• Nenhum resultado encontrado

II. CONCEITOS, AUTORES E TEMAS RELEVANTES AO OBJETO

II.2. A DOLESCENTES POBRES E SUA VULNERABILIZAÇÃO DIANTE DO TRÁFICO

Em trabalho anterior33 foram aventadas, dentre outras hipóteses, a de que, principalmente nas famílias de mulheres com filhos sem cônjuges e naquelas em que a figura do pai apresentava-se desqualificada (por alcoolismo, violência doméstica, abandono moral, dentre outras formas) os filhos homens tenderiam a buscar identificações fora da família com figuras de destaque, que poderiam ir do jogador de futebol que alcançou sucesso, ao traficante, que demonstra possuir poder, dinheiro, fama, acesso fácil a mulheres.

Quando observamos estes fenômenos familiares sob o prisma da formulação freudiana segundo a qual a identificação com o pai será fundante da lei simbólica nos sujeitos e matriz para todas as identificações que se seguirão (Freud,1976:45 e 52 [1923]), os pensamos como potencialmente desestruturantes para a prole. Mesmo que a primeira identificação continue sendo ao pai, quando este ainda está presente, ela tenderá a perder sua força devido à rápida queda do apelo identificatório mencionado acima. A este momento corresponderia uma crescente busca por outras identificações (ver também Freud, 1976:capVII [1920b34]), movimento que poderíamos pensar como uma antecipação da socialização secundária pensada por Berger e Luckman (1967:184) como “ interiorização de submundos35” . O que nos preocupa nesta situação é a possibilidade de que a matriz identificatória, ou seja, a primeira

32Segundo Cruz Neto et al. (2001) quando se fala em tráfico de drogas no Rio de Janeiro deve-se entender “(...) as relações que envolvem a distribuição mercantil e ilícita de cocaína e maconha” (ibid., 43). O termo narcotráfico passou a ser usado normalmente para dar uma dimensão internacional ao sistema de tráfico. Este termo importado do inglês narcotic refere-se a substâncias que provocam alterações do estado de consciência produzidas a partir do ópio e de seus derivados como a heroína, a morfina e a codeína (Tancredi apud Cruz Neto et al., 2001:44). As convenções internacionais e a legislação brasileira classificam os remédios derivados da papoula (de onde se extrai o ópio) como narcóticos ou entorpecentes, drogas que produzem sono ou torpor, sendo que especificamente a legislação brasileira engloba − equivocadamente − cocaína e maconha, que têm efeitos diferentes e mesmo contrários ao dos narcóticos, sob o conjunto entorpecentes (que em nossas leis seriam qualquer substância capaz de determinar dependência física ou psíquica) (Silva apud Cruz Neto et al., 2001:44-45). O funcionamento da cocaína, de modo oposto ao das substâncias entorpecentes, produz fenômenos motores, enquanto a maconha intensifica a sensibilidade (Rocha apud Cruz Neto et al. 2001:44). Deste modo Cruz Neto e demais autores alertam para a inadequação do termo narcotráfico e escolhem como termo mais acertado, mesmo que provisório, tráfico de drogas.

33 HUGUET, C., 1999. A Constituição da Lei nas Famílias Chefiadas por Mulheres. Dissertação de Mestrado, Rio de Janeiro, PUC - RJ. Ver pp. 110,111. Os primeiros parágrafos desta seção estão referidos a este trabalho num esforço de apenas pontuar qual foi o percurso que desemboca na presente pesquisa.

34 A letra b foi acrescentada aqui por nós para facilitar a consulta à bibliografia, discriminando entre dois textos do mesmo ano.

35 Na acepção genérica da palavra, como microuniversos.

identificação ao pai não tenha sido suficientemente consolidada para guiar de forma saudável as identificações posteriores.

Percebemos a inclusão do viés de gênero no estudo da aproximação dos jovens aos traficantes e ao comércio ilegal de drogas como avanço teórico profícuo, no sentido de ampliarmos o campo conceitual para olharmos de forma abrangente um sujeito eminentemente complexo em suas ações reações e hesitações. A família de mulher com filhos sem cônjuge reinscreve-se agora, para nós, como elemento em um processo muito maior: o de fragmentação, de desconstrução da família, processo que tem se acelerado nos últimos vinte anos no qual a mãe vê-se premida a também ausentar-se do lar.

Outra hipótese que oriunda do trabalho anterior explorava a possibilidade de conceber-se a organização do tráfico de drogas como um microsistema totalitário36. A este respeito, Luiz Eduardo Soares (Soares et al, 2005 e conversas com o autor) traz elementos relevantes ao afirmar que não seria adequado pensar as organizações criminosas do Rio de Janeiro (Comando Vermelho em especial, e Terceiro Comando) como referentes de organização, logística e integração exemplares, bem como não apresentariam a comunicação eficiente e completa que por vezes é atribuída às mesmas. O autor concorda em caracterizar estas organizações como autoritárias e tirânicas.

