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Para trazer a discussão do âmbito estatal para o da sociedade e da cultura e a forma como se constitui a disputa hegemônica nesta esfera, vamos introduzir um pouco do pensamento de Benedict Anderson no seu livro Imagined Communities: Reflections on the Origin and Spread of Nationalism, cuja primeira edição é de 1983. Anderson, em um espírito antropológico, propôs a seguinte definição para nação: uma comunidade política imaginada. E, o autor acrescenta imaginada em ambos os aspectos como algo inerentemente limitado e soberano.

Na prática, segundo Anderson, todas as comunidades maiores que as pequenas vilas da antiguidade, em que existia a relação face a face (e talvez até mesmo estas) são imaginadas. As comunidades podem ser distinguidas, portanto, não pela sua verdadeira e genuína essência, mas pelo estilo com que foram imaginadas.

As nações são, para Anderson, imaginadas porque seus membros nunca conhecerão todos os outros que convivem nesta mesma nação. Limitadas porque possuem territórios e fronteiras que delimitam aquele determinado grupo. Soberanas porque surgem justamente em contraposição aos sistemas monárquicos ou a sistemas coloniais, simbolizam a liberdade de um povo frente a antigas estruturas de dominação. Gerando, no entanto, novas estruturas de dominação, como a burocracia estatal, a divisão intelectual do trabalho e práticas de controle estatal, seja através da educação ou do controle social. É uma comunidade porque reúne no mesmo contexto membros de diferentes classes e posições sociais compartilhando um projeto em comum.

É justamente o fato de a nação conseguir reunir “pacificamente” tantos diferentes que mais intrigou Anderson em seu trabalho. Ele se perguntou o que levaria tantos a se sacrificarem em nome de uma comunidade nacional. As respostas, ele foi buscar no que chamou: as raízes do nacionalismo. Estas raízes seriam, principalmente, o declínio da dominação da religião e da noção de existência de um texto sagrado que continha a “verdade”. Conseqüente declínio do latim como única linguagem sagrada e emergência das línguas seculares. Fim da ideia de que as sociedades se reuniam em torno de um monarca central ungido pelo poder divino. Criação de um sentimento de coexistência baseado no compartilhamento temporal.

A imprensa comercial terá um papel fundamental na difusão destes novos valores, sua difusão vai gerar simultaneidade, conhecimento vivo, reprodutibilidade, disseminação dos saberes (ANDERSON, 1999, p. 37). Os capitalistas passaram a imprimir seus livros e jornais em diversas línguas, maximizando a circulação e o alcance. Como conseqüência, leitores de locais diversos passaram a se entender e dar vazão a um discurso comum. Neste sentido, Anderson está ao lado de autores como Eric Hobsbawn, que vêem as nações e o nacionalismo como produtos da modernidade, criadas com fins políticos e econômicos.

Neste sentido, em “Comunidade Imaginada por quem?”, Partha Chatterjee afirma a necessidade de as regiões periféricas do mundo encontrarem sua própria forma de imaginação nacional, fugindo dos nacionalismos trazidos pela modernidade ocidental:

Segundo minha interpretação, o nacionalismo anticolonial cria seu próprio campo de soberania, dentro da sociedade colonial, muito antes de iniciar sua luta política contra o poder imperial. Ele o faz dividindo o mundo das instituições e práticas sociais em dois domínios, o material e o espiritual. O material é o domínio do “externo”, da economia e da política, da ciência e tecnologia, um campo em que o Ocidente provou sua superioridade em que o Oriente sucumbiu. Nesse campo, portanto, a superioridade ocidental teve

que ser reconhecida, e suas realizações, criteriosamente estudadas e reproduzidas. O espiritual, por outro lado, é um domínio “interno”, que traz as marcas essenciais da identidade cultural. Quanto mais sucesso se obtém na imitação das aptidões ocidentais no campo material, maior a necessidade de se preservar a singularidade da cultura espiritual” (CHATTERJEE, 2004, pág. 230).

