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Inspirado em Braudel11 e apoiado por colaboradores como Perry Anderson e Immanuel Wallerstein12, Arrighi decidiu escrever O Longo Século XX13 quando refletia sobre a crise econômica mundial da década de 1970. A dinâmica desta crise e o seu desfecho

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Fernand Braudel, autor de Civilisation Matérielle, Economie et Capitalisme, XV-XVIII (1979). Seu esquema interpretativo será seguido por Arrighi.

12 Ao lado de Giovanni Arrighi, Immanuel Wallerstein é um dos principais autores que se destaca na tradição da

Economia Política do Sistema Mundo. Com a obra The Modern World System o autor cria novos conceitos e métodos de análise da história moderna, em especial ao definir o sistema-mundo como uma unidade de estudo da formação histórica do sistema capitalista a partir da expansão do capitalismo europeu no século XV ao integrar novos territórios ao seu sistema.

13 Depois de escrever O Longo Século XX, Arrighi se dedicou a duas obras que em conjunto com a primeira

formam uma trilogia, são elas: Caos e Governabilidade no Moderno Sistema Mundial (2000) e Adam Smith em

poderiam ser revelados ao se comparar o século XX14 aos séculos anteriores de desenvolvimento do capitalismo, intuiu o autor. Para tanto, Arrighi elegeu os ciclos sistêmicos de acumulação como unidades de análise e encontrou no esquema interpretativo e nos dados históricos de Braudel o norte para produzir uma explicação econômica, coerente e plausível, da ascensão e plena expansão do sistema capitalista mundial (ARRIGHI, 1996, p. 11).

A ideia de um longo século XX, segundo Arrighi, é adotada como “a moldura temporal apropriada para a análise da ascensão, plena expansão e eventual superação dos agentes e estruturas do quarto ciclo sistêmico de acumulação (norte-americano)”. O longo século XX é o último elo de uma cadeia de estágios parcialmente superpostos, cada um abrangendo um século longo “através dos quais a economia mundial capitalista européia passou a incorporar o mundo inteiro num denso sistema de trocas” (ARRIGHI, 1996, p. 218). A ideia de séculos com longa duração, Arrighi herda de Braudel e do sentido que este dava ao conceito de civilização. Para Braudel, cada civilização seria uma amostra dos processos de longa duração que determinam a materialidade da vida humana e a história econômica que se vai tecendo15.

O último quarto do século XX é uma referência para economistas, sociólogos, cientistas políticos e demais analistas da dinâmica do capitalismo como um ponto de inflexão e uma guinada ao neoliberalismo (SANTOS, 2000; AMIN, 2001; WALLERSTEIN, 2002; SADER, 2001; BELLO, 2001). O capitalismo entraria em um período decisivo a partir de 1970. Não se tratando, no entanto, de uma crise sem precedentes, segundo Arrighi, uma vez que longos períodos de “mudança com descontinuidade” acabaram por gerar reorganizações da economia capitalista mundial sempre sobre bases novas e mais amplas, ao longo da história do capitalismo. O desafio assumido por Arrighi foi o de encontrar as condições sistêmicas nas quais as organizações deste tipo acontecem de modo sistemático no decorrer dos séculos.

A tendência a uma maior mobilidade geográfica do capital a partir dos anos 70 do século XX deu o alerta para uma mudança na dinâmica do capitalismo para um estágio mais “desorganizado” e de acumulação “flexível” do capital. De acordo com Harvey, estaria havendo uma “guinada para um aumento do poder do capital financeiro frente ao Estado Nacional” (HARVEY, 1989, apud em ARRIGHI, 1996, p. 3). Arrighi concorda, mas

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Veremos adiante que a unidade século utilizada por Arrighi não corresponde necessariamente a um período de 100 anos, mas aos períodos de alternancia de poder hegemônico, que podem durar mais de um 100 anos, por isso

longo século.

15 As ideias de Braudel sobre o conceito de civilização estão expressas principalmente na obra Civilização

material, economia e capitalismo, um clássico da historiografia contemporânea que reúne as leituras feitas por

problematiza a constatação de Harvey a partir de uma assertiva de Braudel, de que um dos aspectos essenciais da história geral do capitalismo é justamente o da flexibilidade ilimitada e sua capacidade de mudança e adaptação.

A financeirização, portanto, não seria uma etapa especial do capitalismo mundial, “muito menos seu estágio mais recente e avançado”, mas antes, “um fenômeno recorrente, que marcou a era capitalista desde os primórdios, na Europa do fim da Idade Média e início da era moderna”, o que chama atenção e dá à crise atual um caráter especial é que “ao longo de toda era capitalista, as expansões financeiras assinalaram a transição de um regime de acumulação em escala mundial para outro” (ARRIGHI, 1996, p. 10), portanto, podemos estar vivenciando uma importante fase de transição da hegemonia mundial.

Assim como Braudel, Arrighi segue a fórmula geral do capital DMD` apresentada por Marx em O Capital em que a dinâmica capital-dinheiro (D) – Capital-mercadoria (M) e Dinheiro-flexível (D`), indica “um padrão reiterado do capitalismo histórico como sistema mundial”, alternando épocas de expansão material com fases de expansão financeira.

