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Sem dúvida, a distância temporal com relação ao momento do diag- nóstico ajuda em uma maior elaboração da notícia, a reorganização de um cotidiano de convivência com o vírus, as novas rotinas e a revisão mais de- talhada da vida e da própria biografia. As poucas pessoas que conhecemos com diagnóstico recente se encontravam transitando por momentos muito difíceis, de muita angústia, de muito pranto e incerteza. Angústias e medos que acreditávamos ver em seus passos lentos e pesados, nos olhos sensíveis que derramavam lágrimas frente a quase qualquer palavra, presenças esfor- çadas, mas ausentes, corpos tristes e, às vezes, também debilitados.

Todavia, isso não significa necessariamente que pessoas com muitos anos de diagnóstico tivessem alcançado maiores e/ou melhores níveis de

elaboração da situação. Conhecemos pessoas completamente desestrutura- das, submersas em uma angústia sem fim, e que, todavia, tinham passado por mais de dois anos desde o momento em que conheceram o diagnóstico. Encontramos, por outro lado, pessoas de diagnóstico recente que haviam conseguido elaborar a nova situação e se adaptar com bastante rapidez e aparente maturidade.

Alguns reconstruíam nos relatos, o momento exato do diagnóstico; para muitos foi traumático, inesperado, incompreensível. Para outros, sus- peito. Alguns contavam como entraram em crise de choro no consultório do médico, outros afirmaram não haverem derramado nenhuma lágrima, até depois de vários dias e “muita cachaça”. Para alguns, levou um tempo até que

“caísse a ficha”, para outros “caiu a ficha” somente depois de um episódio de

enfermidade. A “depressão” que sucedeu ao primeiro momento durou meses para alguns, anos para outros; outros ainda, nunca se deprimiram: “às vezes

me agarrava uma tristeza, mas nada sério”. No grupo de apoio à adesão se

falava de pessoas que conheciam o diagnóstico, mas o negavam, não o reco- nheciam e que só o reconheceriam quando uma doença importante tomasse conta da vida, ou estivessem indefectivelmente diante da morte.

Entre as notas de campo, a partir de uma reunião do grupo, ficou re- gistrada a curiosidade que nos causou uma mulher sentada na sala onde a reunião ia começar: era frágil, debilitada, muito magra, mal conseguia ca- minhar. A coordenadora do grupo de apoio, Mariana, entrou na sala onde esperávamos o começo da reunião, como fazíamos todas as quartas, e nos disse que levaria a mulher para repousar e voltaria para dar início a reunião. Tão logo inicia a reunião, ao grupo se incorporaram dois jovens, Fa- bián de uns 20 anos e Mônica, talvez de 15, filhos da mulher magra e débil que demandava cuidados urgentes e cujo nome era Rosa. Essa reunião foi especial, porque os filhos acabavam de saber que a mãe estava doente de Aids. Foi especial também porque podemos perceber, naquele dia e naquele encontro, que o grupo de apoio havia cumprido uma função importante de contenção e de informação para os dois adolescentes.

Os jovens estavam completamente transtornados com a situação, não conseguiam compreender o que estava acontecendo com a mãe. Mal conseguiam verbalizar algum sentimento ou expressar alguma ideia. Foi a

coordenadora quem os apresentou e explicou a situação da mãe ao grupo. Então Fabián balbuciou: “eu tinha projetos para este ano, mas já os esqueci,

não posso pensar em outra coisa, me arrasou”. A partir dessa frase, o resto dos

participantes do grupo, um a um, foi se apresentando e contando as próprias histórias de doenças, remontando-se ao momento do conhecimento do diag- nóstico. Um a um, todos, foram narrando as experiências, todas distintas, mas similares, com o mesmo começo e final: “e agora estou aqui, estou bem e tenho

muita vontade de viver”.

Lembramos a expressão de desorientação de Fabián, que se mostra- va completamente perdido, nervoso, muito nervoso, uma pessoa desolada. Mônica, por sua vez, mostrava um rosto de profunda tristeza, seus olhos estavam cheios de lágrimas, não falou durante a reunião.

Foi depois dos primeiros relatos que, por fim, o rapaz falou. Falou e a primeira coisa que disse foi que não se importava em saber como o vírus havia chegado a sua mãe, “não vou lhe perguntar”, “não importa”, “é minha mãe,

a amo e vou cuidar dela até que se recupere”. Fez um silêncio, tomou ar e con-

tinuou: “minha mãe pode estar com câncer ou lepra, caindo aos pedaços, que eu

vou estar ao seu lado cuidando dela, da mesma forma que ela se descadeirou toda a sua vida limpando casas para nos criar”.

