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Percebe-se, portanto, que as forças da globalização contra-hegemônica são ainda mais difusas do que as da globalização hegemônica. Segundo Santos (2002), estão representadas principalmente pelos países do sul, como Brasil, Índia, África do Sul e com especial destaque para a China, como aponta Arrighi, mas também pelos processos de resistência ativa, mobilizações sociais, iniciativas locais não hegemônicas de experiências democráticas, redes de cooperação, afirmação de culturas e identidades, lutas por direitos. Um forte componente da globalização contra-hegemônica são as iniciativas contra-hegemônicas de participação política, seja no nível local, nacional ou transnacional.

Uma das formas de manifestação da globalização contra-hegemônica seria o cosmopolitismo, expressando toda forma de resistência ao sistema de trocas desiguais, por parte de grupos de indivíduos, instituições, classes, regiões e mesmo Estados nacionais. As formas cosmopolitas de globalização são contra-hegemônicas, pois propõe lógicas, valores e sistemas diversos de integração mundial das dominantes. Elas podem ser organizadas ou espontâneas. Articuladas através de redes, movimentos identitários, mobilizações mundiais (SANTOS, 2002).

Outro modo contra-hegemônico de produção da globalização é o que produz resistência e luta por uma “desmercadorização” de tudo que pode ser considerado patrimônio comum da humanidade, tudo aquilo cuja sustentabilidade só pode ser garantida em escala global, como as reservas de água potável, os oceanos, as fontes de combustível, a biodiversidade das florestas, entre tantos outros exemplos (SANTOS, 2002).

No enfrentamento da globalização hegemônica, ao longo da década de 90, ganham protagonismo os movimentos sociais, seja pela impossibilidade de muitos partidos enfrentarem este embate, seja porque os efeitos mais cruéis do neoliberalismo se dão exatamente no plano social. Com a efervescência das manifestações sociais e populares, ganha centralidade o papel da sociedade civil, em contraposição ao Estado, à política, aos

partidos e ao poder. A luta de resistência se deu primeiramente no plano social, através de mobilizações e em seguida com iniciativas de construção de alternativas e de disputa por uma nova direção política para o processo de globalização. Por isso, identifica-se este movimento como de globalização contra-hegemônica.

O conteúdo anti-governo e anti-partido deste movimento, no entanto, não durou mais do que uma década. Na América Latina, em especial, o discurso anti Estado, poder e política recentemente foi substituído por um processo de ascensão de dirigentes relacionados com as lutas sociais ao poder Estatal. Isto fica muito claro quando se compara os dados dos primeiros fóruns sociais mundiais em que o discurso da “autonomia dos movimentos sociais” aparecia muito forte e o último FSM de 2009 em Belém que reuniu movimentos, ONGs e 5 presidentes de repúblicas latino americanas em um debate.

Aos poucos, a globalização hegemônica, de orientação neoliberal, foi dando sinais de contradição entre economia neoliberal e atendimento às demandas sociais. A contradição foi se demonstrando insanável ao passo em que a liberalização do comércio sem regulamentação foi excluindo os países menos desenvolvidos do comércio mundial e aumentando exponencialmente suas dívidas. Segundo Santos,

Se o Mali controlasse o preço internacional do algodão a sua dívida não seria, como é de novo, "insustentável". Se Moçambique pudesse ter resistido à imposição do Banco Mundial no sentido de eliminar as tarifas sobre a exportação do caju, não teria destruído a sua indústria de processamento de caju. Haveria menos fome no mundo se os países menos desenvolvidos pudessem proteger as suas atividades econômicas da voracidade das 200 maiores empresas multinacionais que detêm 28% do comércio global, mas apenas 1% do emprego global (SANTOS, 2001).

Na medida em que foram ficando claras as características do neoliberalismo, foi emergindo uma opinião pública mundial de que era preciso regular a circulação do capital financeiro, recuperar a capacidade reguladora do Estado, frear os processos de privatização e avançar nos processos de integração regional. A constatação de que os governos nacionais passaram a ser reféns dos grandes interesses econômicos internacionais, sem que um controle político democrático pudesse ser realizado no nível local, nacional e global, gerou a semente de uma movimentação global contra-hegemônica. A crescente disparidade entre pobres e ricos, os danos irreversíveis ao meio-ambiente, a falta de controle sobre a movimentação financeira internacional fez emergir, mesmo em um ambiente que estimulava a apatia e o conformismo, uma opinião pública mundial questionadora, repassada por uma correia de

transmissão composta por centenas de milhares de movimentos, redes e organizações não governamentais.

