• Nenhum resultado encontrado

3.3 O Fórum Social Mundial nasce sob disputa

3.3.3 O Fórum Social é mundial?

Em muitas partes do mundo, o processo FSM ainda é superficial quando não inexistente, incluindo regiões relativamente bem representadas nos eventos do FSM. Esta situação não indica que não haja movimentos populares e sociais de resistência e oposição à globalização neoliberal nestes locais, mas que o FSM ainda não foi capaz de envolvê-los em sua dinâmica. O risco anunciado por tal situação, a um processo como o FSM, é que seus encontros podem não captar a diversidade de movimentos de uma determinada região ou país. Outro fenômeno também é recorrente neste sentido quando pessoas ou organizações que tenham tido acesso ao evento FSM voltam para suas localidades e organizam um FSM de “cima para baixo”, comprometendo a natureza inclusiva e a diversidade dos eventos. Segundo um dos organizadores do FSM da Índia, uma coisa é dizer que o FSM representa um grande número de países, mas é diferente dizer que ele representa a diversidade de movimentos e processos contra a globalização neoliberal desses países. Deste modo os eventos do FSM correm sérios riscos de perderem legitimidade.

Os “horizontalistas” são bastante otimistas quanto esta polêmica sobre a real mundialização do FSM. Segundo essa tendência, uma consolidada sociedade civil planetária seria a principal promotora do processo FSM. Além do que, ao se consolidar como “espaço” e afastar as ambições partidárias, o Fórum já teria dado o passo que já vinha sendo experimentado pelos movimentos populares e cívicos ao se insurgir contra a dominação da cultura política da ação comandada de cima para baixo. Tais fatores fizeram surgir um novo ator político: a sociedade civil planetária, com aproximada dimensão e articulação mundial que possui o sistema liberal atualmente hegemônico. Tal sociedade civil planetária está fundada, segundo Whitaker, sob novas formas de atuação política, livre da tendência autoritária das “velhas práticas” e absolutamente diversificada e plural. Não cabendo a ela unificar uma proposta ou um projeto de “outro mundo”, mas estimular a proliferação de micro e macro projetos que por si só já caracterizam a invenção do novo mundo (WHITAKER, 2005).

É neste contexto que surge o debate sobre o que se considera uma tentativa de “colonização” dos movimentos sociais ao redor do mundo. Whitaker e Grajew defendem que o FSM, no seu processo de expansão pelo mundo, precisa criar espaços, articulações e novas ações. O Fórum deve ser experimentado e realizado em nível regional e local e promover a criação de “espaços” tipo Fórum. A ideia é reforçada pela proposta de Oded Grajew, que

pensa na realização de fóruns locais que se relacionem em rede. O raciocínio dos “horizontalistas” neste quesito pode ser bem resumido na seguinte passagem:

O que precisamos é assegurar a entrada do método Fórum na cabeça e na prática das pessoas lá onde elas estão atuando, ou seja, convidá-las a refletir sobre o novo modo de fazer política que o Fórum está propondo, e a “vivê- lo” concretamente (WHITAKER, 2004)76.

Deste modo, a ida ao encontro mundial se resumiria a uma espécie de estágio para “aprendizagem” de como criar novos espaços e articulações, como debater, como fazer política. Os idealizadores chegam a sugerir a formulação de uma cartilha ou jornal, de fato distribuída no FSM 2005 (Porto Alegre), que explique como promover o “enraizamento” do Fórum, demonstrando um roteiro de trabalho com a carta de princípios do Fórum em destaque.

Em reunião do Comitê Organizador do FSM 2005, realizada em outubro de 2004 em São Paulo a representante da ABONG opinou que é preciso ter cuidado com a ideia de construir “mini-fóruns”, uma vez que já existem articulações locais através das quais se poderia potencializar o Fórum. Não seria, portanto, interessante adotar um padrão, ao que a representante da Marcha Mundial de Mulheres chamou de “dar aula de Fórum”. O objetivo, segundo a dirigente feminista, deveria ser articular as diversas campanhas em forma de “rede” e não apenas trazê-las para estarem expostas na vitrine do Fórum Social Mundial. Esta articulação de campanhas deveria dar perspectiva a uma imensa gama de pessoas que são atraídas para o Fórum, mas que não estão inseridas em nenhum movimento.