Aurora explicou-lhes que a mãe iria passar por várias etapas na vivên- cia da enfermidade e eles, ao acompanhá-la, também. Etapas que supõem mudanças, mudanças que são uma constante no transcurso da vida de qual- quer pessoa: “é como sair da escola primária, onde você tinha uma só pro- fessora e passar à secundária com um montão de professores. Ou como se casar e ter que aprender a cuidar da casa e de seu marido. É só se acostumar a uma situação nova”.

A doença da mãe os surpreendeu, sabiam o que era o HIV/Aids, sabiam como se transmitia e a declaração de Fabián nos mostra claramente quão forte, generalizado e profundo é o estigma que a doença arrasta.

Sabiam, mas não sabiam. A distância entre a informação e a vida pode ser grande. Do conhecimento dos folhetos, da escola, da televisão, à experi- ência concreta de ter que enfrentar a doença há uma distância considerável e uma diferença qualitativa, dada justamente, pela própria experiência, uma

experiência encarnada. Pela busca de respostas à clássica pergunta: por que comigo? Naquele caso, por que com minha mãe?

Ele dizia que não sabia o que fazer, que não sabia como cuidar dela e como se cuidar. Mônica não falava. Eles estavam com medo porque a irmã cuidava da mãe: “fazia suas mãos”, “lavava as calcinhas” e tinham medo de que esses cuidados lhe causassem contágio. Enquanto Fabián contava em detalhes este medo, uma mulher, irmã da mãe, que os acompanhava, o interrompeu ofendida, dizendo que essas coisas eram particulares e que não havia que dizê-las diante de tantas pessoas. Ele a olhou, a ignorou e seguiu falando. O HIV-Aids desnuda, visibiliza e expõe o que até então era de âmbito privado: desde a sexualidade e seus valores até os corpos, seus fluidos e pudor.

O grupo explicou a Fabian que essas não eram formas de transmissão do vírus e que não deveriam se preocupar; mas, diante do medo e da dúvida, sempre era bom fazer um teste. O grupo continuou fornecendo informação sobre a enfermidade e o tratamento, (desde o meu ponto de vista, de maneira muito desordenada e em alguns momentos pouco clara), passando depois a aconselhá-los (e agora sim com total clareza e sabedoria) sobre como dizer à mãe que ela estava infectada com o virus: “não digam que tem Aids, digam

que tem HIV, porque Aids, meu Deus!, é um monstro e HIV não, é até bonito (sor-

ri)”; e sobre como manter o segredo sobre a enfermidade. Os garotos foram aconselhados a não comunicar o diagnóstico indiscriminadamente entre os conhecidos; deveriam pensar bem com que pessoas compartilhariam a novi- dade e com quem não, porque “as consequencias de falar podem ser negativas”.

A reunião continuou assim entre experiências e informações. Acre- ditamos haver ajudado aos dois jovens a se acalmar um pouco e, talvez, a ordenar algumas ideias. A reunião havia acabado, mas na sala de espera, as conversas, entre eles e alguns dos participantes do grupo continuaram. Fabián frequentaria durante algum tempo as reuniões do grupo.

Diferente da narrativa de Aurora na qual é a protagonista com sua pró- pria história de enfermidade, a experiência de Fabián e Mônica, o sofrimien- to pelo recente diagnóstico da mãe, nos recorda que, parafraseando Byron Good (1994), a doença não acontece no corpo, mas na vida. E na vida com os outros. Quando adoecemos, quando buscamos cuidados e respostas para

nossos padecimentos e significados para nossos sofrimentos, da mesma ma- neira que quando trabalhamos, sonhamos, nos enamoramos ou morremos, o fazemos sempre e indefectivelmente em relação aos outros. E entre esses outros, a família é espaço importante na experiência das pessoas com HIV/ Aids. Às vezes, espaço de apoio e contenção, outras de problemas e rejeição, mas sempre dimensão significativa na experiência de adoecer e de se cui- dar. Esta história nos mostra como a doença nos atravessa tanto em nossos corpos como em nossas relações. Atravessa-nos nas relações porque somos construídos nestas relações intersubjetivas.

As vozes daqueles filhos, seus medos, o amor, suas expectativas com respeito à mãe e a eles nos alertam sobre as dimensões, a força e o alcance de um diagnóstico de Aids, um diagnóstico que, no caso em foco, atravessou toda a família, colocando em jogo (e provavelmente modificando) os valores, expectativas e sentimentos de cada um em relação aos outros e a si próprio. Mas também entre aquelas pessoas que decidem guardar o segredo sobre a enfermidade, o diagnóstico as atravessa em suas relações com os

outros, relações marcadas agora pelo gerenciamento do segredo13.