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Arte e ciência, liberalismo e intervencionismo na Primeira República

MAPA 1 – Municípios atendidos pelo PROURB/CE

4. GÊNESE E EVOLUÇÃO DO CAMPO DO PLANEJAMENTO URBANO

4.2. Do urbanismo ao planejamento urbano

4.2.1. Arte e ciência, liberalismo e intervencionismo na Primeira República

Já ao final do século XIX, evidencia-se um cenário onde o controle urbano fundamentado no saber científico e técnico torna-se componente essencial do discurso de segmentos sociais, políticos e profissionais emergentes. O acesso ao saber profissional, científico e técnico, aparece como requisito para intervenção qualificada e legítima na construção e na estruturação urbanas e, mais do que isto, pressuposto para ingresso em um campo que permite ou interdita as falas e as práticas e que é demarcado por tensões e conflitos entre diferentes segmentos.

O fenômeno da racionalização evidencia o espaço urbano enquanto uma ordem a ser constituída através de controles e de intervenções que associam mediações jurídicas, institucionais, técnicas e artísticas, pressupondo a existência de agentes qualificados para tal

exercício e derivando em legislações, projetos e planos que devem regular ou controlar o espaço urbano em sua expansão, remodelação, organização, etc. Caracteriza-se um momento demarcado pela constituição e fortalecimento de agentes sociais com saberes e práticas próprios, inclusive na América Latina, em vinculação com a Europa e com os EUA.

No Brasil, esse movimento associou-se à produção e circulação de manuais e tratados de urbanismo, à criação de instituições e organizações que articularam diferentes segmentos sociais e profissionais (engenheiros, médicos, advogados, literatos, urbanistas e militares) debatendo problemas urbanos e à existência de profissionais legitimados e de uma militância intelectual com espaço nas grandes cidades brasileiras (Ribeiro, 1996). Esse processo articulou gerações diferenciadas, indivíduos emergentes e personalidades ilustres com intervenção acadêmica e profissional reconhecida publicamente, conjugando um intercâmbio entre diferentes especialidades profissionais (arquitetos, engenheiros, médicos, etc.) e o fortalecimento paulatino dos arquitetos e urbanistas nesse cenário.

Neste contexto, Guimarães (1996, p. 123; 127; 129) evidencia os embates e confrontos entre a modernização e o tradicionalismo ao avaliar a intervenção de Aarão Reis, engenheiro vinculado à Escola Politécnica do Rio de Janeiro e nome importante no projeto de Belo Horizonte, capital mineira em substituição a Ouro Preto a partir de 1893:

(...) pretendia Aarão Reis construir uma cidade protótipo do urbanismo mais avançado da época, cuja concepção seria a base e o limite da sociedade que desejava fazer existir – moderna, organizada, com funções definidas e espacialmente localizadas.

O urbanismo europeu, especialmente o francês, se revela no projeto de Aarão Reis por um conjunto de elementos, dos quais o mais notável é a concepção de uma cidade fechada, definida pelo desenho, sem considerar outros fatores que não a própria idealização da cidade. A preocupação central era a concretização de uma cidade projetada, utópica, cujo processo de ocupação se orientaria por princípios da racionalidade técnica, sem levar em conta, no entanto, a dinâmica das forças sociais, o que gerou críticas e trouxe problemas à implementação do modelo.

Já no início do século XX, portanto, é possível perceber como tensão constitutiva essencial ao campo do planejamento urbano, o descolamento das intervenções, concepções e práticas urbanas das relações, estruturas, agentes e forças sociais.

Os embates sócio-políticos dentre as diversas concepções de espaço e intervenção urbana e os variados agentes sociais são também percebidos por Moura Filha (2000, p. 69- 71), que faz referência às divergências entre a Comissão de Melhoramentos da Cidade do Rio de Janeiro, composta por engenheiros e nomeada pelo governo imperial para elaborar um

plano de reformas para a capital, e outros agentes urbanos, como por exemplo o engenheiro Luís Rafael Vieira Souto que:

Acusava ainda a Comissão de transplantar para o Rio de Janeiro, as disposições que regiam a construção das casas de Paris, sem observar a pertinência dessas para as cidades brasileiras.

Para Vieira Souto, era preciso adotar medidas que garantissem o padrão das edificações, cabendo à Câmara a organização de um minucioso código que disciplinasse a construção dos prédios particulares, e a regulamentação dos profissionais atuantes na cidade, exigindo a qualificação dos mesmos.

Algumas hipóteses analíticas geradas a partir da análise desse contexto, e dos conflitos indicados, podem ser relevantes para produzir indícios investigativos para a pesquisa. Dentre estes, o aprofundamento do controle urbano através do saber técnico-profissional; a articulação do urbanismo a princípios arquitetônicos em disputa de acordo com diferentes escolas; a relação entre as concepções e as propostas geradas no exterior e as condições e adequações necessárias ao cenário nacional/local; as relações entre os agentes privados – e suas propriedades – e o poder público no que concerne à regulação e liberdade de intervenção; os conflitos entre o poder executivo e o poder legislativo; os conflitos entre técnicos do poder público e técnicos de outras entidades ou autônomos; e a constituição de um lugar profissional que reposiciona e ressignifica as posições e as intervenções, inclusive confrontando saberes e práticas empíricos/populares e saberes e práticas científicos/acadêmicos. Para exemplificar esta última questão apontada, cabe trazer Moura Filha (2000, p. 71-72) que indica:

Para reformar as cidades como se pretendia então, solicitava-se cada vez mais a presença de profissionais que dominassem os novos recursos da técnica e estivessem a par das mais recentes concepções de cidade e de arquitetura. Os mestres de obras e construtores que, sem qualquer tipo de formação profissional, atuavam predominantemente na edificação do meio urbano, passavam a ser combatidos pelos engenheiros e médicos que atribuíam à falta de formação profissional daqueles, uma grande parcela da precariedade das nossas construções.

Esse processo de fortalecimento da técnica, tendência internacional, associa-se à institucionalização do campo através de referenciais científicos, técnicos e profissionais. Em 1913 foi criada, na França, a Sociedade dos Arquitetos Urbanistas, renomeada em 1919 com o nome de Sociedade Francesa dos Urbanistas. Bruant (1996, p. 167), destaca como Donat Alfred Agache, arquiteto francês formado na Escola de Belas-Artes de Paris em 1905, foi uma das figuras-chave na institucionalização do urbanismo na França, entre as primeiras décadas do século XX e até a Segunda Guerra Mundial. Bruant (1996, p. 167; 170) descreve os

objetivos da SFU, através de um artigo publicado em 1913, onde o próprio Agache caracterizou o que compreendia como urbanismo:

(...) ciência que trata do planejamento, das reformas, das sistematizações, dos embelezamentos e das expansões a serem promovidas nas cidades” e permitir aos seus membros “estudar, em conjunto, tudo o que diz respeito ao futuro das cidades; reunir uma documentação técnica e mantê-la constantemente atualizada; estabelecer relações com grupos estrangeiros similares; organizar congressos, centralizar suas resoluções e perseguir suas realizações.

O urbanismo é uma nova ciência da construção e do planejamento das cidades (...) É uma ciência de aplicação, pois possui, essencialmente, uma utilidade prática: controlar o desenvolvimento e o crescimento das cidades (...) Esta ciência baseia-se num corpo de doutrinas capaz de tornar operacionais os conhecimentos e saberes constituídos no encontro e na fusão das diversidades técnicas e disciplinares (...) O urbanismo integra o conhecimento dos técnicos, do sociólogo, do engenheiro, do legista e, sobretudo, do higienista (...).

