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CIÊNCIAS SOCIAIS E LITERATURA: BREVES CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS

Explorar a Literatura para compreender, pelo prisma das Ciências So- ciais, um período histórico requer algumas considerações prévias. Em primei- ro lugar, não se trata de um empreendimento circunscrito pela análise ou crítica literária. Não se intenta decompor ou separar elementos constitutivos de um texto com vistas a compreender melhor seus aspectos literários ou julgar princípios estéticos e padrões de gosto de uma determinada época. Tampouco se pretende desenvolver uma “sociologia da literatura”, pelo me- nos no seu sentido mais costumeiro, o de caracterizar as bases socioculturais sobre as quais se erguem os conteúdos, as formas, os gêneros, as instituições,

os sujeitos e o mercado da produção literária8. O que propomos fazer pode-

ria ser denominado, a princípio, de “sociologia através da literatura”. Ou, mais especificamente, uma “sociologia histórica”, aqui entendida como a análise de um momento histórico no qual se requer projeção de categorias e instru- mentos de pesquisas elaborados pela sociologia (GALLINO, 2005).

Desnecessário é reafirmar que toda criação literária é produto de uma época e que a capacidade criativa do escritor se desenvolve em um campo de possibilidades que circunscreve a sua liberdade de escolha. Contudo, a Literatura é muito mais do que espelho ou representação da sociedade, pois comove, diverte, provoca estranheza e exerce efeitos sobre os gostos, os estilos de pensamento e argumentação, as atitudes e ilusões. Fornece novas 8 O ponto original de partida da Sociologia da literatura foi estabelecido, de uma maneira geral, no século XIX, quando a Literatura começou a tomar consciência da sua dimensão social. Na tradição analíti- ca que remonta a Taine (segundo o qual a raça, o meio e o momento são os três fatores determinantes da produção literária), o fenômeno literário é usualmente reduzido a um produto que espelha ou representa a sociedade. Nessa perspectiva, à Sociologia da literatura interessa primordialmente analisar como con- teúdos, formas, gêneros, instituições e o mercado da produção literária são estruturados pela dinâmica das relações sociais. Tal preceito tem sido reproduzido, por exemplo, nos trabalhos de Plekhanov, Lukacs, Goldmann e Arnold Hauser.

visões das coisas e das pessoas, sendo capaz de instigar ou renovar formas de perceber o mundo. A censura é, de certa forma, uma prova do poder de inquietação que a escrita provoca.

O diálogo entre Literatura e Ciências Sociais é antigo. No século XIX, boa parte dos literatos pretendeu fundamentar suas obras em pressupos- tos “científicos”. Apenas para citar alguns exemplos, lembremo-nos de Balzac que, no prefácio da sua Comédie Humaine, autodesignou-se “docteur en scien-

ces sociales”; de Zola, ao falar de uma “sociologie pratique” nos seus roman-

ces-experimentais; de Flaubert que exigia do escritor a transposição de pes- quisa para a Literatura, suscitando a admiração de Durkheim. É importante chamar atenção, contudo, que a proposta desses escritores em tornar a Lite- ratura um meio de conhecimento “positivo” da realidade não significou uma valorização da neutralidade da razão científica. O entendimento emocional dos fenômenos humanos oferecido pela literatura não sacrificou a “cultura dos sentimentos” ao frio entendimento racional.

Conforme Lepenies (1996), a partir da segunda metade do século XIX, as Ciências Sociais e a Literatura se diferenciam e passam a disputar a pri- mazia de fornecer orientação e interpretação da realidade social. Os pontos de tensão na interface entre esses dois campos tomaram características es- pecíficas de acordo com as duas principais orientações teórico-metodológi- cas dominantes na história das Ciências Sociais: a “cientificista” (ou monoló-

gica) e a “hermenêutica” (ou dialógica). Esse debate assumirá as mais variadas

formas no século XX. Contudo, nas últimas décadas do século, um conjunto de pesquisadores voltou a questionar as rígidas fronteiras entre essas duas áreas do saber.

A utilização da Literatura para granjear informações – ou insights – sobre as relações, atitudes morais e o mundo do sentimento tem sido, cada vez mais, um recurso importante para as Ciências Sociais, no caso brasileiro há trabalhos como os de Pereira de Queiroz, 1976; Beiguelman, 1981; Ortiz, 1992; D’Incao, 1996 e Caldas, 2000, dentre outros, que – além de tratar a

Literatura como fonte para obtenção de dados – situam novas convergências

entre a esfera da Literatura e das Ciências Sociais9.