Reperguntamos então se não poderíamos pensar na existência de uma dispersão de grupos referenciados a uma idéia e suposto eixo central (como, por exemplo, o Comando Vermelho com seu Estatuto (Amorim, 2003:438-44137), palavras de ordem (paz, justiça e liberdade) e líderes mais representativos). E que estes grupos acabam assemelhando-se a grupos com características totalitárias? As respostas de nossos sujeitos de pesquisa pareceram corroborar esta hipótese.

Recorremos às idéias formuladas por Calligaris, em seu “ A sedução totalitária” (1991) como um caminho para fazer uma analogia entre a adesão dos indivíduos neuróticos comuns ao nazismo na Alemanha de 1933 e os jovens que hoje no Rio de Janeiro acabam “ soldando-se” aos comandos.

De acordo com nossos dados é necessário fazer aqui uma distinção entre o jovem que está caminhando sobre a tênue linha que separa o jovem “ trabalhador” do jovem “ traficante” .

36 Para maiores informações sobre sistemas totalitários e totalitarismo ver Arendt (1949). De acordo com Altoé (1990:246,247), as crianças que vivem em instituições totais, como a antiga FUNABEM e outras semelhantes que a sucederam, procurarão em sua maioria novas instituições totais, ao saírem das primeiras. De acordo com minha concepção, o tráfico de drogas como microsistema totalitário, prestar-se-ia a “adotar” estes jovens, tendo características também de instituição total (Cf. Goffman, 1961).

37 Este Estatuto é atribuído ao Comando Vermelho. Para o autor, apresentar algumas imprecisões e fatos que não batem com a história, seria verdadeiro.

Diferentemente do que esperávamos encontrar, vimos que muitos jovens podem apresentar idas e vindas em relação ao trabalho no tráfico, não “ entrando de vez” , ao ponto de só sair morto ou preso. Ou seja, existe uma permeabilidade nesta fronteira, o que nos serve de alerta para a condenação maniqueísta muito comum entre nós: ‘é traficante!’ ou ‘era traficante!’

quando já está morto ou preso (e por isso merecendo o destino). Falamos aqui do jovem que já conhece o que é o trabalho no tráfico e todo o horror a ele inerente. Jovem que foi perdendo todos os seus vínculos sociais e afetivos, e que entra ou volta ao trabalho do tráfico afirmando que nada mais tem a perder.

A incapacidade de o neurótico enfrentar a realidade da castração e de suportar o sofrimento que daí advém o faz alienar sua subjetividade, se deixando submeter e instrumentalizar na busca de uma promessa de completude (Calligaris, 1991:110-111). Deixa-se cooptar através de uma soldagem a alguma instituição total. Seria uma “ saída perversa da neurose” (ibid., 112). Abdicando de suas singularidades enquanto sujeitos, alienando-as, seria possível construir um “semblante de saber paterno” que então de impossível de saber (o saber paterno), passaria a sabido e compartilhado. O grupo teria então uma fantasia comum como prêmio, ao custo de transformarem-se os sujeitos em instrumentos deste saber (ibid.) e desta miragem de poder.

Percebemos as características compartilhadas entre a estrutura de grupos de traficantes de drogas e sistemas totalitários como pontos de sustentação da analogia entre eles.

Destacamos, dentre outras o uso de políticas do terror e promessas; a restrição de liberdades (do direito de ir e vir e de se comunicar livremente, por exemplo); o recurso à prática das punições exemplares (a morte é castigo freqüentemente utilizado para quem contraria algumas regras dos grupos), incluindo a prática de mutilações, e sem direito ao contraditório; ainda o apelo e recrutamento dos jovens, mais dóceis e moldáveis (com estratégias próprias para isso e a preocupação dos traficantes mais antigos com a imagem que é passada aos mais jovens:

“ temos que dar exemplo para os amigos mais jovens que estão chegando na organização” )38; e as estratégias de provisão (“ grandes” traficantes podem prover a comunidade, enquanto pequenos traficantes podem prover suas namoradas, suas famílias, e seus próprios desejos de consumo), incluindo a substituição da consciência crítica com a inscrição ou reafirmação de valores (ideológicos) interessantes à instituição (tanto ao tráfico, como ao sistema totalitário).

38 Estatuto da união do PCC (Primeiro Comando da Capital) de São Paulo com o CV (Comando Vermelho) do Rio de Janeiro, encontrado na Casa de Custódia Bangu 5 em setembro de 2002. Este documento teria sido oficializado em 12/02/2002 constituindo-se em um código de ética para nortear e unificar as práticas dos bandidos dos dois Estados (fonte: jornal EXTRA, de 22 de setembro de 2002).

