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A MOBILIZAÇÃO DO CORPO NOS CAMINHOS DA NORMALIZAÇÃO – A HISTÓRIA DE DINÁ

Na base das ações dos indivíduos no mundo social está a perspectiva da manutenção e da estabilidade (SCHUTZ, 1979, 1980). Diversos eventos podem abalar, por em questão esse fundamento, desde que não possam ser explicados pelos “conhecimentos à mão”, os códigos de interpretação funda- dos nas experiências individuais e coletivas passadas. Nesse caso, instala-se uma situação de dúvida, que pode levar a uma paralisação da ação, ou à sua redefinição, experiência de dúvida pode ser entendida como ruptura, na medida em que há um descompasso entre o que é esperado socialmente e o que de fato ocorre, ficando o indivíduo, momentaneamente ou não, incapaz de reagir ao inesperado. A situação é precisamente o que outros autores denominam de “experiências de crises” (BRAGANÇA DE MIRANDA, 1994; BE- CKER, 1997; SALEM, 1980), para as quais não se dispõe dos fundamentos que guiaram as ações e nortearam os julgamentos e decisões. Pode-se infe- rir que uma experiência totalmente estranha, ou que não possa ser compar- tilhada socialmente, apresenta dificuldades de superação. Para compreender a ruptura, os referidos autores não levam em conta apenas as características específicas de determinadas experiências, mas também dispõe em relevo o todo sociocultural e os processos sociais que se estabelecem no desenro- lar. Estão assim distantes das conceituações mais comuns sobre o trauma. Dessa forma, seria o descompasso entre as expectativas sociais e culturais e certas vivências concretas dos sujeitos, ou seja, “a disparidade entre noções culturais de como as coisas deveriam ser e como são” (BECKER, 1997, p. 10) o que geraria uma situação de ruptura. Becker (1997) demonstrou isso ao estudar uma série de momentos ou acontecimentos onde ocorrem ruptu- ras na vida das pessoas, a exemplo de emigração, morte de ente querido, infertilidade, doenças graves ou degenerativas, entre outros. Segundo ela, a vivência dessas situações expressa a não-realização de expectativas sociais

com relação ao curso da vida, experienciando dado sentimento de caos, de perda do futuro e mesmo da organização corporal. Este último aspecto en- volve uma compreensão da dimensão do corpo nas relações sociais. Becker (1997) demonstra, a partir de perspectiva fenomenológica, como o corpo é o primeiro mediador das experiências do indivíduo no mundo e como, por isso mesmo, tanto as doenças podem gerar desorientação social, na medida em que rompem com os hábitos sociais ‘encarnados’, como experiências sociais podem ter efeitos sobre o corpo, rompendo sua consistência. Do mesmo modo, Schutz (1980) insiste que o corpo é a origem das coordenadas que delimitam as relações interpessoais, e é, neste sentido, o que possibilita a existência de qualquer reciprocidade. O corpo carrega as marcas da dimen- são social da existência; é o lugar de um saber socialmente “encarnado”. Vejamos, na história de Diná, como essas dimensões vêm à luz.

Diná é uma senhora de 52 anos, obesa, pesando cerca de cem quilos adquiridos após sofrer séria violência sexual. Microempresária, especializa- da em doces e salgados para festas, gerencia o lar com dois filhos adoles- centes, além de responder às constantes demandas de saúde do pai, senhor de 85 anos. As responsabilidades lhe cabem sozinha, pois é divorciada e não conta com o ex-marido, alcoólatra e desempregado, para a solução de ne- nhum dos problemas; sejam os mais sérios, sejam os exigidos habitualmen- te pelo cotidiano. Para a “libertação do casamento” passaram-se 15 anos: era constantemente agredida verbal e fisicamente e, na percepção dela, em decorrência disso, não conseguia se desenvolver bem em nenhuma das ati- vidades que exercia. Também devido ao ambiente de constante violência e incertezas, não conseguia se estabelecer economicamente. Diante dos ris- cos aos quais filhos pequenos estavam expostos, decidiu se separar. Desde então mora sozinha. Os últimos quatorze anos são considerados como de muita luta: educar filhos, cuidar da saúde do pai, suportar a perda dolorosa da mãe e enfrentar, em relacionamentos amorosos breves e mal sucedidos, homens inadequados (aproveitadores, um impotente sexual que se recusava terminantemente a buscar tratamento, e outro portador de Transtorno Afeti- vo Bipolar). Histórico que a leva a dizer que “nunca teve sorte com homens”.

Foi nessas circunstâncias que entrou em contato com o homem que a iria violentar. Em dado momento, o pai telefonou-lhe no meio da madrugada

afirmando estar morrendo. Diná, imediatamente, acionou serviço de ambu- lância com atendimento médico de emergência em domicílio. Ao chegar na casa do pai foi informada que não passava de sintoma de solidão e que é comum ocorrência desses tipos de chamadas por idosos que moram sozi- nhos. Oenfermeiro, descrito como extremamente simpático de dois metros de altura e olhos verdes, interessou-se pelo caso e se disponibilizou para qualquer ajuda.

Algumas semanas se passaram e, por acaso, se encontraram na cidade. O enfermeiro comunicou-lhe o interesse, pois nele algo “muito forte” havia sido despertado. Com muita insistência, conseguiu o número do telefone. Ini- ciaram repetidas ligações e convites para saírem, sempre recusados por Diná, por não sentir simpatia especial pelo rapaz, além de estar atarefada com a pequena empresa. No entanto, na oportunidade em que a convidou para um almoço, no último dia do ano de 2004, resolveu aceitar. A intenção era se per- mitir conhecer alguém, sair um pouco da reclusão e do desapontamento em relação aos homens. No caminho para o almoço, o enfermeiro, portando uma arma de fogo, obrigou-a a entregar o próprio carro, raptou-a e violentou-a em degradado motel do subúrbio. A agressão foi extremamente grave, envol- vendo lesões corporais variadas: do sexo anal resultou um prolapso retal e o sexo oral lesionou-lhe gravemente boca. Deixada em uma das avenidas mais movimentadas de Salvador, chegou a casa em estado grave, recolheu-se e só pode voltar a andar sem apoiar-se depois de quatro dias. Foi quando resol- veu ir à delegacia: na presença da delegada, minutos antes de formalizar a denúncia, desistiu. Informou à polícia um nome fictício e inventou um núme- ro de placa falsa para o carro do agressor. Desistiu de envolver a polícia por medo de sofrer alguma forma de represália: o agressor sabia seu endereço, conhecia seus filhos. Que garantia ela teria?

Passados quatro dias da agressão, quando chegou ao VIVER, não pode mais utilizar o coquetel anti-aids cuja eficácia é de até 72 horas após o con- tato sexual de risco. Desistiu da psicoterapia oferecida pelo VIVER, pois “não suportava ver aquelas mulheres todas na sala de espera, principalmente as crianças. Quando eu dei carona a uma mãe com a filhinha de colo que foi violentada pelo padrasto, eu disse: ‘lá eu não volto’”. Com isso, havia abando- nado todos os amparos institucionais do Estado: o VIVER, a Polícia e a Justiça.

Na família ninguém soube do ocorrido, fato que reconhecia como o mais difícil de tudo: “não poder dividir”. O sofrimento psíquico e corporal que começou no mesmo dia da agressão perdurou e adquiriu novas formas nos dias seguintes: crises incontroláveis de choro e desmaios na rua, durante a realização de suas tarefas. Começou também a ganhar peso, passando dos 68 quilos anteriores à agressão aos 100 quilos atuais. O corpo avolumado não a preocupava, pois queria mesmo “não chamar atenção de nenhum homem”. Em uma ocasião corriqueira, realizando compras habituais no supermercado, iniciaram crises de pânico: taquicardia, suor frio e vontade incontrolável de sair do ambiente. Ao mesmo tempo em que vivia uma espécie de medo das pessoas no supermercado, interrogava-se sobre “o que se passava na cabeça das pessoas, o que as pessoas teriam por detrás das máscaras”. Passou a du- vidar da consistência da realidade social e uma névoa de incertezas recobriu seus contatos interpessoais. Apesar de não formalizar queixa, diariamente temia pela vingança do agressor, que continuava a ver nas idas ao centro da cidade e que já lhe havia telefonado várias vezes para dizer que estava apaixonado. O temor de possível represália alterou-lhe completamente o cotidiano: passou a levar filhos todos os dias à escola e a controlar-lhes rigi- damente os horários, o que gerou muitos conflitos familiares. Os filhos não entendiam o inesperado rigor. Fechou-se em relação a encontros amorosos e investidas de pretendentes. Um novo temor surgiu: estar contaminada pela AIDS. O sentimento de culpa começou a lhe atormentar: por que ela, que é tão “maliciosa” e atenta, se deixou levar pelo agressor?