Assim entendida, a fórmula de Marx nos diz que não é como um fim em si que os agentes capitalistas investem dinheiro em combinações específicas de insumo-produto, com perda concomitante da flexibilidade e da liberdade de escolha. Ao contrário, eles o fazem como um meio para chegar à finalidade de assegurar uma flexibilidade e liberdade de escolha ainda maiores num momento futuro. A fórmula também nos diz que, quando os agentes capitalistas não têm expectativa de aumentar sua própria liberdade de escolha, ou quando essa expectativa é sistematicamente frustrada, o capital tende a retornar a formas mais flexíveis de investimento – acima de tudo, à sua forma monetária. Em outras palavras, os agentes capitalistas passam a “preferir” a liquidez, e uma parcela incomumente grande de seus recursos tende a permanecer sob forma líquida (ARRIGHI, 1996, p. 5).

Essa interpretação marxista está na caracterização braudeliana de ciclos de expansão financeira: século XV, quando a oligarquia capitalista genovesa passa do comércio de mercadorias para a atividade bancária, quando os holandeses deixam o comércio em meados do século XVIII para se tornarem os “banqueiros da Europa” ou os ingleses que ao final do século XIX e início do XX precisam lidar com um excesso de capital monetário gerado pelo fim da revolução industrial.

Esta lógica de investimentos aponta para um padrão reiterado do capitalismo histórico como um sistema mundial, que alterna épocas de expansão material com fases de resurgimento da expansão financeiras. Segundo Arrighi, essas duas fases ou épocas, juntas, constituem um completo ciclo sistémico de acumulação. O autor, se propõe a fazer uma

comparação entre os ciclos e encontrar regularidades, desvios e novas perspectivas, a partir da análise. São quatro os ciclos, segundo o autor:

a) Ciclo Genovês – sec. XV – XVII – em que a expansão material foi promovida e organizada tanto por um componente aristocrático territorialista (ibérico), especializado no fornecimento de proteção e busca de poder, como por um componente burguês capitalista, especializado na compra e venda de mercadorias e na busca de lucro. Essas duas faces sem complementaram e tiveram benefícios mútuos, por um lado a busca de poder territorial criou oportunidades comerciais e, por outro, a busca de lucro fortaleceu a eficácia da proteção territorial (Arrighi, 1996, p. 124).

b) Ciclo Holandês – sec. XVI (final) – sec. XVIII – os holandeses tornaram-se líderes de uma expansão comercial de toda a economia mundial européia, ao mesmo tempo em que se consolidaram regionalmente. Sua hegemonia baseou-se em um relacionamento de intercâmbio político com outros governos, auto-suficiência nas atividades bélicas e de Estado e consolidação regional com expansão do comércio e finanças holandesas (Arrighi, 1996, p. 140).

c) Ciclo Britânico – sec. XVIII – sec XX (início) – durante três séculos a Inglaterra redesenhou o mapa do mundo e se transformou no mais poderoso Estado territorialista e capitalista que já se vira. Transformou sua posição insular no principal cruzamento do comércio mundial. Revolucionou o poder naval na Europa com a introdução dos grandes navios de guerra, equipados com armas de fogo. Conquistou uma “moeda forte”e deu à libra esterlina uma estabilidade que atravessou diversas crises e possibilitou a facilidade de crédito e a superioridade financeira, que ao mesmo tempo suportou e foi suportada pelo industrialismo inglês, amplamente conhecido como “revolução industrial”. O toque final da hegemonia inglesa, sua supremacia comercial mundial, baseou-se em uma síntese harmoniosa da lógica territorialista do poder com a capitalista. (ARRIGHI, 1996, pp. 163-214):

Depois que a Inglaterra – já o Estado mais industrializado da economia mundial européia – transformou-se no entreposto comercial mundial, e o fez numa escala nunca vista até então, as empresas inglesas tornaram-se

imbatíveis, numa gama muito mais ampla de setores do que os holandeses jamais tinham tido.

d) Ciclo Norte-americano – sec XIX (final) – até atual16 fase de expansão financeira – a crise sistêmica do regime de acumulação britânica, devido especialmente à intensidade da competição intercapitalista, fez ruir “todo o edifício da civilização do século XIX”. Aos poucos, o dólar norte-americano transformou-se em uma moeda de reserva madura, assim como a libra esterlina. Surgiu uma variante de capitalismo de corporações que emergiu nos Estados Unidos e superou o modelo de mercado mundial centrado no Reino Unido. Através do Plano Marshall, realizaram a reconstrução da Europa Ocidental pós-guerra à imagem dos EUA. Aumentaram a ajuda militar a governos estrangeiros e os próprios gastos militares diretos dos EUA no exterior, fornecendo à economia mundial o impulso de que ela precisava para se expandir. O governo norte americano passou a agir como um banco central mundial e o comércio e a produção se expandiram em uma velocidade sem precedentes. (ARRIGHI, 1996, pp. 277-306).

