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A literatura finissecular, como de qualquer outro período, pretendia agradar o público pelo conteúdo que trazia (história de amores, união con- jugal, a paixão sexual, finais que resolvem desgraças, perseguições, injusti- ças, misérias, etc.). O melodrama de caráter romântico não deixou de exis- tir. Contudo, o final do século XIX adorou a biologia, o sexo e a psicologia. A obra ficcional abasteceu e aguçou o apetite do público com narrativas sobre fenômenos que expressavam a “fisiologia da natureza humana”, como a sexualidade, o erotismo, o “pathos feminino, os distúrbios de caráter, os “de- sejos enlouquecedores”, o “sofrimento mental”, “corpos histéricos”, os “com-

portamentos ilícitos”43. Com isso, desenvolveu macabra sensibilidade pelo

mórbido, obsessão pela decadência física e mental, pela dissolução e desin-

tegração do ser humano44. Pululam as descrições de “furor de delírios”, de

“obsessões tenazes de desejos”, de “sangue incendiado pela aspiração carnal”,

de “vontades enervantes”45. Nesse sentido, os nossos literatos exploraram

exaustivamente o princípio da pati natae (nascido para sofrer).

Nos romances do fin-de-siècle, os personagens já não são mais retrata- dos pelas lentes do herói romântico (“intenso”, “instintivo”, “intuitivo”, “imagina- 42 “Undoubtedly, the text is permeated by a vast range of identifiable items, selected from social and other extratextual realities. The mere importation into the text, however, of such realities – even though they are not being represented in the text for their own sake – does not ipso facto make them fictive. Instead, the text’s apparent reproduction of items within the fictional text brings to light purposes, at- titudes, and experiences that are decidedly not part of a fictionalizing act. Because this act of fictional- izing cannot be deduced from the reality repeated in the text, it clearly brings into play an imaginary quality that does not belong to the reality reproduced in the text but that cannot be disentangled from it. Thus the fictionalizing act converts the reality reproduced into a sign, simultaneously casting the imagi- nary as a form that allows us to conceive what it is toward which the sign points” (ISER, 1993, p. 2). 43 “O grande chic era falar em coisas torpes ... Discutiam-se as aberrações do sexo com uma profundeza de princípios filosóficos [...]” (DIAS, 1975, p. 267).

44 A produção bibliográfica internacional sobre a decadência no fin-de-siècle é significativa.Ver, por exemplo, Carter (1959), Spackman (1989), O’Connor (2000), Wood (2001), Bailin (2007), Showalter (2011). 45 É ilustrativa a descrição da cena incestuosa entre Lourenço e sua irmã no romance belenense,

Hortência (Marques de Carvalho, 1888): “[...] o irmão, de salto, abraçando-a atleticamente, num esforço

violento e bestial, erguendo-a a meia altura do solo, beijando-a doidamente, e rolou com ela para o fundo da rede, ansioso, ofegante, as cordoveias salientes, belo de alegria, sublime de virilidade vitoriosa” (1989, p. 82)

tivo”, “atormentado”, “individualista”). Agora, predomina o “anti-herói” tipificado pela “solidão”, “vulnerabilidade”, “alienação”, “perda de identidade”, “vida sofri- da”, “culpa”, “vergonha”, “decadência”, “aberração”. O ser humano é movido pela carne, pelo sangue e pelos nervos. Honorina (A Mulata, 1875, de Carlos Ma- lheiro Dias), Madá (O Homem, 1887, de Aluísio Azevedo), Lenita (A Carne, 1888, de Júlio Ribeiro), Hortência (Hortência, 1888, de Marques de Carvalho), Rita

Baiana (O Cortiço, 1890, de Aloísio Azevedo) são heroínas típicas do período46.

