• Nenhum resultado encontrado

E NARRATIVA NA EXPERIÊNCIA DE VIVER COM HIV/AIDS

Laura Recoder

[...] De repente me pergunto por que tenho que contar isto, mas se alguém começasse a se perguntar por que faz tudo o que faz […] Que eu saiba ninguém explicou isto, de maneira que o melhor é deixar de pudores e contar, porque ao final de tudo, ninguém se envergo- nha de respirar ou de calçar os sapatos; são coisas, que se fazem, e quando acontece algo estranho, […] então há que contar o que ocorre, contar aos colegas do escritório ou ao médico. Ai, doutor, cada vez

que respiro... Sempre contar, sempre tirar esse comichão incômodo

do estómago […].

De “Las Babas del Diablo” de Julio Cortazar.

INTRODUÇÃO

Experiência de doença é uma categoria analítica que se refere aos meios e os modos como indivíduos ou grupos respondem a um determi- nado episódio de doença (ALVES, 2006). Estas respostas são socialmente organizadas e revelam relações que existem entre indivíduos, grupos so- ciais, instituições, formas de interação e um corpo de conhecimento deter- minado. Para a abordagem desta categoria, a literatura especializada parte da premissa de que as pessoas produzem e reproduzem conhecimentos e práticas médicas existentes no universo sociocultural do qual fazem parte.

Não obstante, as interpretações sobre as formas e modos pelos quais os indivíduos se apropriam destes conjuntos de ideias sobre a doença e seus

cuidados, diferem entre as distintas propostas teóricas1.

Para uma compreensão adequada da experiência da doença é necessá- rio levar em conta tanto os aspectos intersubjetivos, o que a torna “objetiva” para os outros, como os aspectos subjetivos, o que determina um mundo de diferenças interpretativas. Ao afirmar o caráter intersubjetivo da doença, pressupomos a existência de certos parâmetros ou quadros de referência graças aos quais é construído o significado da doença, quadros de referên- cia que são diferencialmente apropriados pelos indivíduos por intermédio de processos concretos de interação social.

Neste sentido, nos propomos neste trabalho, a refletir sobre experiên-

cia de viver com HIV/Aids, explorando características de construção intersub- jetiva, a qual supõe tanto um conjunto de interpretações regulares – estereo-

tipadas, repetitivas, previsíveis, compreensíveis, vinculadas a certos quadros de referência que moldam o mundo de significados do HIV/Aids – como tam- bém um conjunto de interpretações únicas, abertas, surpreendentes, de difícil compreensão, construídas por trajetórias de vida específicas em contextos de interpretação maior.

A experiência de viver com VIH/Aids2, experiência de conviver com uma

doença de caráter crônico, porém ao mesmo tempo estigmatizante, con- fronta as pessoas afetadas com uma série de transformações em suas vidas. São mudanças que demandam estratégias de reinterpretação e reorganiza- ção do dia a dia, mas também da própria biografia em função (pelo menos em parte) da necessidade de lidar com as designações estigmatizadas im- postas pelo HIV/Aids. Neste processo de reorganização da vida cotidiana, em

1 Sobre as distintas tradições socioantropológicas no estudo dos processos de saúde, doença e atendi- mento em padecimentos crônicos ver: TAUSSIG, 1980; COMAROFF, 1982; CONRAD, 1985; YOUNG, 1982; MENÉNDEZ, 1990; FRANKENBERG, 1994; FARMER; 1990, 1994; FRIEDSON, 1978; GOOD, 1994; KLEIN- MAN, 1980, 1988; DAVIES, 1997; EZZY, 2000; BURY, 2001; CHARMAZ, 2002; ALVES, 2006.

2 O avanço na compreensão da “história natural da doença”, a habilidade de monitorá-la através de mar- cadores de progressão (CD4, CD8 e carga viral) e o progresso dos tratamentos com drogas antirretrovirais (ARV) que prolongam as expectativas de sobrevida das pessoas afetadas contribuíram para redefinir o HIV/Aids como uma doença de caráter crônico, ao final de 1996. Redefinição da doença que produziu mudanças importantes e definitivas na vida das pessoas em tratamento biomédico as quais, desde então, enfrentam desafios que pressupõem o manejo da doença no dia a dia.

que interpretações são construídas e práticas testadas ao longo de intera- ções diversas, o olhar biomédico – por meio de suas respostas à doença e suas propostas de atendimento e cuidados – constitui uma fonte importante de significação e sentido, tanto da experiência de doença e suas possibilida- des de gestão, como da própria vida.

Assim, a partir da apresentação e análise de algumas trajetórias de vida, mostraremos como a irrupção da doença, o HIV/Aids, produz uma disrupção

na vida cotidiana das pessoas afetadas, delimitando um antes e um depois

do diagnóstico, a partir do qual se reconstróem e são narradas as biogra- fias de quem vive com a doença. Por intermédio de suas histórias, relatos e observações tentaremos evidenciar o conjunto de sentidos, significados e práticas que supõem uma vida de convivência com o vírus do HIV/Aids e com seu tratamento. Em jogo aí está um complexo esquema de conhecimen- tos e práticas, de sentimentos e valores, que permitem às pessoas afetadas representarem, simbolizarem e narrarem suas experiências de doenças. Ob- servaremos também como as narrativas sobre experiências de doença com- partilham características comuns vinculadas por um lado às explicações e recomendações biomédicas sobre a doença e seus cuidados e, por outro, às formas e modos de lidar com a ameaça do estigma e a discriminação que o HIV/Aids ainda carrega. Mas também observaremos a singularidade de cada uma destas experiências, sua irreditibilidade a modelos gerais e seu caráter original, indeterminado e aberto.

O presente artigo faz parte de uma etnografia hospitalar, que explorou as relações existentes entre atendimento, cuidados biomédicos e a vida co- tidiana nas pessoas que vivem com HIV/Aids, na Cidade de Salvador, Bahia, Brasil, entre 2004 e 2006.

ALGUNS PONTOS DE PARTIDA TEÓRICO-