• Nenhum resultado encontrado

A dimensão da experiência, no viver com HIV-Aids

Centrar-nos-emos aqui, na análise das experiências de doença que a

biomedicina classifica e trata como “crônicas”3. Tal classificação define e ca-

racteriza grande parte dos problemas de saúde das sociedades nas quais vivemos e que estudamos desde os anos 60. Estas doenças forçam uma re- definição importante dos quadros de interpretação que usualmente orien- tam tanto profissionais de saúde quanto cientistas sociais. Em primeiro lugar não se enquadram no modelo “sintoma-diagnóstico-tratamento-cura”; para dar conta das enfermidades crônicas, este modelo foi substituído por outro que considera elementos como manutenção/administração de sintomas, ex- perimentação e lida com a incerteza. Em segundo lugar, desafiam a ideia de doenças como episódios agudos na vida das pessoas; estudá-las é abordar “doenças que se confundem com a própria vida” (PIERRET, 2000, p. 7). Frente a um saber biomédico em constante curso de construção e mudança, a ques- tão central das análises sociológicas sobre a enfermidade deixou de ser a cura, vindo a se concentrar no que Baszanger (1998) denominou “a gestão da doença”. Esta é uma questão que atravessa as fronteiras das atividades e práticas propriamente biomédicas e se expande a todas as esferas da vida social das pessoas afetadas, modificando e redesenhando as situações de doença, tanto para profissionais de saúde como para pacientes e familiares. Para compreender o que significa viver e conviver com um determi- nado padecimento, em nosso caso a infecção por HIV e a Aids, é necessário submergir nos micro-processos da experiência da doença, para poder, assim e a partir daí, emergir e abordar os macro-processos sociais – padrões de

3 Caracterizamos como biomédicas o conjunto de práticas, conhecimentos, teorias e técnicas geradas pelo desenvolvomento do que se conhece como medicina científica, que legitimada pelos criterios de objetividade e universalidade científicos e pelo Estado, consolidou-se, nos últimos dois séculos, como a autêntica responsável pelo atendimento das doenças em grande parte da sociedade estudada. A expan- são histórica deste conjunto de práticas e saberes pressupõe a subordinação e complementariedade de outras práticas a este modelo biomédico (MENÉNDEZ, 1990).

comportamento, quadros culturais de referência, instituições, etc. – que a constituem, mas que também são constituídos por este nível da experiência. Frequentemente a doença está ligada a uma experiência de sentir-se

mal: o corpo sai do quadro de invisibilidade em que está submerso no nosso

dia a dia (quando se confunde com nosso envolvimento engajado em um conjunto de situações concretas) e se destaca como um problema a exigir medidas práticas, uma realidade que nos desafia e nos lança em um estado de confusão e dúvida. Mas não somente a experiência inicial de sentir-mal lança-nos na série de práticas, interações e eventos que constituem o mundo social do adoecer, mobilizando algumas de nossas capacidades de resposta. Um diagnóstico biomédico – exame, nome, marca ou recomendação –, in- dependentemente de qualquer percepção corporal, também pode desenca- dear trajetos de busca de solução e sentido. A experiência da doença pode também ter origem em uma “imposição externa” e não em uma percepção subjetiva, como no caso dos diagnósticos positivos de HIV em pessoas que antes nunca manifestaram sinais ou sintomas de mal estar. Em qualquer um dos casos é sempre uma experiência construída intersubjetivamente, que se faz no curso de várias interações e envolve a apropriação de modos de conhecimento socialmente compartilhados.

É fundamentalmente no mundo da vida cotidiana que se elaboram e desenvolvem as ações conjuntas para lidar com a doença a partir da liberação de processos de exclusão e inclusão, de conhecimentos e práticas, significados e sentidos, de abandono e adoção de novas práticas (RABELO; ALVES; SOUZA, 1999). Os sentidos e significados, a ordem de importância e a intensidade com a qual cada pessoa vive, enfrenta e relata seus problemas de saúde e doença variam e se diferenciam em função da trajetória de vida, da biografia e da inserção específica em um presente particular; além disso variam de acordo com a relação com “outros” que compartilham a mesma situação e com “outros” que não o fazem, “outros” com os quais se identifica e “outros” frente aos quais se diferencia.

Autores como Good (1994) propõem que a enfermidade severa, através de dores prolongadas, sofrimento e outras experiências extremas, provoca uma mutação da experiência corporal e uma desestruturação do mundo da

vida cotidiana4. Em direção semelhante, Merleau-Ponty (1999) observa que

a enfermidade sujeita o homem aos ritmos vitais de seu corpo e, neste sen-

tido, violenta a experiência normal, organizada que está em ritmos sociais e naturais, movendo-se da atividade ao descanso, do trabalho ao jogo, da concentração ao relaxamento.