Dowdney (2003:55) menciona que se por um lado as facções possam prover serviços que o Estado não provê, estas exercem um controle tirânico sobre a comunidade, baseado em

“ reciprocidade forçada” . Para Rodrigues (1994), citado por Minayo e Souza (1999:14), o narcotráfico tem características de instituição totalitária: impõe pelo terror o seu poder, impedindo que a comunidade se organize enquanto organização civil.

Retomando as idéias dos autores que procuram descrever as origens, circunstâncias, contextos, processos e vicissitudes da irrupção da violência, observamos que os caminhos tomados por Adorno e Horkheimer (1956) e Pellegrino (1987) para explicar a passagem à delinqüência não são excludentes, nem entre si, nem em relação à hipótese que apresentamos, podendo, pelo contrário, ser vistos como complementares. Adorno e Horkheimer (ibid.) apontam, dentre outros elementos, que se poderia atribuir ao congelamento dos afetos dentro da família a difusão do fenômeno da delinqüência. Conhecendo suas idéias, acrescentamos que não é apenas isso, o que está bem claro em seu texto; ocorreria também um esvaziamento moral no seio das famílias, um esvaziamento / substituição de valores, e de liderança, que passaria a ser buscada em outros lugares. Logo, dar-se-ia duplo processo atingindo a forma de se efetuar a transmissão dos valores, e de construção da identidade, que é através do afeto, e atingindo também o conteúdo, que são os valores em si, parecendo chegar-se à seguinte equação: já não existem os meios – afeto – para transmitir o que já não se tem – os antigos valores, de honestidade, justiça, generosidade, dentre outros. Qual o resultado possível neste contexto?

Vazio.

Vimos que Pellegrino, partindo da metapsicologia psicanalítica, chegava a uma avaliação sócio-jurídica: é feito um pacto na vida dos indivíduos, que ele chamou de pacto edípico, em que cada indivíduo abre mão de extravasar suas pulsões livremente, para se adequar à vida social, seguindo de perto as idéias do criador da psicanálise em um de seus mais importantes textos sociais, O Mal-Estar na Civilização (Freud, 1930).

Este pacto, segundo Pellegrino, teria que ser referendado por um pacto social em que são partes contratantes o trabalhador e o Estado (pai). Se o Estado não retribui ao trabalhador as condições para que possa trabalhar e viver dignamente este pacto não pode ser confirmado, retroagindo ao pacto anterior, anulando-o e lançando o indivíduo de volta a uma existência pulsional, pré-simbólica.

Ressaltamos ainda a semelhança entre este indivíduo que não pode trabalhar dignamente e a categoria descrita por Castel (1991:25-26) que circunscreve aquele indivíduo

− o indigente apto, chamado anteriormente de indigente válido considerado apto ao

trabalho pelo Estado que, deste modo, não lhe dá acolhida, não lhe franqueando o direito aos benefícios da seguridade estatal, embora seja, pelo lado do mercado, rechaçado por rígido corporativismo que excluía o trabalho “ livre” .

Expulso do campo, mormente pelo processo de cercamento dos campos, este indivíduo, outrora trabalhador rural, não apenas era rechaçado pelo mercado de trabalho, como vimos acima, como era vedada a sua mobilidade profissional e geográfica. Acabava assim por recair sobre este apto-para-o-trabalho-que-não-trabalha (Castel, 1991:26) a mão pesada da criminalização e repressão, procurando-se imputar-lhes a responsabilidade por sua condição, como pôde ser visto através de levantamento dos processos por vagabundagem39 de então (ibid. ver nota 3, p.26). Tratava-se da tentativa do Estado de dar uma solução burocrática para aquilo que sobrava dos processos de passagem ao trabalho organizado.

Visava, porém, o impossível: “ colocar no trabalho aqueles que de todas as maneiras estavam excluídos do trabalho” (ibid., 27).

O indivíduo descrito por Pellegrino (1987), que não consegue obter o referendo social do pacto que fez intra-familiarmente, e o descrito por Castel; podemos considerá-los, por aproximação, ambos como representação do mesmo indivíduo, ainda sem lugar no mundo de hoje40.

Se o mundo do trabalho formal e legal não o aproveita, alguém acaba fazendo-o. Neste momento, voltando aos objetivos desta pesquisa, deparamos com outro elemento deste dramático jogo que coloca a vida de crianças e adolescentes em risco: o tráfico de drogas.