Controlados inteiramente pela sensualidade, os personagens são voluptuosos, lúbricos, caprichosos. São constantemente submetidos as “pulsões sensuais”, as determinações de ordem sexual. Tais pulsões revelam tanto “necessidades” quanto “vícios”, “comportamentos genéticos degenerados”, “prazeres envilece-

dores” (como na prostituição e no homossexualismo)47. O corpo, controlado

por forças naturais (regido, portanto, por normas próprias), é fonte de desejo e prazer, mas também lócus de perversão e anomalia. Os prazeres excessivos (o abuso da excitação, a luxúria, a devassidão) levam a diversas formas de “neuroses genitais”, de desequilíbrio do sistema nervoso, de “atavismo nevro- pata” e até mesmo a loucura. Tais “pulsões” variam de acordo com característi- cas e nuances entre os homens e as mulheres, assim como na raça.

O corpo feminino era usualmente visto como principal personificação do sensual, do erótico e da perversão. O prazer feminino era intrigante e objeto de intensa curiosidade. Passando a ser objeto de amplas descrições, torna-se algo misterioso, até mesmo perigoso e ameaçador. O orgasmo fe- minino é visto como liberações de forças telúricas. Diferente do romantismo, o romance finissecular não mais estabelece as relações entre prazer e fertili- dade ou frigidez e esterilidade. A união sexual é agora usualmente concebida 46 Interessante observar que, conforme resultado de um “plebiscito” organizado em 1892 pela A Semana, hebdomadário de Max Fleury, para saber quais os melhores romances escritos em língua portuguesa,

A Carne e O Cortiço ficaram em segundo e terceiro lugar, respectivamente (RENAULT, 1987).

47 O homossexualismo aparece nos romances brasileiros, de forma mais explícita, a partir dos fins do século XIX, como foi o caso de A Mulata (1875), de Carlos Malheiro Dias; Bom Crioulo (1895), de Adolfo Caminha; A Condessa Vésper (1883-84), de Aluísio Azevedo, entre outros. Um típico exemplo de descrição do homossexualismo (feminino) pode ser encontrado em A Mulata: “Honorina, quando só, ia para os quar- tos das amigas, conversar. Às vezes passava horas fechadas com a Emília[...] Deitavam-se fumando, os beijos caiam das bocas, sem querer, Honorina então tremia, arrancava o peignoir, a saia e a camisa, despia a companheira, mordia-lhe os peitos, enfurecia-se de lascívia, deixava-se beijar toda, tornando-se sob as carícias dos lábios viciosos da amiga, entregando-se como uma deusa, os dentes a bater, as mãos no ar, delirante, medonha[...]” (1975, p. 176).

como um ato puramente fisiológico. Submetido às leis da “natureza”, o cor- po feminino está governado por impulsos físicos e biológicos; está sujeito as “tormentas uterinas” ou “ferimentos periódicos”. É um “corpo automático”. Assim, estando mais ligada às forças da natureza, a mulher é usualmente representada por um materialismo grosseiro. Guardando as devidas propor- ções, os romances tendiam a reproduzir a misógina de Baudelaire: “A mulher

é o oposto do dândi. Por isso, ela inspira o horror. Tem fome e precisa comer; tem sede e precisa beber; está no cio e precisa trepar. Que maravilha! A mulher é natural, ou seja, abominável” (apud SHOWALTER 1993, p. 223).

As personagens femininas, enquanto descritas como “mulheres-selva- gem”, estão submetidas às necessidades naturais, fisiológicas. A Carne (1888) e O Homem (1887) são exemplos significativos. No romance de Aluísio Azeve- do, Dr. Lobão, médico da família, referindo-se a Madá, personagem principal

que enlouquece pela falta de homem, se expressará da seguinte forma48:

