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Para dar conta destas situações de interação e processos de interpre- tação (inclusive os nossos) realizamos uma etnografia hospitalar. Durante os anos de 2005 e 2006, fizemos uma observação sistemática das práticas e dos relatos ocorridos em cada um dos distintos espaços do serviço de infec- tologia de um hospital da cidade de Salvador, instituição de referência para o atendimento de HIV-Aids).

Paralelamente, mantivemos um processo de constante reflexividade sobre o nosso lugar como etnógrafo (trabalhador de campo) durante o pro- cesso de observação e, como autor, durante o processo de produção do texto final. Tais procedimentos nos permitiram problematizar a presença do inves- tigador nestes processos de interpretação e reinterpretação da doença e de seus cuidados.

A escolha do hospital como locus para a etnografia tem vários mo- tivos: por um lado, e sem desconhecer a importância de diversos “outros” (família, igreja, bairro, etc) nestes processos de reconstrução da vida coti- diana, acreditamos que o lugar ocupado por a experiência hospitalar (do atendimento, tratamento e os cuidados) na vida das pessoas infectadas pelo HIV-Aids é central, amplo e frequente. Por outro lado, esta delimitação se relaciona com uma questão fundamental na experiência de viver com HIV- -Aids: a preservação do segredo sobre o diagnóstico. São muitas as pessoas que não revelam sua condição de saúde e que organizam o cotidiano a partir da preservação deste segredo. Por esta razão, o acesso a pessoas que vivem com HIV-Aids se torna difícil fora de um espaço que não seja o biomédico- -hospitalar; ao mesmo tempo em que torna este espaço uma instância de

intercâmbios rica e importante para muitas pessoas que, abraçando a estra- tégia do segredo, têm no hospital o único lugar de intercâmbios de sentidos e significados sobre a própria experiência de doença.

Consideramos que este trabalho etnográfico emergiu do encontro dos diferentes pontos de vista, inclusive o do investigador. Encontro no qual as histórias, conhecimentos, percepções, práticas e emoções dos sujeitos se de- frontam com a história, conhecimentos, percepções, práticas e emoções do trabalhador de campo em um interjogo de poder no qual um e outro se co- locam constantemente em xeque, se modificam, se transformam. O desafio está em encontrar um equilíbrio entre a tensão inerente às vozes dos outros,

as condições sociais instituídas e nossas próprias aspirações autorais5.

Foi nesta direção que orientamos o nosso trabalho etnográfico, como um conjunto de “descrições densas” sobre situações concretas e específicas vividas pelas pessoas infectadas com o vírus do HIV-Aids durante a trajetória de atendimento e cuidados biomédicos hospitalares. O encontro etnográfico em sua densidade nos permitiu ensaiar uma compreensão ao mesmo tempo ampla e específica sobre o ponto de vista dos outros, sobre o nosso ponto de vista e sobre o mundo do HIV-Aids que esse diálogo ajuda a construir.

Praticamente qualquer uma das histórias conhecidas e que construí- mos durante o trabalho de campo podiam servir para a reflexão que desen- volvemos no presente texto. Todas elas são diferentes, cheias de eventos particulares e únicos, de anedotas, de experiências e ideias singulares. Todas estas histórias são individuais e pessoais, mas também intercambiáveis no que têm de coletivas (CICOUREL, 1982; SCHEGLOFF, 1987; GINSBURG, 1976; FERRAROTI, 1990).

Distinguimos, no Serviço de Infectologia, quatro espaços bem diferen- ciados quanto a rotinas institucionais, práticas clínico-hospitalares, inter- câmbio de significados, modalidades das interações, racionalidades (biomé- 5 A antropologia e a etnografia vivem desde finais dos anos 60 (produto dos processos descolonizado- res) um forte e profundo processo de reflexão sobre seu objeto de estudo, suas possibilidades de ser e as eventuais relações a serem establecidas. Do realismo etnográfico (GEERTZ, 1989) à etnografía como narrativa (BRUNER, 1986), passando pela desconstrução da autoridade etnográfica (CLIFFORD, 1998), os distintos autores não se cansam nem descansam da discussão sobre como estabelecer uma relação entre o que os outros dizem e fazem e o que nós dizemos e fazemos. Interessantes e fundamentais todas estas discussões descortinam as dimensões epistemológicas, políticas e éticas envolvidas na construção do conhecimento antropológico, na construção dos outros e na construção de nós mesmos.

dicas, religiosas, populares) e formas de circulação, entre outras. Estes são os consultórios médicos, a sala de internação, a sala de espera e o espaço do

grupo de reflexão para problemas de aderência6 aos tratamentos ARV.

Neste trabalho, abordamos histórias, relatos e trajetórias compartilha- das no espaço do serviço de infectologia do hospital, em encontros indi- viduais com pessoas em tratamento no ambulatorio de infectologia e no marco do “grupo de apoio à adesão ao tratamento antirretroviral (ARV)” que funciona como parte da oferta da consulta infectológica. Este grupo, coorde- nado por uma das enfermeiras do hospital dia e com a participação de uma médica residente, oferece informação e apoio às pessoas que estão reali- zando tratamentos ARV. Durante as reuniões, circulam informações sobre o tratamento, sobre as vias de transmissão, sobre assesoramento legal, sobre direitos e deveres, dentre outras; ao mesmo tempo, há comentários de expe- riências pessoais em relação à condição de soropositivo.

Medicação, tratamento, sexualidade, trabalho, família, hospital, bairro, relação médico-paciente, saúde, doença são todas questões que, no advento das reuniões deste grupo, se compartilham e discutem ajudando às pessoas que as frequentam na reconstrução significativa de uma vida de cuidados e tratamentos, de transmissão e estigma, de novas formas de relações, de uma vida de convivência com a infecção pelo HIV. Neste espaço são tecidas narrativas que se organizam a partir de um ponto de inflexão significativo e desestruturante, de um antes e um depois do conhecimento do diagnóstico.

Trajetórias de doença: entre o reconhecimento e o desconheci-