Mas Anderson não é hostil à ideia do nacionalismo. Para ele, o fato da nação surgir como um rompimento com a igreja católica e através da democratização do texto escrito para as massas está intimamente ligado com abolição da monarquia e a efervescência da Revolução Industrial. Anderson vê no nacionalismo uma forma de captar e expressar anseios, esperanças e preconceitos que surgem no interior da vida social. Por isso, ele vê nos países formados nas Américas aqueles que, talvez primeiramente, desenvolveram uma noção de nacionalidade, pessoas que compartilhavam o idioma local e tinham em comum a luta pela independência. Darcy Ribeiro, um estudioso da formação do povo brasileiro, assim retrata a conformação brasileira como nação:

Conquanto diferenciados em suas matrizes raciais e culturais e em suas funções ecológico-regionais, bem como nos perfis de descendentes de velhos povoadores ou de imigrantes recentes, os brasileiros se sabem, se sentem e se comportam como uma só gente, pertencente a uma mesma etnia. Vale dizer, uma entidade nacional distinta de quantas haja, que fala uma mesma língua, só diferenciada por sotaques regionais, menos remarcados que os dialetos de Portugal. Participando de um corpo de tradições comuns mais significativo para todos que cada uma das variantes subculturais que diferenciaram os habitantes de uma região, os membros de uma classe ou descendentes de uma das matrizes formativas (RIBEIRO, 1995).

Para Renato Ortiz, com a globalização esta dicotomia europa/colônias, centro/periferia é abolida (ORTIZ, 2009). A ideia de temporalidade da modernidade é desestabilizada. Simultaneamente, mesmo que em raias paralelas, os debates sobre a pós-modernidade e a globalização vão tentar entender os desafios que se colocam à modernidade, que tem no Estado-nacional seu elemento fundador. “Os perigos ambientais, a consolidação de um mercado global de bens de consumo, o advento de um setor financeiro desvinculado do controle do Estado-nação, os conflitos étnicos, as guerras, o surgimento de um imaginário coletivo mundializado, o “retorno” da religião, a revolução tecnológica” (ORTIZ, 2009, p. 239) são alguns dos desafios que começam a escapar ao binômio Estado Nação-modernidade. Na verdade, a ascensão dos debates sobre a globalização vai coincidir com o progressivo declínio dos debates pós-modernos, grandes narrativas passam a ser novamente necessárias com o progressivo desenrolar dos temas globalizados. De um lado, uma literatura empresarial

que buscava identificar as demandas globais, estimular o consumo e a livre circulação dos bens. Do outro, uma literatura crítica que se reforça com o surgimento de movimentos anti- globalização e as denúncias ao “pensamento único”. Segundo Ortiz, a unidade analítica “nação” passa a ser insuficiente para compreender o fenômeno mundial de transnacionalização. Os atributos nacionais da identidade territorial, linguística, do mercado, das comunicações, da memória coletiva, aos quais se identificam uma comunidade, como para Anderson, não são aplicáveis em termos de uma comunidade global (ORTIZ, 2009).

Para Ortiz, a interconexão não resulta em integração. O avanço do sistema mundial de comunicações, principalmente com a internet, garante a integração das pessoas em um coletivo global. Gerando inclusive o contrário ao potencializar os vínculos identitários. “Diferentemente do âmbito nacional, na esfera transnacional inexiste um espaço público ou uma sociedade global. Traduzir sua realidade nesses termos é ilusório” (ORTIZ, 2009, 247). A globalização inverte a dinâmica que propiciou o surgimento das nações. As religiões passam a ficar mais livres, sem necessariamente terem que se submeter às forças nacionais. A delimitação territorial passa a ser irrelevante para a circulação de bens e difusão da comunicação. Neste sentido, local, nacional e mundial passam a ser ao mesmo tempo cenário de propaganda e palco de circulação. Tempos e espaços aparentemente incongruentes passam a coexistir sem eliminar, no entanto, desigualdades e hierarquias (ORTIZ, 2009).