• Nenhum resultado encontrado

Paulo César Alves

INTRODUÇÃO

A Biomedicina1 é fenômeno do século XIX2. Resultado da passagem

das concepções contagionistas e miasmáticas da doença para uma perspec- tiva cientificista baseada nas práticas de laboratório e análises microbiológi- cas, a Biomedicina representou a “sacralização” de um profissional: o médico. Como têm observados os historiadores, é principalmente a partir da segunda metade do século XIX que a profissão médica passa a ser mais estimada pelo público. Neste momento, cristaliza-se uma “dignidade de profissão”, no dizer de E. Hughes (1967).

Desnecessário é dizer que o saber e a prática da Biomedicina não conquistaram popularidade de imediato. Sua propagação está diretamente 1 Biomedicina é um termo amplamente empregado para designar um setor específico do sistema de cuidados à saúde. Para as Ciências Sociais, o termo “medicina” tem usualmente um sentido mais abran- gente: refere-se a qualquer modalidade de saber e prática terapêutica. O termo “sistema médico” ou “sistema de tratamento” – também denominado de “sistema de cuidados à saúde” – refere-se a um corpo de conhecimentos, valores, crenças, práticas e instituições construídos socialmente para explicar, tratar e curar a doença. A bibliografia existente sobre o “sistema médico” é ampla. Para os efeitos do presente trabalho, utilizamos a proposta de Kleinman (1973, 1978 e 1980), pois, entre outros aspectos, facilita o estabelecimento de quadros analíticos comparativos entre diferentes contextos socioculturais. Para Kleinman, o sistema de cuidados a saúde é composto por três grandes arenas ou setores: popular, folk e profissional (no qual se inclui a Biomedicina). De forma bastante resumida, a arena popular diz respeito ao conhecimento “leigo” que possuímos da doença; o folk refere-se às atividades de tratamento que são desenvolvidas por grupos religiosos, rezadores, curandeiros, etc.; o profissional designa práticas e saberes constituídas por uma matéria médica, como no caso da Biomedicina e as medicinas Yunani e Ayurvedica. Esses setores – e seus respectivos sub-setores – são “tipos ideais”, não possuem fronteiras definidas entre si, podendo ser interconectados de diversas formas. Na perspectiva biomédica, a doença é vista, a grosso modo, como uma trama de origem orgânica que se produz no espaço corporal ou psíquico; é determinada por uma “etiologia específica” e classificada mediante uma “taxonomia universal”.

2 No Brasil, a Biomedicina se constitui a partir dos fins do século XIX (ver SANTOS FILHO, 1966; MADEL LUZ, 1982; HERSCHMANN; PEREIRA, 1994; PEREIRA NETO, 2001; CHALHOUB et. al., 2003).

relacionada com o processo pelo qual o novo modelo explanatório da do- ença passou a fazer parte do mundo do senso comum, do “mundo da vida

cotidiana”3. A popularização da Biomedicina contou com “tradutores legiti-

mados”. Isso é, com atores que desenvolveram para amplos setores da so- ciedade uma “sensibilidade coletiva” em relação aos novos valores e prin- cípios de se conhecer o corpo e a doença. No redemoinho das esperanças e receios gerados pelas rápidas transformações socioculturais (e materiais)

que desabrochavam no fin-de-siècle4 brasileiro, a Biomedicina representou o

apanágio e emblema de um ideal de modernidade. Nesse sentido, exprimiu o imaginário social desenvolvido no bojo da agitação política e cultural da época. Em que aspectos o modelo biomédico revelou o imaginário social da modernidade instituído no Brasil do fin-de-siècle? O principal objetivo do presente trabalho é discutir essa questão. Mais especificamente, buscando fornecer subsídios para a compreensão da popularização da Biomedicina que emerge entre 1880 a 1915 nos grandes centros urbanos brasileiros, po- dendo ser o Rio de Janeiro paradigmático nesse processo; o texto examina a instituição do imaginário social sobre o corpo, o sofrimento e a doença, fenômenos na época considerados como reveladores da condição humana.