Diabo! Faz lástima que um organismo, tão rico e tão bom para pro- criar, se sacrifique deste modo! Enfim – ainda não é tarde: mas, se ela não se casar quanto antes – hum ... hum!... Não respondo pelo resto! [...] É perigoso brincar com a fera que principia a despertar... O monstro deu já sinal de si; e pelo primeiro berro, você bem pode calcular o que não será quando estiver deveras assanhado! [...] O útero, conforme Platão, é uma besta que quer a todo o custo con- ceber no momento oportuno; se lho não permitem – dana! Ora aí tem! [...] Para isso é preciso, antes de mais nada, que ela contente e traga em perfeito equilíbrio certos órgãos, cuja exacerbação iria alterar fatalmente o seu sistema psíquico; e, como o casamento é indispensável àquele equilíbrio, eu faço grande questão do casa- mento [...] Casamento é um modo de dizer, eu faço questão é do coito! Ela precisa de homem! (2005, p. 31-32)

48 É interessante observar a ampla utilização de termos técnicos (com as devidas explicações) por Aluísio Azevedo para caracterizar a condição psíquica da personagem, como “febre histérica”, “nevralgias”, “cefalalgia”, “letargia”, “ataque de coréia”, etc.

A forma desabrida de apresentar a “condição humana” tinha inegavel- mente uma intenção de chocar. Mas, um “choque pedagógico”. Ou seja, a descri- ção de uma “realidade crua” é um recurso pelo qual o literato chama atenção para um novo olhar do mundo social. Um olhar que pretende ser “científico”,

“verdadeiro”, sobre as ações humanas49. Um pressuposto subjacente na Litera-

tura finissecular é a de que, mais do que a saúde, o sofrimento e a insanidade expressam melhor a verdade sobre a condição humana, sobre a estrutura fi- siológica, psíquica e moral do homem. Em outras palavras, os “estudos” sobre patologia, sobre as manifestações do instinto e do desejo, sobre o desequilí- brio nervoso e as anomalias hereditárias são conhecimentos que desnudam o homem, expondo-o a sua precariedade frente à natureza. Nessa perspectiva, a Literatura tem uma missão pedagógica: expor ao leitor essa verdade.

As relações entre o ser humano e seu “ambiente natural” constituem uma temática recorrente no romance finissecular. A expressão “ambiente na- tural” referia-se ao conjunto de fatores físicos, químicos e biológicos que condicionam a existência humana, a motivação e a inteligência. Constitui, portanto, a base física do pensamento e da conduta humana (BRAYNER, 1973). Designa a “natureza”, entendida como algo que impõe limites à ação humana. Assim, o ser humano está sempre exposto às pressões de forças profundas provenientes de uma “máquina cósmica” que preside o mun- do. Carlos Malheiro Dias (A Mulata, 1896) resume tal concepção ao dizer: “Como pretender, pois que a vontade seja um dominante no espírito do ho- mem, quando ela é apenas uma função toda dependente das moléculas ideais, das fibras sensíveis e musculares?” (1975, p. 53). As determinações naturais são, portanto, indiferentes aos intuitos humanos. O ser humano há de “resignar-se a tudo, numa passividade de inconsciente, obedecendo à dis- posição celestial da divindade” (MARQUES DE CARVALHO, 1989, p. 115).

49 Para Lúcia Castelo Branco (1988, p. 116) “[...] em uma época de tamanho puritanismo, a abordagem científica surgira como uma proposta bem comportada e bem intencionada com relação à sexualidade: falava-se de sexo, mas falava-se com o intuito de promover um conhecimento científico da matéria, para que se possa dominá-la com mais habilidade, mantê-la permanentemente sem controle”. O discurso científico, portanto, esconde atitude normativa sobre o sexo e um ataque aos comportamentos ilícitos. Assim, subjacente às descrições do horror, da infâmia, da sensualidade desenfreada há uma preocupação com a ordem, a saúde.

O sentimento de fatalismo foi marcante na época. Assim como está submerso as forças naturais, o ser humano está submisso às “estruturas so- ciais”. Concebido dentro dos parâmetros do “realismo social”, representado basicamente pelas teorias orgânicas (das quais Spencer foi grande expres- são), o social é uma “natureza de segunda ordem”. É composto por realidades objetivas, externas a vontade e a constituição da liberdade; dotadas de po- der de coerção sobre ações e imaginação humana. O social se constitui, por- tanto, como uma dimensão separada, autônoma e crucial, das subjetividades, das “consciências individuais”.

