• Nenhum resultado encontrado

PRESSUPOSTOS TEÓRICOS A INTERPRETAÇÃO CLÍNICA

Uma parte considerável de médicos acredita que exerce (ou deve exer- cer) a prática como um “cientista imparcial ou neutro” que atua segundo “princípios universais”. Insucessos desse empreendimento devem ser credi- tados à insuficiência do conhecimento da ciência médicaou pessoal do pró- prio médico. A antropóloga Deborah Gordon (1988), que estudou a habilidade

clínica sob uma perspectiva fenomenológica, ressalta que a tradição de es-

tudos sobre a natureza do raciocínio clínico separa um “caráter científico” de uma “habilidade clínica”, ou de uma “arte” imputada ao “poder pessoal”, como “mágica privada” de cada profissional. Ela observa que, embora o caráter e o desenvolvimento científico da medicina moderna tenham sido bastante estudados, a perícia ou habilidade clínica permanece praticamente intocável, ofuscada pela cientificidade que domina os outros saberes envolvidos na prática médica (GORDON, 1988, p. 257). Gordon propõe que estudemos a prática médica nos moldes em que Dreyfus (1998) considera a aquisição de

uma habilidade, fundamentado na Fenomenologia da Percepção, de Maurice

Merleau-Ponty (1994). Esse autor aborda o aprendizado de uma habilidade a partir de dois conceitos fundamentais da fenomenologia: “arco intencional” e “apreensão máxima” de uma situação. O arco intencional é a conexão sem- pre existente entre agente e mundo. Nestes termos, habilidades clínicas ou cirúrgicas não são “armazenadas” na memória ou na mente do médico, elas

habitam-no como disposições corporais cada vez mais refinadas que respon- dem às solicitações de determinada situação em curso. A apreensão máxi- ma, por sua vez, é a tendência do corpo em responder a essas solicitações de modo que traga a situação até uma proximidade de sentido ótima para seu agente. Assim, adquirimos certa habilidade cada vez que lidamos com situações. Essa aquisição prática, por sua vez, determina como essas coisas e situações aparecerão para nós, na medida em que elas nos transformam e transforma-se nossa relação com seus respectivos mundos. A prática médica não pode ser reduzida simples execução de princípios científicos introjeta- dos. Seu aprendizado, sempre renovado, é menos introjeção de princípios abstratos que desenvolvimento de habilidades e modificação da própria maneira de perceber do médico, uma mudança na estrutura de seu compor- tamento e de sua percepção. Esse exercício, centrado na relação com outra pessoa – o paciente – é fundamentalmente um empreendimento herme- nêutico. A prática médica é uma hermenêutica na medida em que o médico interpreta sintomas, sinais e comportamento do paciente. Ao focar a Medici- na como prática hermenêutica, autores com Drew Leder (1990) questionam inicialmente a pretensão à completa objetividade, pois nessa interpretação também ocorre subjetividade, interesse, ambiguidade e discordância. Embo- ra esse caráter provisório e pessoal do julgamento clínico jamais possa ser expurgado, Leder acredita que essa perspectiva não nos remete a subjeti- vismos ou relativismos, pois a hermenêutica é uma disciplina estruturada e com métodos próprios de alcançar validação consensual (LEDER, 1990, p. 10).

No caso específico da prática médica, é necessário ressaltar a espe- cificidade do “texto” que a hermenêutica clínica interpreta. Texto, segundo Paul Ricoeur (1989), é todo conjunto de signos que pode ser interpretado e que inclui ações, sonhos, histórias ou qualquer realidade da existência humana. Assim, como defende Stephen Daniel (1986, p. 195-6), a ciência ou arte da interpretação repousa no coração da prática médica. Os incômodos do paciente são interpretados como sintomas e sinais em um diagnóstico, que se desdobra em prognósticos, seleção de condutas terapêuticas etc. Mas, qual seria o texto principal que o médico lê ou interpreta durante a consulta clínica?