No presente texto, a exploração da Literatura pela perspectiva das Ci- ências Sociais está teórica e metodologicamente fundamentada na premis- sa de que é possível tomar o discurso narrativo de dois modos diferentes: quanto ao seu sentido (“o que é dito”) e à referência (“aquilo acerca do que se diz”). Para Ricoeur (1987), o sentido é objetivo e imanente ao discurso. Corresponde à correlação entre as funções de identificação e predicação no interior da frase/discurso. Por sua vez, a referência relaciona a linguagem ao mundo. Remete a um apontar intencional para as coisas, estados, pessoas e eventos de modo que no discurso “o sentido é atravessado pela intenção de referência ao locutor” (RICOEUR, 1987, p. 32). A referência postula o ca- ráter ontológico do discurso e a experiência de ser-no-mundo é condição para que os indivíduos possam se expressar pela linguagem. Nas palavras de Ricoeur (1987, p. 33), “é porque existe primeiramente algo a dizer, porque

temos uma experiência a trazer à linguagem que, inversamente, a linguagem não se dirige apenas para significados ideais, mas também se refere ao que é”.

Logo, para sustentar uma narrativa, é necessário não se deslocar totalmente da experiência vivida.

Entretanto, é importante enfatizar que, embora a narrativa esteja apoiada no mundo vivido, não é simplesmente representação ou reflexo de uma realidade. A Literatura é criação do escritor, não mera reflexão ou cópia de alguma realidade preexistente. Não imita o mundo, é um mundo próprio. A Literatura pressupõe certo afastamento da experiência vivida e é justa- mente por esse aspecto que tem o poder de apresentar novos modos de olhar o mundo. Por apresentar as coisas e pessoas de maneira renovada, tem a capacidade de chamar os leitores de volta para o fenômeno da percepção, excitando novas explorações sobre as interações sociais.

9 No que toca a relação desses dois campos de conhecimento com a Medicina, além da existência de um importante periódico (“Literature and Medicine”), vale salientar as pesquisas realizadas por Nouzeilles (2000), Davis (2000) e Clarke and Aycock (1990). A Literatura tem sido inclusive utilizada na formação profissional de médicos. Professores da Pennsylvania State University College of Medicine at Hershey, como Joanne Trautmann e Robert Coles, por exemplo, utilizam imagens literárias de práticas terapêuticas para encorajar reflexões éticas por parte de estudantes de Medicina (JONES, 1990).

Por definição, o meio de expressão da obra literária é a língua. As pa- lavras utilizadas pelo escritor fazem referência convencional a objetos e si- tuações. Embora possa estender o significado de uma palavra, o romancista necessita do sentido padrão da palavra para preencher uma das mais im- portantes funções do romance: contar uma história. As palavras da língua convencional adquirem significado a partir da experiência humana, mas, si- multaneamente, os indivíduos têm dela diferentes experiências de acordo com momentos e contextos. Ou seja, o significado convencional da palavra é sempre “impessoal”, abstração das variedades de experiências individuais.

Como chama atenção Merleau-Ponty (2004), o artista pode nos tornar conscientes de objetos simples (como os limões e cachos de uvas de Cézan- ne) que nos passam despercebidos, fazendo-nos olhá-los de uma nova ma- neira. Através da obra, o artista nos instiga a buscar, para além dos conceitos usados no cotidiano, novos modos de apreensão do real. Nesse aspecto, a Literatura amplia nosso entendimento do mundo e, com isso, ajuda-nos a ser mais “reflexivos”. A obra literária – como a arte em geral – tem o poder de nos “conduzir” a diferentes maneiras de perceber as coisas, além daquelas que usualmente desenvolvemos na vida cotidiana. Para isso, o escritor lança mão de algo que as pessoas têm em comum – uma “visão” já constituída da realidade – para com isso poder representar os fenômenos através de uma

nova perspectiva10. Nesse sentido, o artista propõe novas opções de ver a

realidade, uma vez que desviar demais da visão geralmente aceita no mundo

da vida cotidiana é correr o risco de perder a comunicação com os outros11.

É importante enfatizar, contudo, que o “modo de doação” da literatura não se constitui apenas pelo seu ser ideativo (conjunto de significações veiculado ao texto), mas também pela sua materialidade (que se configura 10 Assim, o escritor amplia as nossas percepções a partir do senso comum em que vivemos. É nesse sentido de poder renovar a percepção do mundo que o artista se diferencia da visão daqueles que são “mentalmente perturbados”. Ou seja, a visão (desconcertante) daqueles que padecem de “perturbação mental” está justamente no fato de que esses indivíduos, nas suas “manifestações artísticas”, não partem de uma intersubjetividade comum entre as pessoas.