A concepção de “natureza humana” nos romances da época teve uma forte influência dos estudos de Darwin: a constatação de que o ser humano

é um animal como outro qualquer50. A associação entre comportamento

humano e animal foi muito constante na Literatura do fin-de-siècle. Assim, a lua de mel de Chiquinha, que é comparada a um “quartão” (cavalo castra- do), foi “um idílio de aves bravas” (em O Paroara, de Rodolfo Teófilo, 1899); o nariz da mulata Honorina, que “trazia em si, em todo o seu ar, a barbárie da raça em que nascera”, é “dos felinos e das voluptuosas, abria de contínuo umas ventas frementes de animalejo feroz” (DIAS, 1975, p. 120). Em A Con-

dessa Vésper, de Aluísio Azevedo (inicialmente publicado em folhetins entre

novembro de 1883 a janeiro de1884, com o título “Memórias de um conde- nado”), a descrição da noite de núpcias entre Leonardo (que fica louco) com Ambrosina é um exemplo interessante. A descrição da cena faz lembrar uma tentativa de estupro.

[...] já desde o banquete nupcial havia sentido um princípio de ver- tigem e um estranho sobressalto de nervos [...]. No quarto nupcial “continuava sobressaltado, quase ofegante [...] estremeceu da cabe- ça aos pés, contraindo os lábios, abrolhando os olhos e rilhando os dentes”. E começou a tartamudear inarticulados sons e a estorcer- -se no luxuoso divã em que havia resvalado [...]. Ambrosina, retro- cedendo o corpo com uma agilidade de serpe, logrou, aos gritos,

50 Provavelmente a primeira tentativa de divulgar o darwinismo no Brasil foi feita pelo médico Augusto César de Miranda Azevedo, quando proferiu um conjunto de conferências (1875) sobre a Origem das espécies (DARWIN, 1859). Em 1876, Miranda Azevedo publicou a sua primeira conferência (CID; WAIZBORT, 2009).

escapar-lhe das mãos; mas Leonardo cortou-lhe a saída, rojando-se diante da porta, na destra posição de um tigre que arma o pulo sobre a presa. Faiscavam-lhe os olhos, espumava-lhe a boca e fungavam-lhe as ventas, como de faminta fera fariscando sangue [...] Ambrosina, estonteada de pavor e já sem voz para gritar, corria, seminua, de um canto a outro [...] Ele afinal, grunindo, pinchou-se sobre ela, e apresou-lhe com os dentes a sutil camisa de claras rendas e laços cor-de-rosa. A bela rapariga [...] caiu por terra sem sentidos [...] Leonardo apoderou-se da desgraçada com uma alegria feroz (AZEVEDO, 2005, p. 1147-8).

Nesse sentido, a preocupação com a “fisiologia da natureza humana” e a inclinação de ordem quase sociológica e etnográfica dos romances da época foram fatores importantes que conduziram os nossos literatos a ex- plorar os aspectos “naturais” (bio-psíquicos) da doença, o “comportamento do doente” e tratamento. Tampouco podemos esquecer que a doença era um veículo por meio do qual o literato dava acesso à intimidade da vida familiar, a alcova, as relações sexuais.