Para responder a essa pergunta, Leder (1990) inicialmente conside- ra a relação entre terapeuta e paciente como um encontro entre duas (ou mais) pessoas, em que uma delas, movida pela necessidade, veio em busca da ajuda que a outra pode lhe oferecer. O texto principal que o médico lê a partir de sua posição é a pessoa enquanto doente, o qual se institui através do desdobramento do movimento de intersubjetividade que ocorre durante o encontro clínico:

O texto clínico nunca é apenas uma doença abstraída de uma persona- lidade, de uma história de vida ou das preocupações existenciais do sofredor. Na verdade, o médico confronta-se com uma pessoa, não com um conjunto de sintomas e órgãos. Entretanto, também não é simplesmente a generali- dade da pessoa que é problematizada, pois do contrário o encontro clínico perderia as distinções que mantém com outras ciências humanas ou com outros modos de comunicação. O médico e o paciente problematizam preci- samente a pessoa enquanto doente. Experiências, mudanças físicas, metas de vida formam agora um novo contexto da interpretação e do tratamento de uma enfermidade (LEDER, 1990, p. 11).

Esse texto primário da pessoa enquanto doente é desdobrado por Leder em “textos secundários” o – definidos como experimental, narrativo, físico e instrumental – e organizados segundo a sequência temporal dos eventos que ocorrem durante o encontro clínico. O primeiro é a experiência prévia ao médico vivida pelo enfermo (illness) e os outros três correspondem, respec- tivamente, à estrutura triádica de criação médica: anamnese, exame físico e testes laboratoriais (LEDER, 1990, p. 11), que podem se totalizar em uma ou mais enfermidades (disease).

O texto experiencial é o incômodo vivido pelo paciente, o sofrimento que se instala na vida da pessoa, um ser intérprete por natureza que con- sequentemente exige sentidos para objetivá-lo. Entre as ofertas culturais disponíveis, está a possibilidade da transformação dessa experiência em problema médico. A transformação da interpretação do doente em uma his- tória médica se inicia pelo ritual da anamnese. Esse texto narrativo envolve a ação conjunta de pelo menos três autores interligados: o corpo sensível do paciente ou “incidente focal” da doença, que inicia a história; o pacien- te, intérprete de seu incômodo, que lhe fornece voz e coerência narrativa;

e o médico, o terceiro autor, que imprime à história a forma final de uma

anamnese. Essa técnica secular da Medicina traduz e transforma aquilo que

incomoda ou que faz padecer. O que era privado torna-se público; o que não tinha sentido e nem causa começa agora a ser um evento tecido no tempo, em histórias ou narrativas. Naturalmente, o médico, desde o início da consul- ta, dirige a apresentação dos discursos, encadeia acontecimentos, trabalha com hipóteses interpretativas e questiona sintomas associados, condição de saúde passada, contextos familiares e sociais, valores etc. Mais ainda, sugere modos para que o paciente possa exprimir seu sofrimento (“Como você cha- maria essa dor?” “queimação?” “aperto?”) (LEDER, 1990, p. 13). Enfim, através da anamnese, as palavras do paciente são transformadas em texto escrito no prontuário e o médico assume completamente a autoria da anamnese.

O exame físico é o ato pelo qual o corpo do médico e o corpo do pa- ciente se confrontam diretamente até que se produza outro tipo de texto, o texto perceptual. A referência aqui é de novo o filósofo Merleau-Ponty (1994), quando considera a dualidade ou ambiguidade do corpo em ser sujei- to e ser objeto. Nosso corpo é vivido primariamente como um modo de acesso

ao mundo, uma estrutura de comportamentos ou uma fonte sensório-motora de habilidades e hábitos através da qual nos localizamos em certo sentido

tempo-espacial (LEDER, 1990, p. 14). Por outro lado, meu corpo também pode ser percebido como objeto, uma massa, uma mancha ou mesmo um objeto científico. Pelo exame físico, queixas cedem lugar a sinais, a subjetividade do paciente cede à objetividade do visível, do palpável, do audível etc.

Entretanto, há sempre um hiato entre meu corpo sujeito e meu corpo objeto, minha mão que toca e minha mão que é tocada, hiato que também está presente entre os corpos do médico e do paciente. Tentando superá- -lo, os órgãos de sentido do médico transformam-se em ferramentas do conhecimento prático desde os anos acadêmicos, assim como partes do corpo dos músicos tornam-se instrumentos familiares às notas musicais. Essa capacidade corporal também pode ser ampliada pelo uso de tecno- logias, que literalmente se “incorporam” a certas práticas médicas, como o estetoscópio, o otoscópio e o oftalmoscópio incorporaram-se ao exame físico de certas especialidades. A familiarização árdua do estudante de Me- dicina com tais recursos torna-se, pelo hábito, uma extensão e reforço do

próprio sentir. Por outro lado, é necessário ressaltar, diz Leder (1990), que se a voz do paciente é silenciada durante o exame físico, sua “presença viva” e participante permanece ativa e presente durante todo o desdobramento do exame. A relação é muito íntima e exige justamente esse movimento constante que vai da objetividade à subjetividade, tanto da parte do médi- co quanto da parte do paciente (LEDER, 1990, p. 15).