É importante situar esse discurso em um contexto que abrange o século XIX e o início do século XX, particularmente na França. As percepções e as representações hegemônicas pós-revolução francesa apontavam para uma visão dual, com a existência de "duas Franças": uma civilizada, culta, herdeira da Revolução e do espírito iluminista e outra selvagem, rude, conservadora e vinculada ao Ancien Régime. A partir dos anos 1880, através da Terceira República, foi gerado um projeto da transformação da sociedade, vinculado à descoberta de leis científicas que presidiriam o destino das sociedades e ao solidarismo, que derivaria, em um contexto de confronto com as estratégias socialistas revolucionárias, na constituição do reformismo político e do Estado de Bem-Estar Social. Nesse projeto, a educação e a universidade adquirem grande importância, derivando no fortalecimento da academia e na criação de novas especialidades e disciplinas científicas e profissionais. Desta forma, ao analisar o final do século XIX, Moura Filha (2000, p. 72) indica como o ideário da reforma urbana, à época, vincula-se ao progresso material e à constituição de uma sociedade civilizada:

A dualidade, cidade atrasada versus cidade moderna, começava a se impor, passando a ser o principal argumento utilizado, para divulgar os benefícios que uma reforma urbana podia gerar, abrindo caminhão para o progresso material e para a construção de uma nova sociedade detentora de valores, atitudes e comportamentos, característicos de um povo civilizado (...).

Nesse contexto, a intervenção do educador e do profissional – muitas vezes o mesmo indivíduo – adquire um significado moral essencial e um papel central na reforma social, posto que entendidos enquanto portadores de uma cultura "civilizada e moderna" que deve ser difundida para todo o país, o que tem rebatimentos incontestes para o urbanismo e o urbanista.

Nesse cenário de formação de quadros para a vida social e política e de disseminação do espírito científico, os urbanistas lutam pela conquista de uma posição importante no cenário político e público (Mucchielli, 2001; Ortiz, 2003). Neste cenário, no processo que qualifica como decomposição e recomposição das representações, Topalov (2006, p. 36), destacando o papel essencial que passam a cumprir a ciência e a administração, evidencia a constituição de instituições e de agentes sociais modernos:

A ciência e a administração modernas estão em mãos de homens novos. O notável ilustrado, fundador da reforma social, cede seu lugar ao especialista. Cada nova profissão elabora uma tecnologia que lhe é própria, reivindica uma legitimidade científica específica e se afirma com a criação de associações que apregoam sua autonomia e de institutos de formação que organizam sua reprodução.

É nesse contexto, que Agache afirma que o “urbanismo não é somente uma Arte e uma Ciência, é, antes de tudo, uma filosofia social, pois é fato que o econômico e o social intervêm nitidamente na criação, no desenvolvimento e na evolução das cidades” (Bruant, 1996, p. 174). A influência sociológica é patente nessa perspectiva urbanística, quando se refere aos elementos sociais que determinam seu nascimento, crescimento e decadência, referindo-se à existência de uma patologia e uma terapêutica urbanas. Esta articulação se torna explícita em abril de 1935, quando Agache caracteriza o urbanismo enquanto uma sociologia aplicada, sendo necessário que o arquiteto assimile um conjunto de conhecimentos sociológicos para que se torne urbanista (Bruant, 1996, p. 182).

No Brasil, já a partir de meados do século XIX, o caráter acadêmico da formação se tornou importante para qualificar e legitimar as intervenções racionalizadoras no espaço urbano:

(...) surgia um campo de trabalho para os profissionais formados em instituições científicas brasileiras e de outros países, e, como conseqüência, as instituições de ensino no Brasil buscavam se adaptar às exigências da época, reformando a estrutura dos seus cursos e disciplinas. Como exemplo, a Real Academia Militar, criada em 1810, apresentando o inconveniente de um ensino conjunto militar e civil, foi desdobrada em 1858, em duas escolas: a Escola Militar e a Escola Central de Estudos Científicos e de Engenharia, que a partir de 1874, passou a denominar-se Escola Politécnica. O ensino técnico francês servia então de referencial (...) formava os arquitetos cada vez mais atuantes e preparados para ocupar o lugar dos antigos construtores e mestres de obras (...) (Moura Filha, 2000, p. 77).

Lira (1999, p. 50-51) percebe o sentido amplo de constituição de saberes e práticas profissionais:

Trata-se de um momento de afirmação do pensamento urbanístico como campo disciplinar isolado. Isto é, um momento em que apenas começa a constituir a sua

literatura, os seus referenciais metodológicos, o seu vocabulário, valendo-se para tal de um prestígio recentemente conquistado ante as administrações públicas para intervir, coordenar e planejar intervenções nas cidades.