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IV. CAMPO EPISTEMOLÓGICO E MÉTODOS

IV.2. I DEOLOGIAS

postura do entrevistador. E neste sentido, embora a psicanálise tenha estado historicamente associada aos setores mais ricos da sociedade em consultórios requintados, ela tem estado, quando não deturpada (como quando foi usada em prol de um adaptacionismo nos EUA, por exemplo) a serviço da transformação, e tem levado muitos sujeitos destas classes72 a depararem com questões de seu dia-a-dia, com remetimentos éticos importantes. Hoje, como exposto adiante, a realidade da inserção da psicanálise na sociedade é outra, e tem se modificado cada vez mais.

Podemos dizer então que nossa implicação e engajamento são com a transformação social e com a luta contra as opressões, no que acabamos por nos ver afinados com a posição crítica de análise da sociedade.

pergunta organizadora voltada a descobrir até que ponto e de que forma aqueles estão a serviço da manutenção de poderes que querem se perpetuar e dominar.

Devemos enfatizar também a importância atribuída pelo autor ao fato de que um campo de estudo objetivo (e subjetivo) com pessoas não apenas interagindo permanentemente com as formas simbólicas, mas também as interpretando. Mais ainda, que estas formas simbólicas são significativas tanto para os sujeitos que estão no campo a ser investigado, como para o pesquisador. Podemos dizer então que Thompson está referindo-se aqui ao que podemos chamar de implicação do pesquisador. Esta se não for bem analisada pode causar vieses que prejudicarão o resultado final da pesquisa tornando-a parcial em um grau muito alto, e com resultados que estarão referidos antes à subjetividade do pesquisador do que ao próprio objeto (sujeito) (cf. Baremblitt, 1992:72, 73).

Como vimos, Thompson (1995) situa a ação das ideologias no campo social de forma ampla, incluindo os tempos e espaços onde as pessoas passam a maior parte de seu tempo, falando, ouvindo, conversando, buscando seus objetivos e seguindo os objetivos dos outros − o que em psicanálise poderíamos conceituar, dependendo do nível em que este processo ocorre, como pessoas identificando-se a outras. São locais como o trabalho, a casa, entre os amigos, salas de aula, dentre outros, exatamente nas interações cotidianas, cujo estudo como constituinte princeps do mundo e da vida social também é defendido por autores identificados ao interacionismo simbólico como Berger e Luckman (1967).

Giffin et al. (2002) recorrem a Paulo Freire para demonstrar que é na opacidade73 do cotidiano que a ideologia tende a dominar. Diante deste ponto defendem a necessidade de que cada um possa problematizar e refletir em cima do seu cotidiano, atitude afinada à idéia que durante muito tempo animou o movimento feminista, de que o pessoal é político.

Thompson (1995) lembra que as interações presentes na vida cotidiana estão referidas em maior ou menor grau aos contextos macro-estruturais, assim como o inverso também é verdadeiro. A ideologia também faz cortes transversais, ou seja, ela está em todo lugar e em todos os sentidos e planos. A visibilização e superação da ideologia – ou o estabelecimento de um processo de sucessivas desconstruções – dar-se-ia pela busca de uma ação social questionadora das hierarquias fechadas e do poder autocrático desestabilizando-os de seu plano vertical (onde fluiria sempre de cima para baixo) para uma configuração cada vez mais transversal74 e transparente.

73 No sentido do ocultamento de outras possíveis interpretações, da naturalização das “coisas do mundo” e do dia-a-dia (‘é porque é assim’; ‘isso sempre foi assim’, e por aí vai). Fechamento.

74 Ver também conceito de transversalidade em Baremblitt, 1992:37, 195.

Como marco referencial de análise, Thompson (1995) apóia-se na hermenêutica, enfatizando o que chama de “ condições hermenêuticas da pesquisa sócio-histórica” , que podem ajudar a definir um campo-objeto diferenciado do campo-objeto das ciências naturais, já que o campo da sociologia sob este ponto de vista é também um campo subjetivo, que inclui sujeitos, muitos dos quais interessados na auto-compreensão e na compreensão do próximo. Poderíamos resumir, seguindo as idéias do autor, que se trata de um campo pré-interpretado, o que o diferencia de modo inequívoco do mundo das ciências naturais.