A globalização contra-hegemônica é o desencadeamento de ações rebeldes interconectadas na resistência a diferentes formas de poder social da hegemonia. Alguns autores a chamam de “globalização vinda de baixo” (FALK, 1999). Ela é feita de uma enorme diversidade de ações de resistência contra a injustiça social em suas múltiplas dimensões. O inconformismo e a rebeldia são a base desta mobilização social por uma nova hegemonia mundial. A partir desta base, foram surgindo encontros em torno de alternativas sob a égide da emancipação social.

Este processo ganha força com a crescente queda do poderio norte-americano. Segundo Theotonio dos Santos (2003), após um período incontestável de hegemonia estadunidense pós-segunda guerra mundial abre-se um cenário em que a situação já não é a mesma e o sistema hegemônico passa a buscar alianças para se sustentar. O declínio do poder econômico, militar e da diplomacia internacional são fatores fundamentais no entendimento desta queda. A hegemonia, segundo Santos, passa a ser compartilhada com outros poderes como a Europa, agora integrada e liderada por França e Alemanha, o sistema japonês-Ásia- Pacífico, com destaque para a China e a Rússia. Acompanhando este movimento, as instituições internacionais de regulação – principal alvo das mobilizações anti-globalização, construídas sob hegemonia norte-americana vão se tornando frágeis, incapazes de lidar com a complexidade do mundo atual. A incapacidade dos Estados Unidos de conduzir as decisões destas organizações levou ao endurecimento de algumas e esvaziamento de outras.

Segundo Evans, para analisar este quadro é preciso retornar a Polanyi (A Grande Transformação: as origens da nossa época, 1944), e sua insistência de que o problema não está apenas na avidez competitiva dos capitalistas em busca do lucro máximo, mas na básica falência do mercado como fundamento institucional para organizar a vida social. Os esforços, portanto, das organizações transnacionais e do sistema capitalista de sustentar a auto- regulação do mercado acabaram por despertar uma reação em busca de proteção social, base da maioria das mobilizações globais.

Nesta perspectiva, a globalização contra-hegemônica enfrenta a globalização através da vitalidade dos movimentos sociais nacionais, ao mesmo tempo em que reconhece que a globalização constrange os Estados nacionais e torna mais difíceis as respostas dos governos às demandas sociais. Propõe, portanto, uma simultânea expansão de possibilidades para superar os obstáculos nacionais através de uma organização a nível global (EVANS, 2008, pg. 275).

No seu trabalho, Evans toma como foco o processo da globalização contra- hegemônica e não sua provável arquitetura institucional. Como pressupostos para esta análise, ele estima que, primeiro, os movimentos constroem seu poder político através da contestação, e que a constituição de um poder político é pré-requisito para a construção de instituições alternativas. A segunda questão é que a contestação cria oportunidades para que os movimentos experimentem novas práticas, experimentando a gestão democrática das questões coletivas e isto é basilar para qualquer arquitetura institucional alternativa. (EVANS, 2008, pg 276).

A possibilidade de emergência da contra-hegemonia está na sua capacidade de encontrar fissuras no corpo hegemônico. Se pensarmos a hegemonia como uma combinação de consentimento e coerção, veremos que o quesito consentimento é cada vez mais vulnerável na globalização neoliberal. O neoliberalismo tenta conjugar necessidades contraditórias, por um lado proteger os monopólios e, por outro, passar a imagem de que, somente sob o seu regime, os interesses universais poderão ser atendidos. Um exemplo utilizado por Evans e que é bastante ilustrativo é o da batalha pelo controle da AIDS. O sistema hegemônico precisou se posicionar entre dois polos, por um lado uma indústria farmacêutica monopolista e forte que precisava das patentes para lucrar com os medicamentos, no outro polo o direito da população mundial, especialmente a mais pobre, de obter o medicamento. A quebra das patentes derrubou os lucros e a capacidade do neoliberalismo tanto de proteger os monopólios como de garantir o atendimento das demandas sociais. Estas fissuras foram criando condições para a emergência de um projeto contra-hegemônico ideologicamente viável.

O declínio dos Estados Unidos de sua posição de potência hegemônica, tal como enunciado por Arrighi, e o crescimento dos movimentos de contestação ao projeto hegemônico, ajudaram a criar o ambiente de busca por alternativas. Se pensarmos que o projeto hegemônico anterior foi erguido em termos de um mundo organizado em Estados- nação podemos pensar que o balançar deste sistema já traz uma instabilidade ao projeto hegemônico, mesmo que tenha sido ele a adotar políticas de transnacionalização das decisões políticas e econômicas centrais para sua vigência. A provável emergência de uma nova hegemonia nacional é bastante questionada no mundo de hoje, apesar de autores como Arrighi e Harvey defenderem que provavelmente a China ocupará o papel de Estado hegemônico no próximo período.