11 Assim, conforme a perspectiva teórica acima esboçada, o presente trabalho está centrado na ideia de fruição provocada pela experiência estética e de identificação do leitor com o texto, processos esse qua- lificados por Wolfgang Iser (1999) de “efeito estético”. Tais pressupostos nos levam a considerar o espaço da recepção na produção de um texto. Conforme Hans-Robert Jauss (2002), o texto se escreve e se prova em função do “horizonte de expectativa” do leitor. Sem a experiência intersubjetiva do leitor, cairíamos na ideia equivocada de um público clássico homogêneo, simples receptor imediato de textos.

por meio de sinais gráficos ou sons verbais, podendo variar de exemplar para exemplar ou de execução para execução). Esse fato é de particular importância para os objetivos do presente artigo. O primeiro item ocupa em larga escala os estudos sobre Literatura e se refere aos aspectos da significação e da comunicabilidade da obra, do entendimento dos sentidos e valoração conferidos pelos sinais gráficos ou sons articulados, dentro dos quais estão presentes as dimensões sintáticas e semânticas das produções linguísticas, assim como os processos referenciais do texto (questões miméticas) e as relações cognitivo-afetivas estabelecidas entre o leitor/ ouvinte e a obra literária. A materialidade da obra literária, por outro lado, possibilita o contato físico do leitor/ouvinte com o texto impresso/falado. É necessário levar em conta que a obra literária é também “mercadoria”, cuja disponibilidade – na forma de livro ou jornal, por exemplo – requer todo um processo de produção e comercialização. Ao analisar a Literatura na sua materialidade, é importante perguntar “quem” produz o “que”, “para quem” e “como” esse bem é consumido.

Os pressupostos articulados anteriormente sobre a perspectiva de ex- plorar a Literatura pelas Ciências Sociais assumem importância particular na compreensão da proposta estética realista do fin-de-siècle. Esse movi- mento tornou-se objeto de inúmeras críticas e caricaturas na segunda meta-

de do século XX e, como consequência, foi relativamente pouco estudado12.

Northrop Frye (1990), por exemplo, considerou o realismo como tendo ca- racterísticas antiliterárias. Muitos dos militantes do “pós-modernismo” dão

pouco crédito a esse movimento, quando não o ignoram13. Em termos gerais,

o principal argumento da crítica é que a estética realista assume uma po- sição ingênua (e pouco sofisticada) por não levar em devida consideração a relação problemática entre realidade e sua representação. O realismo seria uma espécie de trompe l’oeil, confundindo o que é dito sobre o mundo com o que o mundo é, a palavra e o mundo; paradoxalmente movendo-se entre um absoluto idealismo e um extremo empiricismo.

12 Nos últimos dez ou quinze anos, contudo, a situação se inverteu. O número de publicações sobre o realismo (e o naturalismo) é significativo, principalmente no mundo anglofônico.

13 Ver, por exemplo, os autores que participam da coletânea The Routledge Companion to Postmodernism, organizada por Stuart Sim (2005).

Embora chame atenção para aspectos significativos, o argumento an- tirrealista tende a desenvolver apreciação inadequada dos pressupostos estéticos e cognitivos desse movimento e, com isso, não presta a devida atenção as suas virtudes e complexidades. Dentro da perspectiva das Ciên- cias Sociais, é importante enfatizar alguns aspectos essenciais na proposta realista: a sua intenção de deixar-emergir a realidade para que se possa desocultá-la.

A pretensão realista de descrever o que é verdadeiro ou real (a velha questão da “verossimilhança”) é, antes de tudo, compromisso com um meio

de conhecimento, esforço para se dizer algo sobre o real. Um dos princípios

fundamentais dessa “escola” é a prioridade que é dada a referencialidade do texto: o apontar intencional para as coisas, estados, pessoas e eventos. O realismo na Literatura pressupõe um mundo ao nosso alcance; um mundo dotado de facticidade, cujos fenômenos experimentamos através do contato vivo e sobre o qual podemos potencialmente influir mediante a ação direta. A Literatura, portanto, deve ir além das palavras para que possa alcançar as coisas tais como elas são. Não se trata exatamente de buscar as coisas em si mesmo ou suas essencialidades, mas de pressupor a existência prévia do mundo como condição necessária para a expressão literária. A realidade externa do mundo é a “zona de operação” na qual o artista pode dizer algo.

De acordo com o realismo, o mundo é socialmente construído pelo senso-comum e, assim como acontece na “atitude natural” (conforme desig- nação da fenomenologia husserliana), é o fundamento inquestionável de todo o dado da experiência. Não é um mundo privado, senão intersubjetivo, compartilhado por indivíduos e grupos sociais em contextos sociohistóricos específicos.

Em síntese, a Literatura realista não nega a individualidade criadora. O que é dito no texto – o seu “sentido”, isso é, as correlações de identificação e predicação no interior da frase ou discurso – é resultado da experiência que o literato traz à linguagem. Mas, é importante enfatizar, o sentido do que é dito pressupõe do artista um modo de saber, de apreender o que está presente enquanto tal. Assim, como observa Levine (2010), o autor realista termina por estabelecer diferenças entre “realidade” e “mundo da literatura”.

REVENDO O DISCURSO SOBRE A MODERNIZAÇÃO