trata-se de um contexto totalmente diferenciado, em relação aos anos 1970, demarcados estes pelos governos autoritários e ditatoriais, enquanto os Governos Lula, de esquerda, buscaram constituir uma institucionalidade em sintonia com a Constituição de 1998. Ou seja, articulando democracia representativa e partipativa, valorizando a co-gestão e constituindo uma institucionalidade estatal democrática e participativa. Neste sentido, a constituição do Ministério das Cidades é um elemento chave nesse processo, associado à formulação e aplicação das políticas e dos sistemas de habitação, transporte e saneamento ambiental, à criação do Conselho Nacional das Cidades e à existência de um conjunto de fundos públicos, programas, projetos e políticas setoriais, tais como os Planos Diretores e os Planos Locais de Habitação de Interesse Social (PLHIS).

Também é importante pontuar, nesse contexto mais geral, dois momentos importantes dos Governos Lula, com impactos diretos no campo do planejamento urbano no país: a mudança no comando do MCidades e a efetivação do PAC. O primeiro refere-se à saída de Olívio Dutra do Ministério das Cidades (PT), assumindo Márcio Fortes (PP). Essa mudança fragilizou a presença direta dos agentes defensores e a hegemonia do ideário da Reforma Urbana no interior do Estado brasileiro. Aparentemente, isto não significou um abandono da concepção da Reforma Urbana, mas abriu espaço para uma fragilização institucional do MCidades no âmbito do Governo Federal e de das tentativas de implementação mais radicais de uma concepção reformista de planejamento, gestão e políticas urbanas. Neste sentido, três deslocamentos precisam se apontados. O primeiro é a sobreposição entre as ações desenvolvidas pelo MCidades e as ações do PAC, gerando dualidades e tensões vinculadas. O segundo se refere à fragilização do Conselho das Cidades, que vinha paulatinamente se fortalecendo enquanto uma instância efetivamente inovadora do ponto de vista da democratização do sistema político brasileiro, diante dos padrõres tradicionais. O terceiro se

refere a uma dinâmica de intervenção urbana bastante demarcada por intervenções urbanas pontuais através de instrumentos de políticas setoriais e com caráter intergovernamental, principalmente planos, programas e projetos.

Neste sentido, através de uma perspectiva de intervenção urbana onde as articulações, alianças e parcerias entre poder público e capital privado são bastante amplas e capilarizadas, promove-se uma fragmentação que dificulta a democratização política, o controle social e a participação popular mais qualificada. É verdade que permanecem subsistindo as exigências de participação social, porém tendencialmente adquirindo um sentido formal, mais com um caráter restrito de governabilidade, e não efetivo em suas potencialidades de transformação estrutural do sistema político e das relações sociais. Além disso, mantêm-se o sentido essencial de geração, difusão e usufruto de direitos urbanos, mas com um deslocamento no sentido desses direitos urbanos, que perdem seu vínculo essencial com a instituição de uma cidadania democrática, esvaziando-se ao tornarem-se serviços públicos a serem acessados pelos indivíduos e famílias.

No primeiro momento é Ministro Olívio Dutra, ex-governador do Rio Grande do Sul, estado reconhecido por suas inovações democráticas e participativas, dentre as quais, as experiências de orçamento participativo. Neste período, grande parcela das lideranças nacionais vinculadas ao MNRU, acadêmicas e dos movimentos sociais, participa do projeto, com alguns engajando-se diretamente no Ministério. Em um momento posterior, em função das alianças partidárias, o PT é alijado do Mcidades, assumindo Márcio Fortes, vinculado ao Partido Progressista – PP, decorrendo a saída de vários quadros de segundo e terceiro escalão e a fragilização do pólo da reforma urbana, defensor de mudanças mais profundas e radicais. Porém, continua o processo de fortalecimento institucional, com a elaboração e aprovação de legislações, políticas e recursos financeiros. Outro momento, que efetua uma passagem que poderíamos caracterizar como de uma perspectiva democrática e participativa para uma perspectiva desenvolvimentista de perfil tecnicista, se articula ao lançamento e evolução do Plano de Aceleração de Crescimento – PAC. Neste novo contexto, parcela relevante dos recursos financeiros do MCidades é deslocada para o PAC, saindo do controle desse Ministério e, por conseqüência, das potencialidades de acesso a esses recursos através de processos institucionalizados que contemplassem um caráter democrático pautado inclusive pela participação popular.

Destaque-se que a base material dessa processualidade política onde a questão democrática e participativa encontra espaço – de forma ambígua –, articula alguns

movimentos importantes, a partir dos anos 1980. Dentre eles, a existência de financiamento externo crescente para programas e projetos urbanísticos e habitacionais a partir de organismos como o Banco Mundial. Também associado a isto uma complexificação dos arranjos institucionais entre agentes públicos e privados, na forma de consórcios e parcerias, por exemplo. Além disso, e envolvendo diferentes agentes que atuam no mercado imobiliário (empreendedores, proprietários, construtoras, etc.), agentes privados que atuam em diferentes escalas territoriais efetivam variados tipos de vínculos financeiros, administrativos e institucionais, tendencialmente efetivando o domínio de grandes empresas no território de Fortaleza, a partir das duas últimas décadas. Isto se associa a projetos habitacionais com formatos verticais e horizontais, a construção e gestão de torres de serviços e de negócios e a grandes centros comerciais e shopping centers, a construção e operação de grandes equipamentos urbanos públicos e privados e de grandes estruturas urbanísticas e também associadas ao turismo. O século XXI aprofunda e amplia esse movimento através de programas e projetos como o “PAC – Programa de Aceleração do Crescimento” e o “Minha Casa, Minha Vida”, além de uma infinidade de outros, vinculados a diversos ministérios e constituindo articulações entre as esferas governamentais federal, estadual e municipal. Esse movimento, que amplifica as potencialidades de negócios e reprodução do capital, também é aprofundado e ampliado através dos chamados grandes eventos, tais como o Pan-Americano do Rio de 2007, a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016, todos impulsionando intervenções urbanas, carreando recursos, oportunidades de negócios e de apropriação e potencialidades de reprodução do capital, com bastante antecedência.

Por fim, um outro elemento que transparece nesse contexto de ambigüidades, dualidades e tensões entre as matrizes da reforma urbana e estratégica no campo do planejamento urbano no país, é a centralidade da articulação dos processos de produção social do espaço urbano a elementos essenciais do planejamento estratégico mercadófilo, destacando-se: I) a articulação, bastante presente nas capitais nordestinas, e particularmente em Fortaleza, ao turismo de negócios e de grandes eventos; II) a articulação à atração de investimentos e negócios; III) a mobilização das práticas de requalificação urbana, inclusive em seus sentidos de gentrificação. Esses três sentidos essenciais muitas vezes tornam-se predominantes no processo de produção social do espaço urbano, desqualificando, fragilizando ou negando decisões e instrumentos de planejamento urbano, tais como o Plano Diretor, embora possam também ocorrer resistências. De qualquer forma, evidenciam-se indícios relevantes de como e por que muitas vezes o Plano Diretor, e outros instrumentos,

tornam-se peças formais, não aplicadas, ao contrário fragilizadas propositalmente, posto que não se adequam aos interesses e concepções hegemônicas dos agentes sociais presentes no campo do planejamento urbano.

6. EVOLUÇÃO TERRITORIAL E PLANEJAMENTO URBANO EM