Embora com exceções, a doença não foi objeto de grande interesse na ficção romântica brasileira. Era usualmente utilizada com o intuito de criar uma situação, às vezes artificial, para aproximar ou afastar determina- dos personagens. Nesse sentido, a doença é simbólica (como a tuberculose em Lucíola, 1862, de José de Alencar) ou motivo para desenlace da trama (como, por exemplo, em Inocência, 1872, de Visconde de Taunay). O mesmo não acontece com o romance do fin-de-siècle, predominantemente realista- -naturalista, no qual a doença ocupa um espaço privilegiado. Como exemplo,

Fome (1890) e O Paroara (1899), de Rodolfo Teófilo; O Chromo (1888), de Ho-

rácio de Carvalho; O Homem (1887) e A Mortalha de Alzira (1894), de Aluísio Azevedo; O Simas (1898), de Pápi Júnior; Morbus (1898), de Faria Neves Sobri- nho; A Viúva Simões (1895) e A Silveirinha (1913), de Júlia Lopes de Almeida. A lista é grande.

Diferente da imagem idílica do país instituída pelo imaginário român- tico, o intelectual da época ressaltou o estado de miséria e de ignorância da população. Interessado pela “patologia social”, o literato intrinsecamente

propunha uma “cura”. A analogia com a Medicina é clara. O olhar realista- -naturalista encontrou na Biomedicina um projeto filosófico, ideológico e político capaz de enfrentar e superar as vicissitudes de uma nação disfórica

e mal conformada, e com isso, assegurar a marcha da civilização brasileira51.

Conhecer é também controlar. Havia uma esperança de que o conhe- cimento das Ciências Naturais sobre a “fisiologia humana” forneceria subsí- dios para a melhoria das condições urbanas, higiênicas e raciais da nação, tornando-a engrandecida (SCHWARCZ, 1993). Como disse Monteiro Lobato, em 1918: “Respiramos hoje com mais desafogo. O laboratório dá-nos o ar- gumento por que ansiamos. Firmados nele contraporemos à condenação sociológica de Le Bom a voz mais alta da biologia” (TRINDADE; HOCHMAN, 1996). A expressiva imagem do jornalista Miguel Pereira (1916) – “O Brasil é

um imenso hospital” – resume o ideal de uma “cruzada da medicina pela pá-

tria” e o papel que foi reservado à ciência, mais especificamente à Biologia, para a recuperação e/ou fundação da nacionalidade. Em síntese, o intelec- tual brasileiro transpunha para a Literatura o sentimento de que o conhe- cimento científico poderia nos absolver como povo dos males pelos quais fomos condenados (os males herdados da colônia, o estoque racial, o clima tropical). Redimir o Brasil; higienizá-lo pela perspectiva do modelo biomédi- co. É interessante notar que o início da Primeira República foi marcado por uma “cruzada da medicina pela pátria”, no dizer do deputado federal Miguel Pereira (o mesmo que afirmou em 1916 ser “o Brasil um imenso hospital”). É nessa época que se consolida a campanha do sanitarismo do Brasil.

CONCLUSÃO

O presente artigo procurou discutir alguns elementos essenciais no processo de instalação do modelo biomédico no Brasil do fin-de-siècle, mo- mento em que esse modelo se legitima. Partiu do princípio de que esse modelo de cuidados à saúde foi instituído no seio de um conjunto de com-

51 Sussekind (1984, p. 65) observa que quando “se liam romances como O Homem, de Aluísio Azevedo ou A Carne, de Júlio Ribeiro a associação a monografias médicas sobre a histeria era inevitável. O que se lia como ficção, se dizia também ciência. Ler O Homem equivalia a um estudo sobre os sintomas histéricos [...] O que se representava como ficção se apresentava também como documento”.

portamentos, ideias, atitudes, imagens sobre a vida, a sociedade e o cor- po humano. Alojada na teia de relações socioculturais, a implantação da Biomedicina transcendeu a própria corporação médica. Sendo instituída no “mundo da vida”, é pelos parâmetros desse mundo que podemos compreen- der sua popularização.