É justamente por conta dessa incompletude da percepção que a Me- dicina recorre à ajuda de um texto instrumental, de uma linguagem mecani- zada que mostre o fisiológico ou o patológico por meio de imagens, gráficos, números etc. Entretanto, mesmo considerando a precisão matemática ou vi- sível desses testes, não se pode abrir mão de uma hermenêutica para sua lei- tura. Um hemograma, um fragmento de tecido ou uma imagem radiológica necessitam sempre de interpretação, pois é o olho treinado de radiologista que vê a fratura ou pneumonia onde o leigo só percebe uma série de blocos opacos. O que diferencia o texto instrumental é esse status de objetividade, concedido pela característica de artefato separável do corpo (LEDER, 1990, p. 15). Uma radiografia, por exemplo, é permanente e reproduzível, ela está aberta à inspeção de qualquer um e de todos. Os médicos geralmente con- sideram esse texto muito mais objetivo do que o exame físico, que por sua vez é considerado mais objetivo do que a anamnese. Essa hierarquização de objetividades e outras tentativas de despojar o olhar médico de sua subjeti- vidade, entretanto, “despersonalizam” o encontro clínico e separam cada vez mais o médico do seu paciente, conclui Leder (1990, p. 15).

A pragmática do encontro clínico é discutida através de três critérios:

coerência, colaboração e eficácia. Quanto ao primeiro, o texto da “pessoa en-

quanto doente” institui-se por meio de variadas formas simbólicas e pode se desdobrar a qualquer momento em novas possibilidades. A tarefa do médico é obter sempre uma interpretação coerente e totalizante que com- preenda todos os elementos e os desdobramentos envolvidos no fenômeno do adoecer: história, exame físico, resultados laboratoriais, em consonância, por exemplo, com contexto familiar, ocupacional, moral e social da vida do paciente. No plano conceitual, o diagnóstico pela utilização da nosologia das doenças e das síndromes é uma das principais ferramentas integrativas da clínica. Assim, por exemplo, na medida em que um conjunto de sinais

e sintomas – como artrite, rush facial em asa de borboleta, proteinúria e anemia – pode ser unificado sob o nome de uma doença, Lupus Eritematoso Sistêmico (LES), a clínica mostra como se realiza bem com um diagnóstico concreto. A interpretação obtida desse modo resulta de significações que ocorrem em diferentes níveis, mas, ao final, clarifica-se em um conceito úni- co e totalizante que delineia um futuro de possibilidades para o paciente. A partir dessa constatação, o médico pode estabelecer projetos derivados como exames, terapêuticas, prognóstico etc. (LEDER, 1990, p. 16).

Esse entendimento está fundamentado em Heidegger, na confronta- ção de sentidos que pressupõe a existência de uma estrutura prévia de com- preensão a qual desafia o leitor desde o início da leitura. O diagnóstico só aparentemente surge ao final do exame; ele, de fato, age como um guia para o médico e perpassa do início ao término do encontro clínico:

A partir do momento em que o paciente entra para a consulta, o médico começa a formular um diagnóstico provisório, que determi- na quais questões serão perguntadas e quais testes serão solicita- dos. O médico deve precaver-se de qualquer inflexibilidade concei- tual: o texto envolve um diálogo com seu leitor e pode, a qualquer momento, dar vazão a uma nova interpretação. No entanto, sem um paradigma coerente, esse leitor estará igualmente perdido, isto é, o médico solicita exames como uma “expedição de caça” que atira completamente ao acaso (LEDER, 1990, p. 16-17).

Em suma, a coerência de atuação do médico frente à “pessoa enquan- to doente” apresenta-se como uma totalização que, nos moldes do círculo

hermenêutico heideggeriano, se desdobra em diferentes modos de perceber

durante o encontro clínico, pois deve captar todos os elementos disponíveis da situação, de modo que possa, ao final, oferecer a melhor proposta conclu- siva ao paciente.