Nesta mesma reunião, o representante da ATTAC considerou que as duas concepções são complementares, ou seja, é preciso potencializar as articulações já existentes e incentivar a organização de “mini-fóruns”, onde não existe movimento. Ideia complementada pelo representante da CUT, que considera as novas práticas desenvolvidas nos movimentos como indícios do novo mundo, que, embora ainda não exista, é palpável dentro das redes. Durante o debate, Whitaker concordou com a ideia, ressaltando que estas redes são um “tecido de gentes” que estão se reunindo de uma forma diferente. Pessoas e movimentos, até então divididos, passam a atuar em conjunto. Deste modo, a “nova” prática está expressa na criação de rádios comunitárias, na organização da economia de forma solidária, na adoção do software livre, que também tem suas organizações impulsionadoras e defensoras, formando

76 WHITAKER, F. Mensagem de Chico Whitaker sobre mobilização. Circulação interna em reunião do Comitê

uma rede de redes, uma rede de campanhas. Para reforçar seu argumento, Whitaker destaca que nunca todos poderão estar em Porto Alegre, e essas pessoas precisam ter a oportunidade de vivenciar esta experiência nova.

Chama a atenção, portanto, que as linhas mestras, de um encontro que pauta pela diversidade, surgem das ideias de alguns organizadores do Fórum Social Mundial defensores de uma concepção de padrão, homogeneidade e modelagem dos movimentos sociais de todo o mundo. Como se, para ser promovido à rede dos “novíssimos” movimentos sociais fosse preciso ter, não somente identidade de ideias, mas correspondência de formas e concepções. É preciso seguir uma cartilha, seguir fielmente a carta de princípios, trilhar os passos detalhados que explicam como se faz o novo, o diferente, o “contra-hegemônico”.

O objetivo horizontalista de formar uma rede composta de um “tecido de gentes”, que faz de forma absolutamente igual o “diferente”, afasta o FSM da possibilidade de sintetizar a diversidade do campo contra-hegemônico. Tal concepção foi, por várias vezes, traída pela realidade como ficou claro no FSM de Mumbai que fugiu absolutamente ao formato idealizado para os encontros do fórum, ao promover a explosão da falta de padrão, das características peculiares de cada grupo humano, que se iguala somente na luta por um mundo menos opressor e mais igualitário. O interessante é que tais ideias “hegemonistas” surgem justamente daqueles que mais criticam o “verticalismo” das “velhas práticas” políticas.

Este tipo de mundialização da participação política, através do Fórum e da construção da contra-hegemonia, se aproxima de uma tentativa de determinação dos movimentos sociais. Afasta-se do ideal da busca de estabelecimento de alianças e construção de propostas que caracteriza a formação de blocos contra hegemônicos no interior de uma sociedade civil, como apontada por Gramsci.

Por sua vez, os “movimentistas” são bem mais pessimistas ao avaliar a real mundialização do Fórum Social Mundial. Em especial pela escassa participação da África e da Ásia. Mesmo no Fórum em Mumbai a participação africana foi bastante baixa, assim como foi pequena a participação asiática no Fórum de Nairóbi. Em Belém, 2009, também foi bastante baixa a presença de africanos e asiáticos. O que se agrava ainda mais, se levada em conta que a ausência de movimentos e de organizações desses continentes reflete-se, em parte, na lacuna de temas e de debates especificamente adequados a suas realidades, e relevantes para elas (SANTOS, 2005). Neste sentido, o FSM de Mumbai (Índia 2004) foi um passo decisivo para a globalização do processo do FSM, tendo em mente a internacionalização como construção de alianças, e não como adesão condicionada a padrões pré-estabelecidos pelos “idealizadores” do Fórum.

Samir Amin alerta para o desequilíbrio de representação no seio dos Fóruns, uma vez que custa muito dinheiro correr o mundo para se encontrar com companheiros de luta. Muitas organizações economicamente mais fortes não são necessariamente as mais representativas desde o ponto de vista das lutas que levam a cabo, algumas ONGs, por exemplo, que se associam a alguns movimentos sem lhes acrescentar grande conteúdo e representação. Por outro lado, as organizações sindicais, proletárias, camponesas nem sempre tem os meios financeiros para ter grande participação, além de não darem tanta prioridade à sua presença neste tipo de evento.