Para Evans, pelo menos quatro requisitos são necessários para que os movimentos contra-hegemônicos abram passagem para a constituição de uma nova hegemonia. Em primeiro lugar, os movimentos deveriam transcender não só as fronteiras nacionais como a

divisão norte-sul. Em segundo, devem ser capazes de extrapolar o corporativismo e os interesses eleitorais, representando a diversidade sem deixar de ter políticas focadas. Em terceiro, ser capaz de integrar diferentes níveis e escalas de contestação, fazendo a combinação local e global, por exemplo. Por último, ter a habilidade de propor um projeto que capture a imaginação coletiva.

A estes requisitos acrescentar-se-ia a capacidade de definição de agendas comuns por estes movimentos, equalização de diferenças de participação, especialmente as econômicas e linguísticas, e a capacidade de dar maior consistência e inteligibilidade recíproca ao projeto alternativo, que possibilite a articulação das ações nas localidades, nos Estados nacionais, nas regiões e na arena transnacional43. Segundo Evans, “a complexidade de organizar simultaneamente uma multiplicidade de grupos de interesse parece da forma mais evidente no Fórum Social Mundial” (EVANS, 2008). O que estaria em questão é

se os requisitos organizacionais para manter a versão de diversidade democrática proposta pelo FSM são consistentes com os requisitos para enfrentar uma batalha política efetiva contra a combinação inextricável de países e corporações que sustenta a globalização neo-liberal (EVANS, 2008).

Samir Amin, de modo mais genérico, responde a esta questão dizendo que é urgente a reconstrução da solidariedade dos países do Sul, a quem o capitalismo existente não tem grande coisa a oferecer nem às classes populares nem mesmo às nações. À primeira impressão, pareceria um pouco maniqueista colocar que se a globalização hegemônica nasceu no norte a contra-hegemônica deveria nascer no sul, mas é exatamente como as coisas tem se desenvolvido e como o Fórum Social Mundial tem revelado ao longo dos anos. Os países do sul tomaram consciência de que a gestão mundial neoliberal é falida e deve recorrer frequentemente à violência militar para se impor, fazendo o jogo dos EUA. Portanto, a contra- hegemonia se funda no projeto de reversão da mundialização neoliberal e na hegemonia norte-americana (AMIN, 2003, p. 177).

43

Santos elucida este debate sobre a capacidade dos movimentos de superar suas diferenças culturais e conceituais com um proposta teórica de tradução inter-cultural. A tradução no caso é “o procedimento que pemite criar inteligibilidade recíproca entre as experiências do mundo, tanto as disponíveis com as possíveis, tal como são reveladas pela sociologia das ausências e pela sociologia das emergências, sem por em perigo a sua identidade e autonomia, sem, por outras palavras, as reduzir a entidades homogêneas (SANTOS, 2005 p. 119). Por sociologia das ausências o autor entende a explicação de que aquilo que não existe é na verdade produzido como não existente, como uma alternativa não crível ao que existe. Por sociologia das emergências o autor entende a identificação e a ampliação dos sinais de possíveis experiências futuras, seguindo as pistas das tendências e potencialidades latentes, que são ativamente ignoradas pela racionalidade e conhecimento hegemônico (SANTOS, 2003 p. 238-241).

Em termos práticos, seguindo as pistas de Amin, as bases da contra-hegemonia seriam a condenação da violência militar e do modelo de “guerra preventiva” instaurada pelo governo Bush; controlar as transferências internacionais de capitais e estancar a “hemorragia de capitais” dos países do sul em direção aos do norte; estabelecer controle do câmbio e dos investimentos estrangeiros nos países do sul; democratizar a concorrência internacional ante o poder dos monopólios das empresas transnacionais; garantir a soberania e segurança alimentar das nações frente a liberalização dos mercados de produtos agrícolas que privilegiam os países do norte na arena de negociações da OMC; revisão e regulação das chamadas “dívidas do terceiro mundo”.

Para Santos, a força política dos movimentos que impulsionam a globalização contra- hegemônica dependerá da sua capacidade de formular estas propostas de forma consistente e inseri-las na agenda política das nações e das organizações multilaterais (SANTOS, 2003, p. 336). O Fórum Social Mundial tem sido um motor propulsor de propostas que não teriam visibilidade no campo hegemônico. No FSM de 2002, por exemplo, como aponta Santos, encontramos algumas delas: a) criação de um sistema plural de governança econômica global, proposta pela Focus on the Global South; b) controle dos capitais financeiros nacionais e internacionais e seus fluxos através de medidas como a Taxa Tobin, proposto ela ATTAC; c) cancelamento das dívidas do Terceiro Mundo, proposto pela Jubileu Sul; d) proposta de um referendum continental sobre a ALCA, feita pela Via Campesina.