A análise aqui pretendida não está fundamentada nos discursos pro- duzidos pelos diferentes profissionais da saúde ou mesmo nos artigos espe- cializados publicados em jornais e revistas de circulação popular, procedi- mento que, de uma maneira geral, têm caracterizado a grande maioria dos 3 O termo “mundo da vida cotidiana” (Lebenswelt) é derivado de Husserl. Refere-se ao “âmbito da re- alidade que o adulto alerta e normal simplesmente pressupõe na atitude de senso comum” (SCHUTZ; LUCKMANN, 2001, p. 25). Schutz utilizou, ao longo da sua obra, vários outros termos com o mesmo sig- nificado, tais como “mundo da vida diária”, “a realidade humana”, “a realidade eminente da vida do senso comum”. É no âmbito dessa realidade que as pessoas atuam naturalmente (“atitude natural”), onde os indivíduos dão por certo a existência do mundo, compartilham conhecimentos, estabelecem projetos, desenvolvem ações, compreendem seus semelhantes. Assim, a vida cotidiana apresenta-se como uma realidade interpretada pelos homens e subjetivamente dotada de sentido para eles na medida em que forma um mundo coerente, um mundo do senso comum.

4 A palavra francêsa “fin-de-siècle” é usualmente utilizada para definir um estado de espírito relacionado à ideia de decadência, de “sensação de fim”, caos, mas também a de renascimento, de novos projetos e promessas para o período compreendido entre fins do século XIX e princípios do XX (ver JAGUARIBE, 1998; MEYER-MINNEMANN, 1997). Para efeitos do presente trabalho, o fin-de-siècle brasileiro refere-se ao período compreendido entre 1880 a 1915, aproximadamente. Assim, em certos aspectos, esse termo contrasta com o significado usualmente atribuído à belle époque (usualmente concebida como um “clima cultural” caracterizado pelo entusiasmo advindo das conquistas materiais e tecnológicas valorizadas pela “fina flor e nata” da sociedade urbana nos começos do século XX).

estudos sobre essa temática. Ao analisar a constituição do imaginário social da Biomedicina, exploramos a produção literária da época, particularmente romances, que na expressão de Ortega y Gasset (1947, p. 387) são a “fauna

poética mais característica dos últimos cem anos”5. Mais especificamente,

utilizamos a Literatura ficcional como recurso heurístico para granjear infor- mações – ou insights – sobre as relações socioculturais, atitudes morais e o mundo de sentimento que estavam subjacentes no processo de populariza- ção da Biomedicina no Brasil. Partimos do pressuposto de que as narrativas literárias do fin-de-siècle contêm noções, descrições, interpretações de even- tos pessoais e coletivos que são, de per si, uma forma valiosa de conheci-

mento do imaginário social.6

A obra literária do período em questão (1880-1915) foi particularmen- te significativa. A Literatura era vista como um meio de incitar, antes de tudo, à empatia, criando uma proximidade entre o leitor e uma dada realidade social. Para isso, preocupou-se em desenvolver estratégias discursivas de persuasão, sedução, verossimilhança e credibilidade.

Tendo em vista o uso do romance para compreender determinados aspectos do imaginário social sobre o “mundo da doença”, o artigo também propõe – embora em um segundo plano – esboçar reflexões acerca dos lia- mes entre Literatura e Ciências Sociais. A pergunta fundamental que subjaz o texto é a de como fazer da criação literária objeto de pesquisa em Ciências Sociais. Assim, começamos o presente trabalho apresentando breve reflexão teórico-metodológica sobre a questão, mais particularmente no que diz res-

peito ao “modo de doação” 7 da Literatura.

Em seguida, o artigo caracteriza, de modo geral, os discursos sobre a instituição da Biomedicina no país. Após conceituar brevemente o significa- 5 Como sugere Marías (1977, p. 61): “na poesia, na narração, no teatro, sobretudo na novela, a vida faz-se transparente a si mesma”. Ou, na expressão de Ortega y Gasset, a vida humana é “faina poética”. Conforme Ortega, o ser humano é novelista de si mesmo, pois não se pode viver sem se inventar como personagem e enredo, assim como não vive com os outros sem imaginá-los, sem projetar sobre eles “novelas de urgên- cia” elementares tornando-os inteligíveis para ele.

6 A pesquisa na qual fundamenta o presente texto (CNPq – processos 310954/2006-1 e 306344/2009-2) analisa extensivamente a produção ficcional brasileira (romance e teatro) entre 1880 e 1920, tomando como fonte documental aproximadamente 40 romances e 20 peças de teatro.

7 Na concepção fenomenológica husserliana, o “modo de dar-se” equivale ao modo de ser do objeto estudado.

do de “imaginário social”, analisamos o papel do intelectual-literato como porta-voz da opinião pública sobre o ideal de modernidade que se instituía no fin-de-siècle. Por último, chamamos atenção para o caráter da literatura finissecular em explorar os “distúrbios” do mundo humano.

CIÊNCIAS SOCIAIS E LITERATURA: