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4.2 A Índia fez o FSM ser mundial

4.2.1 De Porto Alegre a Mumbai

Em 2003, ao sentir que o FSM precisava ser experimentado fora de terras brasileiras e mesmo latino-americanas, para incluir mais as pessoas da África e da Ásia, o Conselho Internacional112 do FSM e o Secretariado brasileiro escolheram a Índia para ser o país sede do FSM, 2004. A ideia era trazer os temas asiáticos e africanos à luz dos debates e preocupações do FSM. Além de todas as semelhanças de condições que percebemos ao comparar o recente histórico político-social de Brasil e Índia, cooperou para esta decisão a realização do Fórum Social Asiático em Hyderabad, na Índia, em janeiro de 2003, contando com a participação de cerca de 20 mil delegados representando 840 organizações entusiasmadas com o processo FSM. Seus organizadores defendiam que o FSM 2004 mobilizasse todos aqueles que se opunham ao imperialismo e à globalização neoliberal, à guerra e à violência sectária e estivessem comprometidos com os valores da democracia, da pluralidade, da dignidade e da paz113.

Ao apresentar sua proposta de organização do FSM, o Comitê Organizador Indiano deixou claro que o FSM na Índia não iria focar apenas nos temas da globalização hegemônica neoliberal, mas também nas questões da religiosidade, da violência sectária, na discriminação por castas e no patriarcado. A proposta foi colocar lado a lado as lutas contra as ameaças da globalização capitalista neoliberal e uma agenda secular, plural e pela igualdade de gênero. Para atender as especificidades da realização do FSM em seu país, os indianos fizeram alguns ajustes à Carta de Princípios do FSM, o que foi tratado com certa irritação pelos organizadores brasileiros, pois até hoje a carta permanece intocada, como uma clausula pétrea do Fórum, embora sua realização na Ásia e na África já tenha demonstrado que ajustes são necessários de acordo com a realidade do local que sedia o encontro.

112 Ata da reunião disponível em: www.forumsocialmundial.org.br 113

Documento do CO do FSM Mumbai:

Um grande diferencial do Fórum de Mumbai, para o de Porto Alegre, foi a relação com os partidos. Na avaliação de Wallerstein (2004), seria impossível os indianos terem a mesma posição quanto à restrição de participação de partidos como os brasileiros. Na verdade, no Brasil quase todas as organizações e movimentos participantes do FSM tem alguma relação com o PT e partidos aliados, fazendo com que sua participação formal não fosse necessária, mas estivesse implícita. Já na Índia os movimentos estão divididos sob a influência de muitos partidos e os partidos são eles mesmos organizações de massa incontestes. Segundo Vinod,

na Índia, os movimentos mais fáceis de identificar são aqueles vinculados a partidos políticos. Os três partidos comunistas têm cada um seu sindicato, sua organização de juventude, seu movimento de estudantes e de mulheres. O mesmo se dá com o Partido do Congresso e o BJP de extrema direita, assim como para os partidos cuja presença se limita ao nível dos Estados. Mesmo que trabalhem ocasionalmente com sujeitos similares – os estudantes, os trabalhadores e as mulheres – estes movimentos se caracterizam por sua forte lealdade que tem com seus braços políticos (...) (VINOD, 2004, p. 24)

Também a restrição a organizações que, segundo a Carta de Princípios, recorrem a métodos violentos causou problemas na Índia. Um pequeno grupo maoísta organizou um contra-Fórum, o Mumbai Resistance 2004, justamente do outro lado da rua do Fórum “oficial”. Eles atacaram a concepção do FSM como espaço aberto (um talk show segundo eles) e substituíram o slogan “outro mundo é possível” por “o socialismo é o objetivo” e condenaram o fato das edições anteriores do FSM ter recebido financiamento de organizações como a Fundação Ford, por exemplo. O público do Mumbai Resistance representou menos de 2% do contingente que participou do FSM de Mumbai.

A ideia dos organizadores indianos era promover um espaço para todos os setores da sociedade, mas especialmente para os setores menos visíveis, marginalizados, não reconhecidos e oprimidos. O Fórum para os indianos deveria comportar um diálogo aberto entre um amplo espectro de partidos políticos e grupos, movimentos sociais e outras organizações. Um espaço inclusivo dos trabalhadores, camponeses, povos indígenas, dalits, mulheres, ambulantes, todas as minorias, imigrantes, estudantes, acadêmicos, artistas, mídia, parlamentares, trabalhadores do Estado e outros membros estatais. Segundo os organizadores:

O evento trará várias organizações de massas, novos movimentos sociais e ONGs em uma plataforma, pela primeira vez na história recente da Índia.114

