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A disputa pela hegemonia no plano inter-estatal

Percebe-se que as mudanças provocadas pela globalização são desafiadoras das teorias que tentam desvendar os caminhos da construção da hegemonia no plano mundial. Segundo Gramsci, a classe dominante consegue impor sua ideologia porque detém a posse do Estado e dos principais instrumentos hegemônicos que é a religião, a escola, a imprensa, porque domina a Sociedade Política e a Sociedade Civil e cria um escudo de proteção da hegemonia. A classe dominante, não só deve controlar a produção e a distribuição dos bens, como organizar e distribuir as ideias que fundamentam seu modo de produção, para garantir um mínimo de hegemonia cultural, como se viu em Anderson e Ortiz. Mas como esta dinâmica se dá no plano internacional?

Ao ampliar a concepção marxista de que as ideias dominantes de uma época são as ideias da classe economicamente dominante daquela época para a esfera da sociedade e da cultura Gramsci aponta que a ideologia da classe dominada pode entrar em disputa com a ideologia da classe dominante e criar as bases da sua superação. Aqui se separa dominação de

hegemonia, reconhecendo que as classes que ainda não conseguiram o controle do uso da força do Estado e dos meios de produção podem disputar as ideias dominantes no âmbito da sociedade civil. Esta concepção gramsciana de hegemonia e cultura é essencial para se desvendar a disputa que se trava pelos destinos da globalização.

Segundo Simionatto,

Ao apreender a dinâmica das instituições, do sistema de crenças e valores que, vistos separadamente, não passam de uma visão fragmentada do real, sem qualquer coerência, Gramsci propõe que estas questões constitutivas das relações de poder sejam trabalhadas e compreendidas como possibilidade para a formação de uma contra-hegemonia (SIMIONATTO, 1995, p. 81).

Na verdade, não se encontra na obra de Gramsci uma referência exata à contra- hegemonia. Ele fala de construção de hegemonia. A construção de uma nova hegemonia em termos culturais é a promoção de um novo senso comum que seja reconhecido pela sociedade, em especial os trabalhadores e camponeses, para Gramsci, como algo familiar e condizente com suas necessidades. É por isso que para Gramsci, a escolha por outra concepção de mundo é também uma ação política. A busca por uma nova ideologia está concatenada com ações práticas, é a filosofia da práxis.

Uma filosofia da práxis só pode apresentar-se, inicialmente, em atitude polêmica e crítica, como superação da maneira de pensar precedente e do pensamento concreto existente (ou mundo cultural existente) (GRAMSCI, 1999, p. 101).

A formação de uma nova cultura, portanto, começa ao se criticar o senso comum vigente. Ao criticar os valores que lhe são impostos pela classe dominante, as classes subalternas organizam seus desejos, suas necessidades, suas ações em novos termos, em uma nova gramática cultural. Tal crítica, no entanto, só se desenvolverá se estiver intimamente ligada a ações práticas, muitas vezes na reação aos resultados das políticas exercidas pela classe dominante.

Segundo Coutinho, este momento em que uma classe deixa de ser um puro fenômeno econômico e passa a elaborar uma vontade coletiva é o “momento catártico” de Gramsci. Para o teórico italiano, se uma classe social não é capaz de realizar esta “catarse”, não pode se tornar a representante dos interesses de toda uma nação, de um bloco histórico que pretende conquistar a hegemonia na sociedade (COUTINHO, 1989, p. 53). Segundo Simionatto, “as reflexões gramscianas encaminham para a necessidade de criar uma nova cultura, formar uma

concepção de mundo criticamente coerente”, que faça com que “as massas saiam da passividade e criem uma nova forma de pensar” (SIMIONATTO, 1995, p. 83).

Em termos mundiais, este momento catártico se aproxima do caos sistêmico arrighiano. Para Arrighi, o caos se instala quando a potência hegemônica perde capacidade de governabilidade do sistema, e abre-se uma janela de oportunidades para a conquista da hegemonia mundial por outros atores estatais. As estruturas existentes se desequilibram e novas estruturas buscam se reposicionar no cenário mundial.

Conforme a análise arrighiana, nos últimos 500 anos, o mundo já viveu pelo menos três momentos de caos sistêmico que sucedem períodos de estabilidade da governabilidade hegemônica e ocorrem imediatamente após o surgimento de uma crise sinalizadora. Foi assim com o declínio do ciclo Genovês e a ascensão do Holandês, com o declínio do Holandês e a ascensão do Britânico e com o declínio do ciclo Britânico e ascensão do Estadunidense. Em todos os momentos de sobreposição de ciclos em que um declinava e outro ascendia, o principal sintoma foi o processo de financeirização da economia mundial levada a cabo pela hegemonia em declínio. Além da financeirização impulsionada pela potência em crise, outras características se repetiram no processo de transição hegemônica dos ciclos anteriores ao atual, entre elas estão ascensão de novos centros de poder e riqueza; crise das instituições internacionais; a perda de capacidade coercitiva da potência hegemônica e a instalação de um conflito armado que marca o clímax25 do caos sistêmico e a crise terminal da hegemonia. Este estado de caos e falta de governabilidade gera uma situação em que

À medida que aumenta o caos sistêmico, a demanda de “ordem” – a velha ordem, uma nova ordem, qualquer ordem! – tende a generalizar cada vez mais entre os governantes, os governados, ou ambos. Portanto, qualquer Estado ou grupo de Estados que esteja em condições de atender a essa demanda sistêmica de ordem tem a oportunidade de se tornar mundialmente hegemônico (ARRIGHI, 1996, p. 30).

No presente momento em que se escreve esta tese, uma série de elementos típicos de um momento de caos sistêmico estão em evidência. As décadas de 70 e 80 do século XX se assemelham aos momentos de crise sinalizadora dos ciclos hegemônicos anteriores e a expansão financeira promovida em resposta a esta crise pela potência hegemônica também tem antecedentes no declínio hegemônico holandês e britânico. Ao lado do processo de financeirização, avançou uma agenda neoliberal baseada na reestruturação produtiva, na

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Segundo Arrighi, este clímax é caracterizado pela “centralização da capacidade militar e financeira nas mãos do Estado hegemônico em ascensão” (ARRIGHI, 2001, p. 75).

desregulamentação das leis trabalhistas, na precarização do emprego, na flexibilização e na automação que passaram a definir os contornos da globalização neoliberal hegemônica. Neste cenário, um novo pólo de acumulação sistêmica começa a se formar no sul26 global, com destaque para a Ásia e em especial para a China.

Não obstante a migração do poder financeiro para o sul ou o “oriente”, tudo indica que o poder militar permanece com os EUA. E isto afasta a possibilidade do clímax bélico observado nas transições hegemônicas anteriores. Por outro lado se confirma a crise das instituições internacionais e a crise de liderança e de poder consensual da hegemonia como ficou explícito na implosão das negociações no âmbito da OMC, na redução do papel das instituições de Bretton Woods, na instalação da Guerra no Iraque em 2003 e uma série de outras evidências às quais este trabalho se reportará ao tratar da globalização contra- hegemônica no âmbito da sociedade civil global.

Esta pesquisa não tem como objetivo decifrar todos os momentos da atual crise hegemônica do sistema, mas um em particular. Não é o momento econômico e nem o militar da disputa hegemônica que será pautado, mas o da capacidade de gerar um consenso, de guiar, de conduzir, nos termos de Gramsci, a partir de um sistema de valores universais e civilizatórios que fundem uma nova hegemonia. A atenção será dada à disputa no terreno das ideias e pela afirmação de uma cultura mundial cosmopolita e democrática.

Um teórico que ajuda a desvendar a diversidade destes elementos culturais dentro do processo de globalização e a consequente disputa pela hegemonia cultural em termos globais é Boaventura Santos. Auto-intitulado um teórico “pós-moderno de oposição”, crítico da modernidade e especialmente da razão instrumental que a fundamenta, o autor não se posiciona ao lado daqueles que buscam, através da superação das “grandes narrativas”, imporem o minimalismo e a fragmentação das ciências, da política e das artes para se tornarem, cada ramo ao seu modo, forças produtivas de desenvolvimento do capitalismo. Assim como Arrighi e Tilly, Santos também aponta para as dificuldades que enfrenta hoje o modelo político da modernidade ocidental fundado no Estado-nação e no modelo hegemônico de democracia liberal27.