Esta história, narrou-me Diná, três meses após a agressão, em nos- so primeiro contato, na própria casa, pois não frequentava mais o VIVER. Seis meses depois, tivemos o segundo contato. Coisas novas haviam ocorri- do. Estava fazendo alguns movimentos para tentar resolver os sentimentos dolorosos e sintomas corporais. Com relação ao sentimento de culpa, uma nova agressão sexual ocorrida na família a fez rever a culpabilidade em seu próprio estupro:

Eu tenho uma tia que tem oitenta e poucos anos e foi também violentada. Ela pegou um táxi e o taxista levou ela pro final de linha, estuprou, violentou! Oitenta e dois anos! Ela chamou pra pegar um táxi... e o pior é que não era uma pessoa assim nova, não é uma pessoa bonita, é uma pessoa que tem diabete,

cega de um olho, gorda, enorme e diz que o menino tinha vinte e poucos anos. Na verdade, eu não tive culpa nenhuma disso... Então o problema não tá em mim, o problema tá nele [no agressor].

Os relatos de Diná em nosso segundo encontro demonstravam, assim, o seu engajamento em uma série de novas situações sociais. Não se tratava certamente de um processo linear e contínuo rumo à retomada do cotidia- no. As emoções dilacerantes retornavam com frequência, principalmente em certos encontros sociais, nos momentos de solidão, ou quando precisava per- correr os trajetos da cidade onde estivera antes e após as agressões. Essas circunstâncias despertavam angústias e lembranças que acreditava já terem sido esquecidas. Mas em meio a avanços, recuos e repetições, algo de novo se apresenta:

Mas eu estou me sentindo muito bem, diante de tudo que eu passei, os momentos, eu estou superando. Eu acho que estou superando legal, estou bus- cando também esse trabalho de voluntariado, fico com os meninos da creche e ocupo muito meu tempo. Procuro assim orar muito, sabe, entregar esse homem a Deus, porque não é possível que um dia ele não vá se tocar. Eu não sei se ele tá fazendo isso, se ele continua fazendo isso, se foi um momento dele, eu não sei! Eu não sei o que foi, não sei! É uma coisa assim que eu ainda choro muito, mas bem menos. Tem horas que eu ainda choro. Que eu me questiono, porque tudo isso aconteceu, porque a pessoa agiu dessa forma.

Nova também era a forma de compreender a agressão. O reingresso na experiência religiosa a fazia ver na violência, talvez, uma mensagem divina, um ensinamento:

Eu vou dizer uma coisa a você, na vida da gente tem momentos mara- vilhosos, mas tem momentos também extremamente difíceis. Então tudo isso eu acho que Deus coloca na nossa vida, como ensinamento, pra que a gente possa despertar. Alguma coisa, na verdade, Deus quis me mostrar com isso tudo. Eu acho que Deus quis me mostrar pra eu abrir mais os olhos com relação às pessoas, conhecer melhor as pessoas. Eu não sei, eu não sei o porquê disso tudo. Tem horas que eu paro até pra me questionar ainda.

O final da fala, ao mesmo tempo sugere que se a nova compreensão do crime sofrido diz respeito a um redirecionamento em relação à própria experiência, esta ainda não possui a solidez de uma conclusão definitiva:

Hoje eu sou muito mais madura. Muito mais! Realmente foi uma experi- ência terrível aonde eu digo a você, digo a todo mundo que a gente conversa, eu digo: “Olha, é difícil quando a gente tem a alma ferida, sabe?”. Porque é uma cicatriz assim que ela não vai sarar nunca.

Entretanto, tem-se aqui um reposicionamento da violência em relação à própria vida. A experiência passa a assumir novos significados quando, pro- gressivamente, é também recolocada à luz da trajetória biográfica. Sob essa ótica, o estupro podia agora ser visto como mais uma das muitas dificulda- des, que, aliás, remontam-lhe à vida intra-uterina. A trajetória de infortúnios a teria também preparado para, sozinha, enfrentar crises:

Então vem acontecendo situação de minha vida que eu mesmo procuro dominar. Desde a vida uterina, desde quando eu nasci. [...] Quando eu nasci meu irmão tinha um ano e três meses e então, estava naquela idade [...] minha mãe estava sem empregada, então eu fui criada no berço. Eu com três meses de idade — minha mãe contava isso como se fosse a coisa mais fantástica do mundo — eu tomava aquela mamadeira de vidro grossa e ela só via a mamadeira bater no berço e então ela ia... Ela só me pegava pra dar banho, me trocar, botava uns brinquedinhos [...] Eu fiquei em pé no berço, eu ficava sentada... Então eu criei aquela independência em mim. Assim, eu sei que tenho que ir no mercado com- prar alguma coisa, eu não sei ficar esperando fulano pra poder ir. Se tem que ir, eu vou. Eu acho que isso é uma forma de me despertar pra correr atrás dos ob- jetivos, de superação também. Talvez se eu fosse aquela pessoa muito mimada, né, cheio de dengo eu não tivesse essa condição de superar e de encarar assim minha vida de frente. Eu não abaixo minha cabeça.

