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No Brasil, até meados do século XX, apenas algumas grandes indús- trias urbanas contratavam médicos para avaliar a saúde de seus emprega- dos. Essas atividades “eram uma extensão do consultório”, embora já hou- vesse entre os profissionais o “sonho de uma legislação que regulamentasse os serviços médicos nas fábricas, relembra Souto (2004, p. 184), experiente médico do trabalho que vivenciou essa trajetória desde seu início. Entretan- to, a primeira “cultura prevencionista” nessa área veio de fora do país, afirma Elizabeth Dias (2002), que estuda a formação e o campo de atuação profis- sional do médico do trabalho no Brasil. Quando as empresas estrangeiras de grande porte se instalaram no país, ela acentua, trouxeram também certas

práticas de organização de Serviços de Medicina do Trabalho existentes nos respectivos países de origem (DIAS, 2002, p. 16).

Mas a introdução obrigatória e sistematizada de médicos nos locais de trabalho só ocorreu a partir de 1978, após as modificações do capítulo V da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) que trata Da segurança e da medicina

do trabalho, pela Lei 6.514/77. Entre outras ações, trata da obrigatoriedade

de empresas públicas e privadas manterem em seus estabelecimentos um Serviço Especializado em Segurança e Medicina do Trabalho (SESMT) e con- tratarem médicos do trabalho para promover a saúde e proteger a integri- dade do trabalhador no local de trabalho. Atualmente, essa função clínica agrega milhares de médicos do trabalho distribuídos por empresas públicas ou privadas em todo o Brasil.

Para que possa ser contratado por uma empresa e fazer parte de um SESMT, o médico do trabalho deve ser qualificado por um curso de especia- lização em Medicina do Trabalho ou dois anos de residência médica na es- pecialidade. O contrato de trabalho deve obedecer à CLT, com jornadas de 20 ou 30 horas semanais; o contratado, por sua vez, está legalmente “proibido” de exercer outras atividades na empresa, além das previstas na NR 04, que especifica detalhadamente suas funções e responsabilidades:

Aplicar seu conhecimento para reduzir e eliminar os riscos de acidentes e doenças do trabalho na empresa. Responsabilizar-se, tecnicamente, pela orientação da empresa no cumprimento das normas de segurança e saúde no trabalho. Promover atividades educativas e campanhas de prevenção de acidentes e doenças ocupacionais entre os trabalhadores. Registrar e analisar todos os casos de doenças ocupacionais ocorridos, descrever a história e as características da doença, os fatores ambientais, as características do agente e as condições do seu portador. Notificar esses acidentes e doenças anualmente aos órgãos do Ministério do Trabalho (Adap- tado da NR 04, Portaria 3214/78).

Dias (2002) considera que as mudanças na legislação obrigando toda empresa adotar um Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional

(PCMSO) em 1994 introduziram “uma profunda mudança na organização das ações de saúde dos trabalhadores pelos empregadores” (DIAS, 2002, p. 17). Segundo ela, o PCMSO “ampliou consideravelmente a população tra- balhadora coberta por ações de saúde promovidas sob a responsabilidade do empregador” (p. 17). Foi mudado o próprio conceito de “atestado médico de aptidão para o trabalho”, “transformando-o em um Programa que consi- dera a vida do trabalhador na empresa, desde seu ingresso até a demissão” (p. 17). A responsabilidade técnica da coordenação deste programa cabe a um médico do trabalho que “divide com a empresa as responsabilidades criminais, cíveis e, no caso específico, profissionais” (p. 17). Além disso, ela ressalta, a partir de 1994 houve o direito de acesso aos resultados dos pró- prios exames pelos trabalhadores e a obrigatoriedade dos serviços médicos das empresas confeccionarem um prontuário clínico individual (com infor- mações colhidas pela anamnese, exame clínico e exames complementares, as conclusões, os procedimentos e a evolução de cada caso) e mantê-lo arquivado durante pelo menos 20 anos, sob a responsabilidade do coorde- nador (NR 07, Port. 3214/78).

O conceito de doença ocupacional para fins de afastamento do traba- lho também é diferenciado: inclui trabalhadores sintomáticos e incapacita- dos, mas também assintomáticos cujos exames ou “indicadores laboratoriais” encontram-se alterados. Para todos os casos, “deverá ser emitida Comunica- ção de Acidentes do Trabalho (CAT) e indicado o afastamento do trabalhador do risco, encaminhando-o ao serviço de saúde e à previdência social” (DIAS, 2002, p. 19). Entretanto, mesmo com o rigor que caracteriza essa regulamen- tação, controle dos órgãos de classe (nacionais e regionais), fiscalizações do MTE ou do SUS, Dias afirma que a realidade ainda deixa muito a desejar, pois persistem “denúncias de fraude, má condução técnica, desvios éticos, que necessitam ser coibidos e corrigidos” (DIAS, 2002, p. 19).

Após a abertura democrática do país a partir da década de 1980, o tema da saúde dos trabalhadores no país torna-se cada vez mais político e frequentemente ocorre presença do Estado mediando interesses de em- pregados e empregadores. No campo jurídico, reafirma-se cada vez mais o entendimento de que a responsabilidade legal de empregadores em reduzir riscos ocupacionais não exclui “a indenização a que está obrigado, quando

ocorrer em dolo ou culpa” no caso do adoecimento, afirma o médico do tra- balho Arlindo Gomes (2003, p. 1836) e continua, lembrando que “a indeni- zação acidentária não exclui a do direito comum, em caso de dolo ou culpa

grave1” (p. 1837). Assim, alerta: “Na questão acidentária [que inclui as doen-

ças ocupacionais], a responsabilidade civil envolve a empresa, o empregador e seus prepostos”, e, os profissionais de saúde contratados, embora sofram ônus menor, “não estão livres de condenação, pois eles são solidariamente responsáveis, principalmente se descumprirem” obrigações legais. (p. 1838).

É nesse contexto de trabalhador assalariado, cuja prática clínica deve obedecer aos princípios éticos e técnicos de uma clínica especializada, norteado por um conjunto de leis que os médicos do trabalho atuam nas empresas, situados no epicentro de relações trabalhistas e do processo de adoecimento, envolvendo-se concomitantemente com previdência, assistên- cia médica (pública e privada), sindicato ou litígios judiciários. A seguir, para ilustrar essa posição do médico, serão apresentadas partes de duas narrati- vas desses médicos. documentadas por meio de entrevistas (OLIVEIRA, 2006).

A primeira narrativa é a de Alice, coordenadora do PCMSO de uma empresa do setor serviços (K), com milhares de empregados, cujo principal problema de saúde ocupacional é o adoecimento por LER/DORT. Sua car- reira como médica do trabalho começou há mais de dez anos, com a oferta de um emprego temporário em uma grande indústria da RMS. Inexperiente, trabalhava em consultório próprio quando foi convencida pelos argumentos de que o trabalho na empresa consistiria apenas em encaminhar uma rotina preestabelecida de exames:

Então eles me explicaram que era só clínica, que todos os exames perió- dicos já estavam definidos... Que em nenhum momento eu ia assumir a postura de um médico do trabalho e me deram um bocado de material pra eu levar pra casa para ler... Como era num período de janeiro, e consultório baixa muito a consulta durante esse período, então eu vi que dava para eu conciliar. Aí eu fiz essa experiência e correu tudo muito bem. Foi só coisas de rotina mesmo, não teve nada que pudesse me assustar...