Segundo Leite, um grave problema que se apontou desde o princípio para o Fórum foi o da sua precária mundialização. Apesar de boa parte da luta contra a globalização neoliberal estar se dando no mundo anglo-saxão e na Ásia, o Fórum esteve representado pelas delegações e os movimentos da América Latina e Europa (com participação quase insignificante do leste europeu). Em segundo lugar, considera o autor, o FSM não podia ter seu formato definido apenas por um comitê organizador brasileiro77, pois nenhuma composição unicamente nacional daria ao comitê condições de lidar com os complexos problemas postos por um evento que ambicionava ser planetário, ainda mais considerando que nenhuma entidade brasileira tinha sido, até então, agente central do processo mundializado de lutas. Para o autor, esta questão começaria a ser equacionada em junho de 2001 com a constituição de um conselho internacional78 do FSM, que teria certo envolvimento na preparação da edição de 2002, e uma participação real na organização do evento de 2003 e nos seguintes. Deste modo, o FSM ajuda a dar consistência ao novo internacionalismo que, abertamente, desde Seattle, vem se espraiando pelo mundo, confrontando a globalização neoliberal e contribuindo para alterar o clima ideológico do mundo atual, ajudando a romper com a hegemonia do pensamento e dos valores mercantis, neoliberais e crescentemente militaristas (LEITE, 2003).

Outro mecanismo de mundialização do FSM tem sido a realização de Fóruns regionais e temáticos em várias partes do mundo. No início do processo FSM, se destacaram os fóruns sobre o neoliberalismo na Argentina, em 2002, o Fórum Social Europeu79, na Itália, 2002, o

77 Após o primeiro Fórum Social Mundial foi criado um comitê organizador de oito entidades brasileiras,

incluindo a representação brasileira da ATTAC. Este comitê já mudou de nome, passando a ser chamado secretaria internacional ou grupo de facilitação, mas continuou tendo muito poder na condução do FSM. Ver composição do comitê em anexo.

78 Ver Anexo.

79 O primeiro Fórum Social Europeu (FSE) ocorreu em Florença no ano de 2002. Em seguida veio Paris 2003,

Londres 2004, Atenas 2006, Malmo 2008 e Istambul 2010. Os primeiros FSE de Paris e Londres reuniram centenas de milhares de pessoas em marchas contra a guerra e tiveram ampla repercussão mundial. Os últimos FSE, especialmente os de Malmo e Istambul contaram com baixa participação e repercussão.

Fórum Social Asiático, na Índia, 2003 e o Fórum Temático sobre Drogas, Direitos Humanos e Democracia na Colômbia, em 2003. Estes fóruns passaram a fazer parte de um calendário oficial do FSM mantido pelo Conselho Internacional. Nos últimos dez anos, os fóruns regionais e temáticos têm se multiplicado e em 2010 ocorreram 55 fóruns deste tipo em todo o mundo.

Dentro da estrutura organizativa do FSM, o Comitê Indiano, que organizou o Fórum de Mumbai, também tem contribuído na tentativa de equacionar o dilema da mundialização do FSM. Segundo Amit Sen Gupta, representante do comitê:

Em muitas partes do globo, o processo FSM ainda é superficial e iniciante, isso inclui regiões relativamente bem representadas nos eventos. Isso não significa que não haja movimentos nessas regiões contra a globalização neoliberal – mas sim, que em muitas regiões o processo FSM não envolve, de forma central, esses movimentos. Como resultado, os eventos do FSM podem não captar a diversidade de movimentos de uma região específica ou de um país. (...) Uma coisa é dizer que o FSM representa um grande número de países, mas é diferente dizer que ele representa a diversidade de movimentos e processo contra a globalização neoliberal desses países (GUPTA, 2005).80

O comitê indiano aponta, portanto, que o problema não está em “ensinar” a fazer mini- fóruns ao redor do mundo, como estratégia de mundialização, mas sim envolver as movimentações anti-neoliberais já existentes e convergentes com os propósitos contra- hegemônicos do FSM. A equação deste dilema se demonstra fundamental para a verificação da real mundialização do processo Fórum e conseqüentemente de uma embrionária sociedade civil global.