26 Neste trabalho não se refere ao sul meramente como uma localização geográfica, mas como uma referência à

periferia do sistema capitalista mundial, inclusive o sul localizado no norte geográfico, como as comunidades de imigrantes nos que vivem nos países europeus e nos EUA.

27 Santos e Avritzer (2002), no texto introdutório de Democratizar a democracia, intitulado Introdução: para

ampliar o cânone democrático mostram como a democracia assumiu um papel central no campo político do

século XX e como sua proposta hegemônica “implicou em uma restrição das formas de participação e soberania ampliadas em favor de um consenso em torno de um procedimento eleitoral para a formação de governos”, deste modo, “a forma hegemônica de democracia, a democracia representativa elitista propõe uma extensão para o

O autor sugere que ao ser reconfigurada a estrutura mundial baseada em unidades de Estado-nação, estaria havendo o deslocamento da luta pela emancipação social para o nível global. Tal visão implica no desenvolvimento de debates em torno de concepções de sociedade civil global, espaço público global e governança global, conforme a discussão do próximo capítulo. Santos defende que é preciso pensar políticas emancipacionistas ao mesmo tempo com âmbito global e legitimidade local. Neste sentido, sua concepção de disputa pela hegemonia global privilegia uma visão sobre as dimensões sociais, políticas e culturais, complementando a leitura de Arrighi que tende a estar mais centrada no momento econômico e militar.

A globalização neoliberal como resposta do campo hegemônico ao caos sistêmico eminente trouxe esta disputa pela hegemonia cultural para um novo cenário. Apesar de não existir algo como um Estado global, também já não existem Estados nacionais que não estejam interconectados, seja através da economia, das tecnologias ou da cultura. Para Ortiz, fala-se em economia global pensando em uma única estrutura de trocas comerciais no planeta, a mesma dimensão global vale para a tecnologia, quando se fala de redes globais de comunicação, internet, satélites. Mas, ainda não existe algo como uma “cultura global” ou uma “identidade global”. Há uma mundialização de distintas concepções de mundo que se contrapõe entre si e que “marca a diversidade dos elementos culturais na situação de globalização” (ORTIZ, 2007, p. 11).

Santos faz uma discussão sobre as formas de produção desta globalização, ou dos processos da globalização, que podem ser hegemônicos, no caso a financeirização e a desregulação neoliberal, ou contra-hegemônicos, como o respeito ao meio-ambiente e a difusão de uma cultura de paz. Considera-se, dentro de sua análise, que não exista apenas uma globalização, mas globalizações. São na verdade processos sociais que envolvem conflitos e, “por isso, vencedores e vencidos” 28.

O efeito desta dicotomia geralmente é a invisibilização dos “vencidos” de acordo com a divulgação da história pelos “vencedores”. Sob este prisma, é globalizado algo que surgiu como uma característica local e é localizada a característica ou condição rival, que não conseguiu prevalecer globalmente. Aquilo que se globalizou ganha status de universal, verdadeiro, necessário, imperativo. Fica como local o fraco, o duvidoso, o ilegítimo. Segundo resto do mundo do modelo de democracia liberal-representativa vigente nas sociedades do hemisfério Norte, ignorando as experiências e as discussões oriundas dos países do Sul no debate democrático” (pp. 5-14)

28 Santos se refere aqui a uma contribuição de Walter Benjamin ao pensamento contemporâneo que é a noção de

“história dos vencidos”. Seria a “história dos sem história”, “dar voz aos sem voz”, reescrever a história através de uma contra-história.

esta perspectiva “aquilo a que chamamos globalização é sempre a globalização bem sucedida de determinado localismo” (SANTOS, 2002)29.