Antes de tomar a decisão de realizar o encontro mundial do FSM, os indianos realizaram cinco consultas nacionais entre fevereiro e maio de 2003. Duas em Delhi, duas em Mumbai e uma em Nagpur. Através de cada consulta, foi realizado um esforço para trazer mais organizações representativas de setores críticos da sociedade. Desde o princípio os organizadores se preocuparam em realizar os processos decisórios na montagem do FSM de forma democrática, transparente e “accountable”. Neste sentido, criaram várias instâncias organizativas do FSM na Índia, o IGC (Índia General Council) que é um conselho geral que constitui o espaço final de tomadas de decisão, com ingresso aberto a todos os movimentos sociais e organizações comprometidas com a Carta de Princípios do FSM. Meses antes do FSM, o conselho contava com 135 membros, na época do FSM já contava com mais de 200. Foi criado também um Comitê de Trabalho, o Índia Working Committee, responsável pela formulação das políticas e métodos de funcionamento do processo FSM Índia. O Conselho Geral indicou os membros do grupo de trabalho que contou com 67 organizações, sendo 14 centrais sindicais e organizações de trabalhadores, 8 organizações nacionais de mulheres, 6 organizações nacionais de redes de trabalhadores do campo, 4 plataformas nacionais de dalits, 4 plataformas de adivasis, 4 organizações de jovens e estudantes, 27 movimentos sociais e outras organizações e ONGs. Por fim, foi montado um Comitê Organizador Indiano que funcionou como corpo executivo e responsável pela organização do evento, composto por 45 pessoas, a maioria de organizações com base em Mumbai, cidade escolhida para sediar o FSM da Índia.

Mumbai, uma cidade com quase 20 milhões de habitantes, foi escolhida como a cidade-sede para o FSM 2004 após um longo processo de diálogo entre todos os grupos envolvidos no processo FSM Índia. A forma de decisão da sede foi bastante diferente do modo como Porto Alegre foi escolhida como sede do Fórum no Brasil. Para os indianos, Mumbai apresentava o local ideal para desafiar a agenda da globalização hegemônica neoliberal, por ser o maior centro financeiro do mundo que não está na OCDE, ao mesmo tempo em que presenciou alguns dos mais agressivos e violentos atos de sectarismo religioso já presenciados no sul asiático. Mumbai também é um grande centro industrial e foi berço de grandes movimentos de trabalhadores, dalits, mulheres e permitiu o crescimento de alternativas artísticas no teatro e no cinema. A cidade é também o principal destino migratório

no interior do país e seu porto representou por vários séculos um ponto estratégico nas rotas do Oceano Índico. Segundo os organizadores, tudo isso contribuiu para fazer Mumbai plural, cosmopolita e inclusiva, onde todas as línguas do sul asiático são faladas e todas as religiões do mundo são praticadas. Por ser tão plural, diversa e cosmopolita, Mumbai é uma cidade segura para mulheres e visitantes internacionais, frisaram os organizadores na apresentação da proposta. Outro ponto importante é que oferece uma oportunidade para organizações de vários setores e de diferentes perspectivas políticas de encontrarem seus pares e travar relações de trabalho conjunto. Por fim, em termos logísticos a cidade está integrada ao resto do mundo pelo ar e pelo mar e possui uma grande infra-estrutura de alimentação e hospedagem para os participantes do encontro.

Segundo Wallerstein, o desejo de expandir o FSM geograficamente esteve por trás de sua mudança de Porto Alegre para Mumbai em 2004, e pode se considerar que o intento teve sucesso. Pois, de acordo com organizadores indianos em 2002, menos de 200 pessoas na Índia tinham ouvido falar do FSM e, em 2004, centenas de organizações e mais de 100 mil indianos passaram pelo encontro, vindo de vários grupos sociais, pelo menos 30 mil eram dalits, adivasi e mulheres.

A decisão de tirar o FSM do Brasil foi bastante controversa e gerou muitas discussões no interior do conselho internacional nos anos anteriores. Sendo o FSM, conforme discussão deste capítulo, fruto de uma conjunção de fatores, entre eles a cultura política brasileira, seus movimentos sociais, a relação sociedade civil e Estado no Brasil, tirá-lo deste ambiente parecia temerário. Além do mais, o FSM se sentia bastante confortável em Porto Alegre, a cidade do Orçamento Participativo e de exitosas administrações do PT. Ao ser realizado neste ambiente, o FSM possibilitava mostrar ao mundo uma experiência concreta de como gerir o Estado de forma alternativa e promovendo a participação popular, e dispor de toda a infra- estrutura e apoio financeiro necessário para a realização de um encontro da magnitude do FSM. A princípio parecia temerário o risco de descontinuidade de uma experiência ainda jovem e, portanto frágil, como o FSM, muitas dúvidas surgiram quanto à submissão da carta de princípios a um novo comitê organizador, além da dúvida sobre as possibilidades de fracasso frente as enormes demandas logísticas ao se organizar um evento da grandeza do FSM em condições distintas das de Porto Alegre.