Durante a reunião do Conselho Internacional de 21 e 22 de janeiro de 2003, por ocorrência do III FSM em Porto Alegre, travou-se uma grande discussão sobre a saída ou não do FSM de Porto Alegre. Segundo os organizadores, em especial a secretaria brasileira, ao longo de 2002 havia ficado demonstrado a necessidade da existência do FSM e a viabilidade de sua proposta de acordo com o método estabelecido pela Carta de Princípios. Grande parte do sucesso das três primeiras edições, portanto, foi atribuído ao método do espaço aberto, sua horizontalidade e capacidade de transformar a diversidade em uma força. Outro ponto muito reforçado foi a defesa das condições que aparentemente reduziam as disputas de poder neste espaço, como a inexistência de declarações que impusessem compromissos, o estímulo à multiplicação de contatos entre as organizações, interação das agendas, fortalecimento das

80

“Expansão do Fórum Social Mundial – Algumas questões e sugestões”, documento apresentado pelo comitê organizador indiano na reunião do Conselho Internacional do FSM, Porto Alegre, janeiro de 2005.

organizações e movimentos da sociedade civil e independência do processo Fórum frente a partidos políticos, governos e instituições.

A questão que os organizadores se faziam então era sobre como experimentar esta fórmula em outras partes do mundo. Um passo arriscado demais para alguns e um passo necessário para outros. Afinal, um Fórum Social que quisesse realmente ser considerado mundial e influênciar na dinâmica política global precisaria demonstrar sua capilaridade e capacidade mobilizadora no planeta. O debate sobre a mudança de sede começou em 2002 e a crítica principal era de que o FSM estava “brasileiro” demais, quando muito latino-americano. Poucos delegados vinham de outras regiões, especialmente da África e da Ásia, dados os custos da participação. Por outro lado, havia uma preocupação com o risco de romper o processo, ainda jovem e frágil, entregando a organização do evento a outro comitê organizador, com distinta tradição política e com um enorme desafio logístico de montar um evento social gigante em um ambiente bastante adverso. O que poucos imaginavam é que o FSM de Mumbai se revelasse um fórum ainda mais popular, mais politizado e mais conseqüente com sua auto-sustentabilidade do que o de Porto Alegre. O FSM de Mumbai transformou a cultura política do FSM, e foi um importante passo na mundialização do processo, na consolidação da sociedade civil global e na projeção da gramática contra- hegemônica.

O FSM de Mumbai revelou a então “ocidentalização” do Fórum, e abriu as portas para sua ocorrência posterior em outras partes do mundo, em especial Ásia e África. Em um dos painéis do encontro de Mumbai, uma ativista koreana observou que o FSM precisa mudar para acomodar as características políticas e culturais do país sede. A realização do encontro na Índia propiciou a incorporação de movimentos do Paquistão, Tibet, Nepal, Afeganistão, Burma, Tailândia, Vietnam, Camboja, Coréia e outros à geografia política do FSM. Segundo Janet Conway (professora de movimentos sociais e feminismo na Ryerson University), depois de Mumbai ficou demonstrado que o local importa no esforço global de construir um outro mundo”. Esta afirmação ficou comprovada nas demais edições do FSM na Venezuela, no Paquistão e no Mali, em 2006, e no Quênia, 2007 e Belém, 2009, sendo as duas últimas objetos de estudo deste trabalho.

Em entrevistas81 realizadas no decorrer desta pesquisa com seis organizações participantes do FSM e membros do CI, foi feita a seguinte pergunta: O FSM está atingindo seu objetivo de expansão global?

Sim. Lentamente e nem sempre tão bem. Funciona bem quando a inicativa é local e não quando é dirigida de cima. Ex: África tem que ser incluída. Péssimas conseqüências quando não há inclusão do local. (ENTREVISTA 1 - FOCUS)

Sim, depois da realização do FSM Índia e também África, mas ainda necessita ir a outras regiões. (ENTREVISTA 2 - FAL)

Não. Não mesmo. E se está é a partir de um ponto muito estranho. Ao invés de ser inspirador para as outras regiões, tenho a impressão que temos um time que viaja espalhando a ideia do FSM com seus próprios critérios. (ENTREVISTA 3 - MMM)

Ainda é um longo caminho a seguir para promover a expansão global. Nós ainda precisamos ir a muitas e muitas regiões ainda não tocadas pelo FSM, como China, leste da Ásia, mundo Árabe. (ENTREVISTA 4 - FD)

Não ainda. Processo lento. Ainda a maioria dos participantes é de países desenvolvidos. (ENTREVISTA 5 - COSATU)

Melhorou com o FSM de Nairóbi. Estamos avançando. (ENTREVISTA 6 - ICAE)