O conceito essencial subjacente na discussão do processo de popu- larização da Biomedicina foi o de “imaginário social”. O imaginário é, antes de tudo, representação simbólica e instrumento do agir social. Mais espe- cificamente, é uma forma específica do ser humano se relacionar com os outros, com o mundo, com os não-humanos. É, portanto, um ato posicional pelo qual um objeto é constituído através de tecidos simbólicos ou “redes simbólicas”, na expressão de Castoriadis (1982). Para compreender o imagi- nário social instituído sobre a Biomedicina, utilizamos a Literatura ficcional. Além de despertar emoções e sentimentos, a obra literária tem o poder de representar o mundo através de uma nova perspectiva e, com isso, amplia o entendimento sobre a vida cotidiana. Esse fato foi particularmente signi- ficativo na proposta realista-naturalista, movimento estético dominante no fin-de-siècle brasileiro. No Brasil, o “mundo da literatura” realista estava dire- tamente relacionado com as mudanças socioculturais ocorridas na segunda metade do século XIX. Trata-se de um momento histórico no qual houve uma particular preocupação em redirecionar intelectual e moralmente a na- ção. O desejo era de “civilizar” a nação, ou seja, dar uma nova forma dela se relacionar com o mundo, com o “outro”. Não outro qualquer, mas um “outro civilizado”. Almejar a civilização significava sair das trevas da ignorância e da superstição. Uma proposta de sabor iluminista. Nesse contexto, o intelectual – que na época não se distinguia substancialmente do “homem de letras” – assumiu um papel significativo. Foi porta-voz de um ideal de civilização e a Biomedicina, o emblema simbólico desse ideal.

Para compreender o papel social daqueles indivíduos que foram social- mente legitimados para falar, propagar, alimentar o imaginário social sobre o ideal civilizatório, é importante observar algumas características dos inte- lectuais daquela época. Em primeiro lugar, não estavam fundamentalmente concentrados nas universidades (fenômeno que só ocorrera nos meados do século XX). Impossibilitados de viver “da pena”, encontrou na imprensa um

dos principais meios de complementar seus proventos. Grande parte da in-

telligentsia nacional procurou ganhar independência frente às instituições

políticas e religiosas existentes no país. Esse fato explica, até certo ponto, porque a coesão entre eles não foi particularmente forte. Mas todos eles partilhavam uma característica em comum: a relação direta com setores da “sociedade civil” e com a elite política. Uma relação sem dúvida complexa e, muitas vezes, conflitante. Considerando-se pertencente a uma elite pensan- te, manifestava usualmente atitudes de superioridade. Acreditava-se ser uma pessoa que desenvolvia percepção sensorial aguçada para as coisas da vida. Imbuído de uma missão pedagógica e de ideal de civilidade, era crítico de alguns valores e princípios da sociedade instituída no país.

O literato finissecular partia do pressuposto de que a realidade ob- jetiva é o ponto de partida de todo o pensamento, estabelecendo com isso oposições entre “razão” e “coração”. Mas ainda, entre “natureza” e “espírito”. Nessa concepção, a tese fundamental subjacente era a de que o entendi- mento racional é uma força aliada à experiência sensível e à observação. Admitindo uma “objetividade” e uma “racionalidade” interna nos fenôme- nos, o literato considerava o corpo humano como uma entidade autônoma. Tal concepção estava baseada na ideia de regularidade constante e involun- tária subjacente ao próprio fenômeno. Assim, ao explicar o fenômeno social – ou a “natureza humana” – a tendência dominante foi de buscar uma manei- ra de reduzir à uniformidade o que se apresenta como variedade, de vincular às singularidades e mudanças do histórico e as generalidades do racional, impondo no processo social um esquema regular e fixo. Uma realidade que se aprimora pelas ações civilizatórias, entendida como aplicação da razão sobre o mundo. Nesse sentido, a ciência teria o papel de ser redentor da humanidade.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Julia Lopes de. A Silveirinha. Crônica de um verão (1913).

Florianópolis: Ed.Mulheres, 1997.

ALMEIDA, Julia Lopes de. A família Medeiros. São Paulo: Horacio Belfort Sabino, 1894.

ALONSO, Ângela. Crítica e contestação: o movimento reformista da geração