Nossa hipótese se aproxima a de Pellegrino quando afirmamos que a identificação ao traficante se processa de forma não madura, envolvendo a instância conceituada em psicanálise como ego-ideal41. É uma identificação regredida em relação à que ocorre em nível de ideal de ego, aproximando-se conceitualmente pelo caminho do narcisismo ao estado em

39 “Declaramos vagabundos e gentes vadias aqueles que não têm profissão nem ofício, nem endereço certo, nem lugar para subsistir e que não são reconhecidos pelas pessoas dignas de fé que não podem certificar-se de sua boa vida e costumes” (Ordem real de 21 de agosto de 1701, cujo teor foi retomado de forma aproximada no código napoleônico. Em Castel, 1991:27, ver especialmente nota 5).

40 O que nos remete às idéias trabalhadas por Arendt (2000:300-336 [1949]) acerca do apátrida (que nos países em que vieram a morar era apenas uma anomalia legal não prevista na lei regular do país) (ibid., 311). O apátrida era (é) um homem sem pátria, tão fora-da-lei que, por definição, não está previsto nela, ficando completamente à mercê do manejo arbitrário da polícia (ibid., 317), que procurava diminuir seu número (dos apátridas) no país, não hesitando em recorrer a medidas ilegais para isso. Esta pode ser a primeira condição para seguir na desumana trajetória rumo à superfluidade que envolve a desconstrução do homem enquanto homem, passando pelos diversos registros: pertencimento pátrio, físico, moral, jurídico, individualidade. No fim do processo este homem desumanizado pode marchar (como nos campos de concentração nazistas e soviéticos) ordeiramente para a própria morte e nem esta será reconhecida. Será apenas mais um corpo anônimo em vala comum.

41 Para esta discussão sobre narcisismo, ego-ideal e ideal de ego, ver Costa (1988:109-136, 1991:93-103).

que a pulsão, de qualidades violentas, é vivenciada como sem limites, na fase pré-edípica, como postula Pellegrino (1991).

Voltando a Adorno e Horkheimer (1969), principalmente em relação aos valores praticados nas famílias, acreditamos que na grande maioria das famílias dos sujeitos desta pesquisa estão presentes valores capazes de contribuir para a boa construção da lei interna dos jovens, bem como existe afeto para a transmissão destes valores.

Retomamos, porém, a utilidade da analogia ao quadro preocupante descrito por estes autores quando percebemos que existe uma conjuntura de condições sócio-econômico-ideológicas e culturais capaz de embaralhar os valores considerados positivos, com outros que poderíamos pensar como negativos, podendo, por exemplo, haver em certa medida a desqualificação do trabalho legal, como sendo coisa de otário42. Confluindo com esta forma de pensar, observa-se que mensagens ideológicas têm sido veiculadas insistentemente e em escalas cada vez mais abrangentes com sentidos conflitantes em relação aos dos antigos valores de que falavam Adorno e Horkheimer (1969), o consumismo, sendo alçado a totem maior de nossos tempos, levando os jovens a pensarem e afirmarem que o cara legal é aquele que consome tais e tais marcas.

Em segundo lugar, entrando um pouco mais na especificidade da família brasileira contemporânea, vemos que o pai é atingido em cheio no seio da família, muitas vezes degradando-se, chegando mesmo a sair ou a ser expulso de casa, o que ocorre principalmente e de forma mais dramática entre as famílias mais pobres (Scott, 1990; Durham, 1982). Depois a mulher / mãe é atingida, tanto pelo que foi um dia considerado uma das grandes vitórias dos movimentos de libertação da mulher − conquistar seu espaço no mundo do trabalho − hoje revisto, como uma muitas vezes excruciante “ dupla jornada” .

Nesta jornada de trabalho dobrada, a mulher tem acrescentada às tarefas do mundo doméstico da casa, a hiper-exploração sofrida no trabalho no mundo da rua, sendo a necessidade econômica das famílias a determinar cada vez mais a saída da mulher / mãe de casa para o trabalho remunerado (Giffin et al., 2000). Os pais43 vão ficando cada vez mais ausentes ou impermanentes dentro das famílias. A ausência de ambos traduzindo-se em filhos deixados com vizinhos, com um irmão um pouco maior, com a TV (principal veículo de mensagens ideológicas voltadas a valores como o consumismo, por exemplo), ou deixados

42 Desqualificação que não foi corroborado por nossos dados. Muito pelo contrário...

43 Usado aqui em contraste com mães.

mesmo à própria sorte, como mostram estatísticas de programas de proteção à criança e ao adolescente contra violência doméstica44.

Na hora de buscarem alguma renda própria – seja pela necessidade de sobrevivência, ou pelo desejo de consumir supérfluos – os jovens não encontram oportunidades de trabalho, fato que é largamente atribuído a deficiências deles e não a tendências excludentes da escola e do mercado de trabalho. Deste modo, começam as dificuldades em um dos eixos apontados por Castel (1991) como fundamental para o pleno pertencimento social, o eixo do trabalho.