O segundo telos dessa hermenêutica pressupõe que o encontro clí- nico envolve pelo menos dois leitores ativos e interessados no sucesso do empreendimento. Depende, pois, para se realizar, de uma colaboração efetiva entre paciente e médico, que possa superar diferenças e alcançar

um entendimento mútuo e de satisfação para ambas as partes. Um esboço dessa colaboração, inicialmente, sustenta-se nas estruturas comuns exis- tentes entre os participantes do encontro. Pela humanidade compartilhada entre duas pessoas, o médico, de modo empático ou não, pode comparti- lhar a experiência do paciente e saber o que lhe dói ou há de errado com ele. Por outro lado, o paciente, caso pertença a uma comunidade saturada de sentidos médicos, participa em maior ou menor grau da perspectiva médica. Entretanto, necessariamente, as perspectivas desses leitores diver- gem: médico e paciente trabalham com textos diferentes e cada um natu- ralmente conta com um conjunto distinto de interesses e de ferramentas interpretativas que lhes são disponíveis. Essa divergência, entretanto, deve ser vista como algo positivo, pois a verdadeira razão pela qual o doente procura o médico é a busca de outro ponto de vista, “mais desapaixonado e mais informado que o seu” (LEDER, 1990, p. 17).

Mas essa diferença pode se alargar como um abismo, caso paciente e médico não consigam unir-se em processo comunicativo. Sem penetrar suficientemente no universo interpretativo do paciente, o médico perde as- pectos cruciais para sua avaliação. Da parte do paciente, caso o médico falhe em lhe comunicar sua própria interpretação, certamente desacreditará ou ignorará o tratamento que lhe foi prescrito (LEDER, 1990, p. 17). Lembrando Tristam Engelhardt (1998), é preciso que o médico trabalhe junto com seu paciente essa transformação que a enfermidade ocasiona na existência da pessoa. Até que o paciente perceba-se como doente, como hipertenso ou diabético, por exemplo, tende a não aderir ao tratamento que lhe é proposto, pois seu “mundo da vida cotidiana” ainda não foi reestruturado em função da relevância dessa nova situação em sua existência (LEDER, 1990, p. 17).

A eficácia clínica é o terceiro componente do telos hermenêutico da prática médica. Para entendê-la, o autor de referência é Hans-Georg Ga- damer (2004) e seu conceito de “aplicação”. Conforme Gadamer (2004), a hermenêutica jurídica ilumina bem esse momento central da interpretação. Um juiz interpreta uma lei com certos objetivos em vista, “aplica-a” à parti- cularidade do caso que julga. Do mesmo modo, o diagnóstico médico não é apenas uma verdade estética ou abstrata, ele é primariamente interessado, o médico procura pelo melhor resultado terapêutico. É essa preocupação

que guia o processo diagnóstico desde o início do encontro clínico. O mé- dico não procura pela doença em si, procura especialmente pela doença tratável; é um tipo especial de leitor que busca, acima de tudo, entender os eventos que ocorrem com o paciente para transformá-los ativamente em determinada direção terapêutica. A reação do paciente ao tratamento, por outro lado, serve para monitorar, refinar ou transformar o diagnóstico original e seu plano terapêutico (LEDER, 1990, p. 18). Trata-se, pois, de um movimento circular que se desdobra entre médico leitor e texto mutante da pessoa enquanto doente. A eficácia da medicina dentro desse movimento também se desdobra através de um duplo significado: a meta prática que motiva a interpretação médica e a função epistemológica que dela se re- verte, pois a exatidão do diagnóstico frequentemente pode ser interpretada pelo sucesso ou fracasso da terapia utilizada (LEDER, 1990, p. 18-19).

Enfim, a prática médica é um tipo específico de interpretação que deve ser compreendido muito mais como possibilidade ontológica do que como certeza universal. Nesse sentido, a clínica é linguagem e possuí-la significa pertencer a uma compreensão comunitária de sentidos e mundos, do mesmo modo que implica sempre um modo ou uma forma definida de vida pessoal (SVENAEUS, 2001). Uma linguagem habita seus praticantes, opera em nós como um jogo, é algo em que é preciso entrar para participar, é uma atividade que partilhamos e pela qual somos completamente envol- vidos. Não há, dentro ou fora dela, um ponto de vista neutro no qual possa- mos ancorar nosso olhar para ver somente verdades irrefutáveis e eternas. Como toda habilidade e mesmo com toda tecnologia, a clínica moderna ain- da é saber que se forma à beira do leito, é percepção especial que propicia formas e sistematiza experiências e, como diz Foucault, sempre aberta para a subjetividade da vida, pois só se fecha com objetividade na presença da morte (FOUCAULT, 1994).