Em nosso terceiro e último encontro, já passados ano e meio da agressão, Diná me relata uma aquisição decisiva no percurso de superação. Havia visto, por mera coincidência, uma cadela Basset, que a fez relembrar do agressor: a cadela tinha a mesma cor de olhos dos do agressor: verde. Em um rompante que não soube explicar, decidiu comprar o animal mes- mo não tendo nenhuma experiência prévia ou afeição especial por ele. Estabeleceu-se, assim, uma nova relação:

Esse cachorrinho [apontando para o animal que estava no sofá], eu tinha pavor a cachorrinho! Porque meu pai me criou assim: “Cachorro é raça que morde e não sei o quê...”. Então eu tinha pânico. Olha, eu tava com R$ 150,00

na mão, aí como a menina que eu encontrei tava com um cachorrinho desses de olhos verdes (a cor dos olhos dele, olhe que incrível) e me deu o telefone da moça que vendia, de lá mesmo eu liguei. Perguntei se ela tinha um dos olhos verdes e ela disse que tinha. “Você pode buscar quando?”, “Daqui a pouco eu estou aí”. Aí cheguei em casa e quando cheguei em casa pra meus filhos foi a maior felicidade do mundo. “Comprei uma caminha de cachorro, comprei ração, vamos comigo lá na Praia de Flamengo comprar um cachorro?”. E minha filha: “O que, minha mãe?”, “Um cachorro daquela raça, me deu vontade de ter um cachorro”. Então ele tem me ensinado tanta coisa! Da fidelidade, da amizade. Se eu sair aí e entrar... Às vezes eu vou jogar o lixo aí fora, quando eu entro, parece que passei o dia todo fora de casa. Então não resta a menor dúvida que esse animal tem trazido assim tanta lição de vida, né, dorme comigo todas as noites, me lambe, fica no meu colo [...].

A aquisição da cadelinha em si mesma já continha um elemento de superação, pois significava deixar de lado o antigo medo de cachorros. A chegada da mascote também impôs a incorporação de novos hábitos: sair para passear, pelo menos duas vezes ao dia, idas a veterinários, adaptações do apartamento para comportar adequadamente a nova moradora. Uma sé- rie de atividades que tinha sido abandonadas, agora, pela saúde do pequeno animal, tinham que ser retomadas: saídas, idas a lojas para compras, pro- ximidade com vizinhos, pois a alimentação da pequena precisava ser cui- dada pelos próximos quando se ausentava por muito tempo de casa. Mas, indubitavelmente, uma contribuição decisiva da aquisição inesperada foi a nova vivência afetivo-corporal. Como se vê na parte final da fala citada: se a agressão a levara a duvidar da bondade humana e, sobretudo dos homens, a cadelinha de olhos verdes – um traço do agressor – voltou a lhe inspirar alguma crença em poder ser amada verdadeiramente. Seu corpo também é tocado, afagado e desafiado a incorporar novas modalidades de vivências como, por exemplo, dividir o espaço na cama todas as noites. Quando fina- lizei as entrevistas com Diná era evidente que o percurso de recomposição do fluxo existencial estava em pleno curso. Ainda que em um horizonte de indefinição, era visível que a vida não tinha paralisado:

Superar vou, apagar é uma coisa que não apaga, porque foi uma coisa que marcou muito a minha vida. Claro que eu tô vivendo novamente, eu tô superando

tudo isso. Eu acho até que eu estou sendo muito forte, eu fui muito forte e eu acho que eu estou bem.

Se havia indefinição, havia também os significativos traços de um mo- vimento de engajamento no mundo, um corpo no qual dores não se crista- lizaram e um contínuo envolvimento em novos projetos estava em curso. Por outro lado, algumas mudanças não eram alvo de atenção, não buscava superá-las, pois se referiam ao que havia ficado de “positivo” da experiência: desconfiança das pessoas, cuidados ansiosamente redobrados com os filhos, a importância do aumento de peso forma de bloqueio ao desejo masculino. Estas alterações pareciam ter caráter mais duradouro na vida de Diná. Os ca- minhos da normalização sugerem duplo movimento: o surgimento de novas relações e envolvimentos em projetos e a conservação do que é caracteri- zado como uma aprendizagem, amadurecimento, marco do fim da inocência.