A enfermidade não só desestrutura os ritmos do corpo, como também traz consequências para a própria imagem do eu. Para Beatriz Cortez (1997), ela pode gerar um processo de alteração subjetiva que coloca em questão a integração da imagem que o sujeito tem de si e na qual se reconhece habi- tualmente: “Quando uma pessoa adoece esta alteração a questiona em seu auto-reconhecimento” (CORTEZ, 1997, p. 90). Tal imagem é confrontada com um estado de hesitação e incerteza a respeito da própria imagem. O sujeito pergunta, demanda e necessita de “outro” através do qual possa se reconhe- cer, para recuperar através dele a imagem de unidade momentaneamente alterada pela enfermidade. Cortez destaca o papel do médico como esse “outro” que constitui um olhar estruturante para o sujeito que padece, um olhar que lhe permite se reconhecer e reorganizar a imagem de si. Mas não só médico ocupa esse papel; muitas outras formas de reestruturação da ex- periência corporal e do cotidiano alterados pela doença – não apenas a res- posta exclusivamente biomédica – são acionadas em cada caso, oferecendo a pessoa enferma uma rede de sentidos, significados e práticas por meio das quais se reconhece e reconhecer sua nova situação: instituições religiosas, de bairro, educativas, artísticas, ONGS, organizações comunitárias, medicinas alternativas, espirituais, entre outras.

Segundo Good (1994), a ameaça de dissolução provocada pela doen- ça é contra-arrestada pela pessoa doente (e por seus “outros” significativos) através de um trabalho que lhe permite reconstruir esse mundo sob ame- aça. Duas práticas intervêm simultaneamente nessa tentativa de recons- trução: uma de simbolização e outra de narrativização. Por simbolização, o autor comprende os esforços por nomear, por representar a fonte da 4 Nesta mesma linha de análise alguns autores exploram as relações entre a experiência do corpo, o significado intersubjetivo, as narrações que expressam e remodelam a experiência da enfermidade e as práticas sociais que mediatizam a conduta enferma, com relação ao HIV/Aids (CORTEZ, 1997; CHARMAZ, 2002).

doença, localizá-la e objetivar suas causas. A simbolização envolve objeti- vação do sofrimento através da procura, encontro e modelação de signifi- cados (GOOD, 1994). Nas sociedades ocidentais modernas, a Biomedicina joga um papel importante nesse processo de objetivação. Por intermédio de um complexo aparato de conhecimentos e práticas, provê uma poderosa simbolização da enfermidade que acena às pessoas enfermas com certas possibilidades de reconduzir suas vidas. O diagnóstico médico é não só um esforço para representar a fonte da enfermidade, localizar e objetivar sua origem como também uma tentativa de convocar à organização atividades terapêuticas e respostas sociais efetivas.

A narrativização, por sua vez, é o processo que situa o sofrimento na his- tória colocando os acontecimentos em uma ordem significativa no longo do tempo. A narrativa é a forma por meio da qual a experiência é re-presentada, recontada e comunicada. Nela, os eventos são apresentados em percurso temporal previstos de significado e ordenados, segundo o sentido que têm para as pessoas que os viveram e (agora) narram. São assim comunicados e re-apresentados. Mas as narrativas não apenas criam caminhos pelos quais as experiências de sofrimento podem ser compartilhadas, como também ajudam os narradores/sofredores a lidar com esta experiência. Isso porque tanto organizam as experiências passadas em um todo coerente como tam- bém projetam tais experiências no futuro, organizando-as teleologicamente e encaminhando-as para uma resolução. Referem-se e se destinam a fins imaginados ou a formas de experiência pelas quais a vida ou certas ativida- des particulares são entendidas como um todo coerente e significativo. Têm assim o efeito de abrir o futuro, possibilitando à pessoa que sofre imaginar meios de se sobrepor à adversidade. Conforme observa Byron Good (1994), a articulação de experiências e sucessos dentro de uma história ou trama significativa é um processo fundamental no esforço pessoal e coletivo para conter a dissolução imposta pela irrupção da doença e possibilitar a recons- trução do mundo. Por esta razão, sustenta o autor, as narrativas são centrais para compreendermos a experiência de sentir-se doente, não obstante o fato de que esta experiência – qualquer experiência – sempre excede e transbor- da possibilidades de descrição ou narrativização (GOOD, 1994).

Assim, partindo destes supostos teóricos sobre a experiência de doen- ça e sua dimensão intersubjetiva, neste trabalho descrevemos um conjunto de situações de interação e processos interpretativos, produzidos no interior de uma instituição hospitalar, que operam na construção da experiência de viver e conviver com o vírus do HIV/Aids. Centramo-nos especificamente na análise de processos narrativos vinculados à definição e redefinição de tra- jetórias de vida de pessoas que vivem com HIV/Aids.