Ao identificar como se deu a constituição da hegemonia mundial por parte de uma cidade-Estado ou um Estado nação em cada um destes ciclos, Arrighi se encontra com Gramsci e sua concepção de hegemonia. Segundo Giovanni Arrighi, a concepção de hegemonia elaborada por Gramsci é uma reformulação da concepção de Maquiavel sobre o poder como uma combinação entre consentimento e coerção.

Para Arrighi, a coerção é sinônimo de dominação. Os Estados dominam um conjunto de outros Estados ou todo o globo através da coerção física, da conquista territorial, da supremacia militar. A hegemonia é um poder adicional “conquistado por um grupo dominante, em virtude de sua capacidade de colocar em um plano universal todas as questões que geram conflito”. O grande diferencial, para Arrighi, é a capacidade do Estado hegemônico de controlar os “meios de pagamento” ou o “fluxo de capitais” nas relações interestatais.

Ao comentar sua utilização da concepção gramsciana de hegemonia, Arrighi discorre que:

A alegação do grupo dominante de representar o interesse geral é sempre mais ou menos fraudulenta. Não obstante, segundo Gramsci, só falaremos de hegemonia quando essa alegação for pelo menos parcialmente verdadeira e trouxer alguma contribuição para o poder do grupo dominante. Quando a

16 Quando Arrighi terminou o livro o mundo estava vivenciando o auge do neoliberalismo iniciado por Reagan e

Tatcher em meados da década de 70. Hoje o mundo vive uma crise do sistema econômico e financeiro adotado, no centro do sistema – os Estados Unidos da América. Entrevista de Arrighi na New Left Review: http://www.newleftreview.org/?view=2771.

alegação do grupo dominante de representar o interesse geral for totalmente fraudulenta estará criada uma situação, não de hegemonia, mas de fracasso da hegemonia (ARRIGHI, 1996, p. 29).

Para Arrighi, esta transposição do conceito de hegemonia do plano estatal para o inter- estatal pode trazer dois tipos de problemas de interpretação. O primeiro problema diz respeito ao significado da “liderança” que o conceito de hegemonia traz embutido. A liderança poderá ser considerada hegemônica quando um Estado lidera o sistema de Estados na direção desejada e é reconhecido como o “líder” que busca o interesse geral, a consequência é o seu próprio fortalecimento e o da sua hegemonia. Mas quando um Estado dominante lidera e faz com que os outros sigam o seu modelo de desenvolvimento, ao invés de aumentar o seu poder hegemônico ele gera uma competição pelo poder podendo chegar à situação de não hegemonia ou crise hegemônica.

O segundo problema do uso do conceito de hegemonia nas análises mundiais é que a definição de um interesse geral no plano internacional é muito mais difícil do que no nacional. O Estado está diante de uma dupla tarefa, buscar o interesse geral dos outros Estados, mas também o dos seus cidadãos nacionais. Ao tentar dar uma resposta aos seus cidadãos pelos ataques de 11 de Setembro abrindo frentes de guerra no Afeganistão e no Iraque, os Estados Unidos assumiram uma postura unilateral que prejudicou seu projeto hegemônico de representante do interesse geral da comunidade internacional, por exemplo.

De todo modo, as hegemonias mundiais, entendidas por Arrighi, só emergem quando a busca do poder pelos Estados não é o único objetivo da ação estatal. Por um lado, esta busca define a estratégia e a estrutura dos Estados, por outro, maximiza o poder perante os cidadãos. Um Estado pode tornar-se mundialmente hegemônico por demonstrar que é a força motriz de uma expansão geral do poder coletivo dos governantes perante os indivíduos ou, por ser capaz de demonstrar que a expansão do seu poder em relação a um ou todos os Estados é do interesse geral dos cidadãos de todos eles (ARRIGHI, 1996, p. 30).

Os ciclos17 hegemônicos elencados por Arrighi se superpõe e, apesar de se tornarem progressivamente mais curtos, duram mais de um século cada um, por isso a ideia de “século longo” como a unidade temporal básica de análise dos processo mundiais de acumulação de capital escolhida pelo autor (ARRIGHI, 1996, p. 6):

O que entendemos por regime de acumulação em escala mundial são as estratégias e estruturas mediante as quais esses agentes preponderantes

17 Arrighi optou pela utilização dos ciclos sugeridos pelos estudos de Braudel ao uso dos ciclos de Kondratieff –

que configuram movimentos com a duração de 25 a 45 anos, estudados pelo economista russo Kondratieff (1892-1930) e comporta uma fase de alta e outra de baixa, correspondendo a fases de prosperidade e de regressão econômica.

promovem, organizam e regulam a expansão ou a reestruturação da economia capitalista mundial. O principal objetivo do conceito de ciclos sistêmicos é descrever e elucidar a formação, consolidação e desintegração dos sucessivos regimes pelos quais a economia capitalista mundial se expandiu, desde seu embrião subsistêmico do fim da Idade Média até sua dimensão global da atualidade (ARRIGHI, 1996, P. 10).