No entanto, a necessidade de buscar um novo porto para o FSM falou mais alto, e ela estava assente, principalmente, no fato de que sendo no Brasil, apesar de ser organizado por redes internacionais, o FSM havia se tornado um encontro muito brasileiro e latino-

americano. Poucos delegados vinham de outras regiões pelo desconhecimento do evento, e por conta dos altos custos da participação, especialmente para africanos e asiáticos.

Assim que teve início o FSM de Mumbai, todas as dúvidas foram desfeitas, pelo contrário agora as dúvidas passaram a ser sobre o seu formato brasileiro. Diferentemente dos fóruns anteriores no Brasil, Mumbai teve uma participação majoritária das massas populares, movimentos de pessoas pobres, notadamente os adivasi e dalits. A presença marcante e significativa destes movimentos no FSM transformou a cultura política do Fórum (CONWAY, 2004, p. 358). As demandas destes grupos pela discussão de questões elementares, tais como o direito a terra, a água e as florestas, em oposição aos mega projetos desenvolvimentistas, com extração de recursos naturais e privatizações colocou uma nova agenda no centro do FSM. A influência destes grupos e sua luta por sobrevivência, colocando as questões ambientais e ecológicas no centro do FSM foi facilmente percebida nos encontros posteriores, em especial no argumento que embasou e possibilitou a realização do FSM 2009 em Belém do Pará no Brasil. Para Janet Conway, o FSM de Mumbai desafiou os discursos da modernização, urbanização e desenvolvimento que alimentam boa parte das lutas dos movimentos anti-globalização.

O maior diferencial do FSM de Mumbai foi a presença dos Dalits. E aqui, uma vez mais, invocamos a máxima de Tolstoi de que para ser universal, basta cantar o seu quintal. Os Dalits mostraram ao mundo que não é possível construir a contra-hegemonia global focando apenas da justiça econômica ou no comércio justo, se estas questões não estiverem colocadas lado a lado com os temas raciais, étnicos e religiosos. Mumbai vociferou que outro mundo não é possível sem a eliminação do sistema de castas em todas as suas formas. Mumbai também promoveu a participação de outros grupos até então minoritários e marginalizados nas suas sociedades, e mesmo dentro do FSM, como deficientes, aidéticos, trabalhadores do sexo e minorias sexuais (CONWAY, 2004, p. 358).

Outra grande diferença do Fórum de Mumbai para o de Porto Alegre e que abordamos brevemente foi a democratização de sua estrutura organizativa. Enquanto no Brasil, historicamente, oito organizações, junto ao Governo petista do Rio Grande do Sul e Porto Alegre, organizaram as três primeiras edições do FSM, na Índia, cerca de 250 organizações estiveram diretamente envolvidas na concepção e organização do evento. Cada característica do FSM foi exaustivamente discutida dentro do Conselho Geral (CGI). No Brasil, em entrevistas que realizamos, tivemos a informação de que varias organizações nacionais, como a UNE (União Nacional de Estudantes) ou a CMP (Central de Movimentos Populares) solicitaram ingresso no comitê organizador brasileiro e sempre tiveram acesso negado.

Curiosamente, esta situação mudou pós-FSM Mumbai ao ser criado um Comitê Brasileiro composto por 23 organizações para organizar o FSM 2005 em Porto Alegre, mesmo assim o núcleo das oito organizações continuou intacto e se encontrando privadamente para pensar o futuro do FSM.

Se contrastarmos uma foto do primeiro FSM em Porto Alegre com o quarto FSM em Mumbai, vamos perceber de um lado, um encontro de homens, brancos, classe média, lotando os auditórios da PUC-RS e discutindo modelos de desenvolvimento em inglês. Na outra foto, estará uma enormidade de pessoas, de todas as cores e sexos, a grande maioria pobres, gritando e cantando em centenas de línguas diferentes nas empoeiradas alamedas de uma fábrica abandonada. Ficou evidente com o FSM de Mumbai que o encontro, para manter sua essência contra-hegemônica, precisa mudar para a acomodar as características culturais e políticas do país sede. Na Índia, ficou demonstrado que o FSM no Brasil e também no Quênia, como veremos a seguir, teve uma forte ascendência do modo ocidental hegemônico, norte-americano-europeu, de fazer política. Isto está relacionado com o tipo de colonização que tivemos na América Latina e na África e com o modelo de resistência e luta anti-colonial e pos-colonial desenvolvido de modo distinto ao da Ásia especialmente.

Após a mudança para Mumbai, ficou quase unânime no interior das instâncias do FSM que este deveria se mover geograficamente nos próximos anos. Movimentos do Paquistão, Tibet, Nepal, Afeganistão, Burma, China, Tailândia, Vietnam, Camboja e Coréia e outros que não haviam tido a oportundidade de estarem em um FSM foram incoporados ao participar do FSM Mumbai 2004. Sua participação incorporou novos temas, concepções e tradições emancipatórias no interior do processo FSM. Como disse a professora Janet Conway, da Ryerson University, que esteve presente em Mumbai, “o lugar importa neste esforço global de construir outro mundo com espaço para vários mundos no seu interior”.