Seguir esta proposta significa tomar o caminho de re-interpretar uma realidade pré-interpretada pelos sujeitos/agentes presentes nela. Através da utilização do que nomeia referencial metodológico da hermenêutica profunda, que está baseado na hermenêutica de − principalmente − Paul Ricoeur, Thompson (1995) mostra-nos como pode obter (re)interpretações da realidade social capazes de articularem-se e ligarem-se tanto às características estruturais da realidade estudada, quanto às compreensões sócio-históricas da mesma, passando pela análise (formal ou discursiva) das mensagens em si.

Este procedimento metodológico descrito por Thompson (1995) destina-se, agora sim, à análise dos fenômenos culturais − que o autor chama também de formas simbólicas − em contextos estruturados. Tal análise é composta de três momentos distintos que descreveremos de forma abreviada. O primeiro momento consiste em análise sócio-histórica onde procura-se levantar as condições sociais e históricas dos ciclos e interações das formas simbólicas. Como foram produzidas, de que modo circularam e como foram ou têm sido recebidas. Para esta fase podem ser utilizados meios empíricos, observacionais ou documentais. Poderão ser levantados nesta fase os campos onde ocorrem as interações, as regras, convenções e

“ esquemas” flexíveis e nem tão fáceis de identificar, além das instituições sociais, incluindo as regras, a história e desenvolvimento das mesmas, além de observar-se como funcionam as pessoas dentro destas instituições. Por fim, convém levantar os meios técnicos e as formas de transmissão destas das mensagens sob análise (Thompson, 1995:366-368).

A segunda fase do método hermenêutico profundo − análise formal ou discursiva das formas simbólicas − torna-se imprescindível quando se está lidando com objetos e expressões que possam ser caracterizados como construções simbólicas complexas (Thompson, 1995:369) dotadas de estrutura articulada.

Nesta segunda etapa faz-se uma análise formal ou discursiva das formas simbólicas percebidas, observando-se cuidadosamente a complexidade das mesmas, bem como suas

interações, procurando também delinear do modo mais preciso possível o que estas formas simbólicas dizem sobre o que. Há que se verificar a organização interna de tais formas sem deixar de considerar as características estruturais. O perigo neste momento, segundo Thompson (1995) é, ao fixar-se o pesquisador apenas senta fase, incorrendo na inobservância dos princípios da análise hermenêutica em profundidade, o processo se torne um exercício abstrato desligado do contexto onde vivem as formas simbólicas. Esta parte da análise não pode tornar-se um fim em si mesma. Esta seria, segundo o autor, a falácia do internalismo (ibid., 377).

Acreditamos que esta fase constitui importante instrumento para fazer face não apenas à crescente codificação de formas simbólicas com grande carga ideológica, como também ao crescente recurso a formatos / conteúdos passíveis de serem transmitidos de forma subliminar aos receptores.

O terceiro momento é o de interpretação ou reinterpretação. A partir dos resultados obtidos anteriormente, procura-se, neste momento, chegar de forma criativa à construção de significados possíveis. A idéia de reinterpretação surge do fato de se estar analisando e construindo significados para formas simbólicas já previamente interpretadas pelos sujeitos, de modo que o que acontece é uma nova interpretação, processo que envolve não somente o pesquisador, mas também o pesquisado.

Embora venhamos a proceder a uma análise mais livre dos dados obtidos dentro do contexto global da pesquisa, consideramos o roteiro proposto por Thompson (1995) como um referente produtivo de análise e interpretação. Citamos como exemplo, dentre os fenômenos culturais (formas simbólicas) ideologizados que pudemos levantar, este a que nos referimos como cultura de comando, que tem como um dos importantes eixos de sustentação uma ideologia de gênero hipermachista. Adiante abordaremos os outros aspectos que circunscrevem esta idéia, como valores, linguagem, comportamentos, leis.

Pudemos perceber no contato com o campo e com os entrevistados o modo como estas formas simbólicas são recebidas, reproduzidas, “ interagidas” , operacionalizadas e perpetuadas pelos sujeitos, devendo ser atentamente analisadas suas conexões com as ideologias vigentes e a dominação. Neste sentido, para além dos propósitos tradicionais da produção do conhecimento acadêmico, a possibilidade de re-interpretar a ideologia coloca-se, ainda segundo Thompson (1995), à serviço da reflexão e da abertura de possibilidades de auto-transformação.

Este seria segundo o autor um dos pontos mais importantes: oferecer às pessoas estudadas a possibilidade de reverem, através da comparação com outras interpretações, o modo como entendem as formas simbólicas, possibilidade de reverem, inclusive, o modo como se vêem e aos outros. Uma vez que as pessoas envolvidas no processo considerem as interpretações como justificáveis tanto para os analistas (pesquisadores) como para os sujeitos, elas poderão contribuir na prática para estimular a reflexão entre estes sujeitos sobre si próprios e sobre a realidade em que vivem. A partir desta auto-reflexão podem, vendo-se de forma diferente, dar início a um processo de auto-transformação.

Emana deste movimento a oportunidade de desvelar − e questionar − o contexto de relações de poder e dominação vigentes no mundo em que vivem estes atores sociais. Trata-se de exercitar outra postura produzida na / pela pesquisa: o estranhamento do que costumava ser tomado como natural através da interpretação cotidiana dos atores.

Giffin et al. (2002), ao abordarem o processo de pesquisa-ação, apontam caminhos metodológicos e princípios epistemológico-ideológicos semelhantes em muitos aspectos às propostas de Thompson, mesmo percorrendo caminhos e estando informadas por autores por vezes diferentes. Podemos pensar os dois conjuntos de idéias, propostas e técnicas como idéias e posições complementares. Enquanto Thompson diz que a interpretação do pesquisador é sempre uma re-interpretação, aqueles autores dizem que a realidade é sempre interpretada. Compreendem a subjetividade humana como uma propriedade emergente da interação entre as pessoas, sendo mister incluir os pesquisadores como também participantes desta interação. Logo tanto a realidade social como os sujeitos estão sendo mutuamente construídos em um processo constante de vir-a-ser:

Este processo, apesar de dinâmico e passando por uma diversidade de perspectivas individuais, constitui ordens sociais de significado que definem o que é re/conhecido como ‘o real’, permitindo a interação.

Aqui tanto a realidade como a auto-identidade emergem (e se transformam) em um processo social que é interativo e coletivo.

Giffin et al. (2002)

Vemos então que, se Thompson (1995) fala em auto-transformação dos sujeitos da pesquisa, Giffin et al. (2002) afirmam que a realidade e auto-identidade emergem e transformam-se em um processo social que é coletivo, interativo e contínuo. A experiência

vivida no cotidiano é vista como âmbito de transformação através de um processo reflexivo, sendo impossível separar conhecimento e ação. De novo aproximando-se às idéias de Thompson em relação à compreensão das formas simbólicas como prenhes de ideologia, estes autores (Giffin et al., 2002) entendem − em sintonia com Paulo Freire, citado por eles − a natureza da realidade concreta como problema político e ideológico, não apenas epistemológico ou pedagógico, confrontando nesse entrecruzamento de campos educadores, cientistas sociais, bem como pensadores em geral que estejam implicados em analisar e criticar a sociedade. Novamente confluindo com Thompson (ibid.), consideram, convocam o pensamento de Paulo Freire para afirmar que é apenas a partir de uma relação dialética entre objetividade e subjetividade que pode emergir a realidade concreta. A partir daí podemos entender melhor o papel de protagonismo que o sujeito / objeto do conhecimento tem no conhecimento de si e do mundo que o cerca. Cabe aí ao educador a tarefa de ensinar a perguntar. Dentro deste contexto compreendem a não-problematização (análoga à naturalização mencionada acima) do cotidiano como uma produção ideológica em si, e a serviço da dominação.

Neste sentido, e fazendo uma preliminar costura com nossa pesquisa, observamos que o uso de entrevistas não-diretivas é um passo inicial e apenas abre um campo de potencialidades em relação aos sujeitos pesquisados chegarem a importantes tomadas de consciência sobre sua própria condição. Terá que haver um movimento ativo destes em direção a aceitarem o exercício de saberem sobre si e sobre a realidade em que vivem. Outras formas de pesquisa social utilizando, por exemplo, grupos focais ou pesquisa-ação, inspiradas nas idéias de Paulo Freire, procuram ensinar ao entrevistado a perguntar sobre sua realidade, e a indagar sobre sua inserção nela. Estas formas de pesquisa contribuem de forma decisiva para que o entrevistado possa ter insights importantes acerca de sua vida, da realidade que o cerca, insatisfações, possibilidades de mudança, dentre outros tantos pontos fundamentais para que possa reencaminhar sua vida caso descubra que assim o deseja fazer (Giffin et al., 2002).

