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2. A DEMOCRACIA EM DISPUTA E CONSTRUÇÃO

2.2. Entre o liberalismo e o pluralismo

A vertente pluralista da democracia representa uma alternativa às concepções que enfatizam visões dualistas da realidade política, compreendidas aqui como aquelas que articulam o indivíduo e o Estado como únicos agentes políticos existentes. Neste sentido, tendem a analisar positivamente a presença de agentes sociais nomeados como associações, comunidades, grupos e lobbies. Bobbio (1993, p. 928) caracteriza o pluralismo ao afirmar:

A luta que o Pluralismo trava tem sempre duas frentes: uma contra a concentração de todo o poder no Estado, outra contra o atomismo. É uma luta travada em nome da concepção de uma sociedade articulada em grupos de poder que se situem, ao mesmo tempo, abaixo do Estado e acima dos indivíduos, e, como tais, constituam uma garantia do indivíduo contra o poder excessivo do Estado, e, por outro, uma garantia do Estado contra a fragmentação individualista.

2.2.1. Tocqueville e o pluralismo democrático

Para Bobbio (1993, p. 930) a vertente clássica do pluralismo, associada a Tocqueville, enfatiza o vínculo entre a democracia e o caráter associativo inscrito na sociedade, além da multiplicidade de centros de poder como elemento que fortalece as dinâmicas de integração e coesão social, a produção e a difusão de consensos, a mediação e o equacionamento de tensões e conflitos.

Bóron (1994, p. 127-128) avalia que para Tocqueville a democracia expressaria uma condição social na qual prevalece o “princípio e a prática da igualdade”, remetendo a uma ordem social oposta à ordem aristocrática, que se caracterizaria “por uma situação estrutural de privilégio e desigualdade institucionalizadas”. Nessa interpretação, as raízes da democracia são buscadas na sociedade civil e não na sociedade política, caracterizando o deslocamento de um politicismo juridicista para um societalismo (Boron, 1994, p. 129; 145).

Tocqueville (1979, p. 193) interpreta a fundação dos Estados Unidos como expressão da democracia, percebendo nessa experiência a influência do puritanismo, entendido enquanto teoria política e doutrina religiosa. Desta forma, afirma como princípios democráticos, “reconhecidos e dispostos nas leis da Nova Inglaterra”, a intervenção do povo nos negócios públicos, a votação livre das leis tributárias, a responsabilidade dos agentes do poder, a liberdade individual e o julgamento por júri (Tocqueville, 1979, p. 194).

Ao mesmo tempo, para Tocqueville a comuna é compreendida como uma instituição que constitui formas e modos de vida democráticos, evidenciando a importância do poder local para a democracia, posto que em “torno da individualidade comunal vêem agrupar-se e atar, fortemente, interesses, paixões, deveres e direitos. No seio da comuna, vê-se reinar uma vida política real, ativa, inteiramente democrática e republicana” (Tocqueville, 1979, p. 194). Nessa perspectiva, Tocqueville rompe com interpretações utilitaristas e associadas ao individualismo metodológico, afirmando uma articulação entre o pluralismo e a liberdade encravada na sociedade, entendida enquanto culturalmente conformada.25 Conforme Boron (1994, p. 132), as concepções de Tocqueville problematizam as articulações e tensões entre igualdade e liberdade:

25

Frey (2000, p. 04-06) evidencia isto ao afirmar que “Tocqueville não aposta nos interesses que as pessoas têm em comum – tais interesses a longo prazo não seriam suficientes; além do mais, em certas circunstâncias esses interesses poderiam até separar as pessoas. Ele mostra-se preocupado com o estabelecimento de uma ordem que seja firmemente ancorada no pensar, no agir e nos costumes dos cidadãos”.

O ponto nodal de seu argumento e do qual se depreendem quase todos os demais, é o seguinte: a igualdade, que é o substrato – econômico, social, cultural e psicológico – da democracia, é compatível não só com a liberdade e portanto com um regime político além disso igualitário e democrático em seus aspectos formais, mas também com a tirania, isto é, com o despotismo político.

Nessa perspectiva, a igualdade não pode ser compreendida como um valor absoluto que, a priori, dotaria de caráter democrático o regime/sistema político e/ou a sociedade. Desta forma, desloca-se o foco analítico para a articulação entre a liberdade e a igualdade, qualificando-se um cenário, processual e marcado por tensões e ambigüidades, que reposiciona as concepções procedimentais e/ou substantivas de democracia e dota a análise de um caráter sociológico intrínseco. Tocqueville desloca o debate sobre a democracia do âmbito jurídico-institucional para o âmbito sociológico e cultural. A partir dessa vertente, emergem um conjunto de questões ou tensões essenciais à democracia, tais como: a ruptura ou fragilização de barreiras ou fronteiras sociais e culturais entre diferentes classes, grupos e segmentos sociais, com as lutas e resistências associadas; tendências à homogeneização social e cultural, com as ambigüidades e tensões vinculadas; tensões culturais e institucionais entre liberdade e igualdade.