Tomando como objeto o próprio trabalho de campo desenvolvido por nós, em um olhar a posteriori, é gratificante perceber que criamos as condições para que os jovens pudessem, ao longo das entrevistas, fazer profundas reflexões sobre muito dos fatos por eles narrados, incluindo sua vida pregressa mais recente, do período de envolvimento com o tráfico de drogas. Mais do que nos propormos um tratado sobre o tema, ensaiamos aqui a possibilidade de avançar pelos caminhos dos significados, interações, motivações, costumes e cultura dentre os outros inúmeros aspectos por onde transitam estes jovens.

Em contato com o campo, percebemos de um modo geral que adolescentes ao serem abrigados parecem ficar em condição de assujeitamento75, sem serem ouvidos (empaticamente) sobre o seu passado, presente, frustrações, felicidades, expectativas, perspectivas, limitações e dificuldades para o futuro, dentre outros pontos. Algo que a conversa com estes adolescentes nos mostrou é que talvez a única chance que eles têm de não voltarem a caminhos que já andaram trilhando é a de serem reconhecidos e ouvidos como sujeitos de direitos e sujeitos de desejo, com reais possibilidades de mudança. E o abrigo deve funcionar como um refúgio também em relação à mensagem − ideológica − produzida e reproduzida por grande parte da sociedade, qual seja: é melhor que não estivessem... Uma mensagem de exclusão, uma mensagem de extermínio. Propomos ao leitor a análise desta forma simbólica que aparece cristalizada, por exemplo, na ação de grupos de extermínio, como um primeiro exercício de análise das formas simbólicas, como sugere Thompson (1995).

Embora nossa participação na vida institucional do abrigo onde transcorreu a pesquisa tenha sido pontual, estendendo-se por um período de cerca de quatro meses, podemos dizer que, inspirados na idéia de pesquisa-ação (Giffin e Barbosa, 2004:1), procuramos propiciar aos jovens um ambiente de acolhimento das suas palavras, idéias e afetos, possibilitando que chegassem a reflexões que muitos nunca tinham feito; procurando – através do processo de perguntar sobre a vida deles e pedindo a opinião deles – o estranhamento do seu lugar (socialmente construído), em especial, do lugar que estiveram ocupando há pouco tempo nas engrenagens do tráfico de drogas. Percebemos, neste sentido, a importância da reflexão em cima da própria vida cotidiana deles no sentido pensado pelas autoras (ibid., pp.1, 3), como espaço ao mesmo tempo ideológico, mas que oferece, dialeticamente, resistência às ideologias (como vimos com Anyon e Genovese, através dos mecanismos de acomodação e resistência).

Seguindo as diretrizes de uma sociologia compreensiva no que ela reconhece que a realidade é sempre uma realidade interpretada (Giffin e Barbosa, 2004:2), procuramos ouvir como estes jovens viam e entendiam (interpretavam) o seu estar no mundo, de modo que a entrevista acabava por encaminhar-se para a problematização da realidade, estranhamento deste cotidiano que, não obstante as resistências mencionadas acima, a princípio é não

75 Termo utilizado em Análise Institucional e que se refere ao grupo ou pessoa que perdeu, mesmo que temporariamente, sua capacidade de ser sujeito de seus atos, de enunciar dizeres próprios. Na situação de assujeitamento não são cidadãos, agem segundo algum Outro que naquele momento os domina. Outro que pode ser um Comando (do tráfico). Obedecem então a este comando que os faz autômatos de imperativos e ordens externas e eles.

problematizado e por isso aberto às ideologias, que normalmente estão a serviço da dominação.

Pensamos, sob esta perspectiva, ter atingido o objetivo de, ao mesmo tempo em que pesquisávamos com os jovens buscando um patamar diferenciado de compreensão de sua subjetividade e inserção social, colocar em prática outro elemento ético presente no conjunto de idéias que sustenta as técnicas de pesquisa afinadas à pesquisa-ação, que diz respeito ao transformar no / pelo próprio processo de perguntar. Fazer a pesquisa já era uma intervenção neste sentido, podendo ser experimentado por nós o gratificante processo de conhecer transformando (Giffin e Barbosa, 2004:3), questionando e ao mesmo tempo estimulando o questionamento dos caminhos trilhados e dos estereótipos encontrados pelos / nos sujeitos da pesquisa.