2.2.2. Robert Dahl e a poliarquia

Fernando Limongi (1997, p. 19) situa o pensamento de Robert Dahl na vertente pluralista da democracia, avaliando que “a escola pluralista a que ele se filia creditam a preservação da liberdade política à sobrevivência e à contraposição de inúmeros poderes sociais independentes”. Ao mesmo tempo, Limongi (1997, p. 21-22) também inscreve esse pensamento de Dahl em uma perspectiva estratégica associada ao individualismo metodológico – centrada na ação a partir da avaliação de custos, ganhos e riscos:

A democracia, afirma Dahl, é fruto de um cálculo de custos e benefícios feitos por atores políticos em conflito (...) Nesses termos, como já comentado, a democracia (...) é fruto de um cálculo de atores políticos inseridos em uma relação estratégica. A manutenção da democracia não depende da adesão prévia dos atores sociais a determinados valores. A adesão às regras democráticas é circunstancial, contingente. Depende, sobretudo, de considerações estratégicas. Com isso, Dahl abre espaço para que os atores políticos e suas escolhas passem a fazer parte do quadro explicativo.

Dahl (1997, p. 25-26) afirma que “uma característica-chave da democracia é a contínua responsividade do governo às preferências de seus cidadãos, considerados como politicamente iguais”. Nessa perspectiva, indica que “todos os cidadãos plenos devem ter oportunidades plenas” de: 1) formular suas preferências; 2) expressar suas preferências a seus concidadãos e ao governo através da ação individual e coletiva; 3) ter suas preferências igualmente consideradas na conduta do governo, ou seja, consideradas sem discriminação decorrente do conteúdo ou da fonte da preferência (Dahl, 1997, p. 25-26). Ainda segundo o autor, para essas três oportunidades existirem para um grande número de pessoas, as instituições da sociedade devem fornecer pelo menos oito garantias: 1) liberdade de formar e aderir a organizações; 2) liberdade de expressão; 3) direito de voto; 4) elegibilidade para cargos públicos; 5) direito de líderes políticos disputarem apoio/votos; 6) fontes alternativas de informação; 7) eleições livres e idôneas; 8) instituições para fazer com que as políticas governamentais dependam de eleições e de outras manifestações de preferência. Assim, Dahl (1997, p. 28) estrutura a democracia em torno de duas dimensões essenciais: I) oposição, contestação pública ou competição política; II) participação ou inclusão. Ao mesmo tempo, Dahl (2001, pp. 99-100) indica o que considera requisitos institucionais básicos para a existência da poliarquia: 1) funcionários eleitos; 2) eleições livres, justas e freqüentes; 3) liberdade de expressão; 4) fontes de informação diversificadas; 5) autonomia para as associações; 6) cidadania inclusiva.

Dahl (2001, p. 49) afirma que a democracia exige que todos possam ser tratados “como se estivessem igualmente qualificados para participar do processo de tomar decisões”, o que remete a regras e princípios que possibilitariam a afirmação da igualdade política, apesar das características que geram e reproduzem desigualdades políticas. Na verdade, o autor (1990, pp. 48-51) reconhece a existência de grandes diferenças entre os cidadãos em relação aos recursos e oportunidades e “numerosos motivos de desigualdade política”, tais como a “raça” e a “propriedade e controle de unidades econômicas”. Contudo, afirma que as “vantagens e desvantagens das diferentes variedades não se concentram todas nos mesmos indivíduos, estratos sociais ou classes”, e “nem todas as desigualdades podem ser facilmente convertidas, se é que podem, em desigualdade política”. Trata-se de uma resposta do autor à questão da conciliação entre democracia e desigualdade social. No que se refere à propriedade e ao controle de unidades econômicas, indica:

A propriedade e o controle de empresas afeta de duas maneiras, estreitamente relacionadas mas muito diferentes, a desigualdade política. Em primeiro lugar, contribuem para a criação de grandes diferenças entre os cidadãos no tocante à riqueza, renda, status, qualificações, informações, controle sobre informações e

propaganda, acesso a líderes políticos e, de modo geral, oportunidades previsíveis na vida não só para adultos como também para filhos ainda em gestação, bebês e crianças. Depois de feitas todas as devidas ressalvas, diferenças como essas contribuem, por sua vez, para gerar importantes desigualdades entre os cidadãos em sua capacidade e oportunidade de participar, como políticos de iguais condições, do governo do Estado (Dahl, 1990, p. 50).

Apesar dessas desigualdades, e talvez justamente por elas, Dahl enfatiza a institucionalidade enquanto mecanismo de ordenação social, evidenciando uma articulação entre a escolha racional estratégica e o institucionalismo. Para o autor (2001, p. 49) a democracia é processo político vinculado ao governo e às decisões políticas, remetendo à existência de um conjunto de regras e princípios que tem como pressuposto essencial a afirmação da igualdade política.