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VI. DESCRICAO DOS DADOS E ALGUMAS PONTUAÇÕES

VI.1. V ISADA SOBRE UMA UMA FAMÍLIA QUE FALTA EM UMA SOCIEDADE

VI.1.3. T HEO : UMA VIDA ATRAVESSADA PELA MORTE

O relato de Theo nos levou à compreensão de que houve um agravamento da fragmentação de sua família no período posterior à morte de seu pai pela polícia. Embora não possamos considerar realmente estável uma família onde o pai estava na vida do crime (o que foi dito a Theo por sua avó) e a mãe era ainda uma adolescente. Inegável, porém, é que a morte do pai de Theo foi um momento disruptivo que marcou uma importante transição em sua vida.

A orfandade de pai foi precedida pelo vaticínio que este lançou, já moribundo, sobre o recém-nascido Theo: o bebê seguiria os passos do pai, continuaria onde ele falhou dando prosseguimento ao trabalho paterno na vida do crime. A partir daí, se havia ainda algo que se aproximasse da estabilidade, se podíamos falar em uma família não totalmente fragmentada, este pouco que se tinha se perdeu diante da cena, por si só traumática, da morte do pai aliada ao aparecimento de atitudes desequilibradas na mãe adolescente, que passou a abandonar e a maltratar severamente o bebê.

Theo contou que foi “nascido e criado” até os 14 anos em um terreno de sua avó onde os parentes foram construindo suas casas, umas 15 casas, morando perto de tias, tios, primos, primas, dentre outros. A família que o criou era composta por sua vó, uma tia e seu padrinho.

Theo, ainda bebê, contava com uma família com pai e mãe. Com a morte do seu pai, vimos que sua mãe passou a descuidar dele e a maltratá-lo, sendo acolhido então pela avó paterna, em cuja casa e por quem considera que foi realmente criado, com a presença também da tia e do padrinho.

Viveu bem nesta casa tendo muito respeito e admiração por sua avó que a todo o momento o surpreendia por sua força e determinação: contou, por exemplo, que aos 80 anos a avó não deixava (à época da entrevista) entulho bagunçando o quintal, que em pouco tempo retirava tudo. Contou que não tinha grandes ambições. Não se importava em ser apenas mais um menino brincando no quintal. No entanto, a saída de casa começou a ganhar consistência ao aproximar-se de um primo envolvido108 que viria a ser executado pela polícia, o que reacendeu nele grande desejo de vingança, enfraquecendo os laços familiares anteriores.

Afastou-se assim da casa da avó e começou outra etapa de sua vida. Durante todo este tempo sua mãe esteve ausente. Quando apareceu foi para tomar Theo de sua avó quando este tinha cerca de quatro anos. Mais uma vez foi negligente com o filho, adoecendo e sendo internado em um hospital, vindo a ser então retomado por sua avó. Contou que, depois disso, só voltou a falar com sua mãe recentemente, ele já com 16 anos.

Theo foi o filho mais velho entre sete irmãos. Segundo seu relato foi o único filho do núcleo familiar composto pela união de seus pais biológicos, já que seu pai morreu quando ainda era recém-nascido. Relatou a existência de um padrasto que se uniu a sua mãe biológica que teve outros filhos com este novo companheiro, que seriam os irmãos de que falou a seguir, e com os quais talvez tenha procurado interagir, mesmo estando com relações cortadas com a mãe.

108 “Envolvido” significa aqui “envolvido com o tráfico de drogas”, como os moradores áreas tomadas pelo tráfico costumam falar.

Sua história não é simples, muito menos linear: o próprio adolescente repete algumas vezes que a vida dá muitas voltas. Percebemos sua dificuldade em falar de seus laços fraternos como mais uma manifestação da chamada fragmentação da família. Percebemos que, assim como ocorreu com Diogo, seu padrasto não foi uma figura positiva em sua vida109. Theo mencionou como sendo figuras importantes para ele a avó, um ou dois tios, e o primo, sem nada falar sobre o padrasto.

Ele contou que tem seis irmãos. Dos que chegou conhecer, três estavam em um colégio interno, e uma irmã com o padrasto. Restavam dois irmãos que nunca viu, que estariam em Minas. Disse que a história era comprida para explicar o que houve com estes irmãos:

[Como é a relação com os irmãos?] Não com todos, que de todos eu só vi quatro. Que é três que está no colégio interno, e a minha irmã, a Esther, que tá com meu padrasto. [E os dois restantes?] Estão em Minas, Nara e Humberto. [São mais velhos?] O mais velho de todos sou eu [como foram parar em Minas?] é porque... Cara, a vida... É muita coisa mesmo que aconteceu. A minha avó me contou isso. Ela já te contou? Foi muita coisa, né, que aconteceu.

Diz que nunca conheceu estes irmãos.

Theo e entrevistador

Como vimos acima, depois de ficar relativamente abandonado e à mercê da mãe, a avó passou a cuidar dele, passando a ser a mais importante referência familiar na vida dele até hoje: “ [Como era sua casa?] Maneiro, é o lugar que eu mais me apeguei, lá na minha avó e em Piratininga, na casa da minha tia” .

Um sentimento que a avó passava a ele e que confirma a importante capacidade de acolher e dar limites110 a Theo apareceu em seu relato ao descrever os afetos de sua avó em relação a ele. É a definição de algo sólido, capaz de conter qualquer tipo de desastre que possa ocorrer. A certeza de que o outro estará lá por ele, de que o vínculo não será rompido, como tantos outros que foram e têm sido rompidos em sua vida:

[Como você vê hoje sua relação com sua avó] minha vó falou que, minha avó sempre fala que a minha relação com ela não muda nunca entre eu tando aqui ou tando lá, ela sempre vai gostar de mim, e que ela falou que não ia mudar nunca, enquanto ela tiver viva não vai

109 Compreendemos a dificuldade recorrente de padrastos em relação aos filhos anteriores da companheira atual como mais uma manifestação da necessidade de corresponderem a estereótipos hipermachistas. Fecham-se e repudiam os frutos de relações anteriores, opondo-se aos relacionamentos do passado de suas atuais mulheres, como uma tentativa machista e delirante de negar o fato de que houve outros homens em suas vidas.

110 No sentido de conter. Ver Winnicott (1984:121 e ss.).

mudar nunca a relação. Se for de eu ir para lá eu vou, se for de ficar aqui eu fico, ela me ajuda, tá me ajudando111. (Grifos nossos).

Tamanha era a segurança que esta senhora já idosa, com mais de 90 anos, dá ao neto, que seu maior medo, seu maior pesadelo era que a avó morresse.

De forma semelhante a Diogo, Theo contou que passou por muitas dificuldades, tendo chegado mesmo a ficar sem comida em casa. Relatou ter apenas um tênis, duas camisas e duas bermudas e que naquele momento trabalharia até em troca de cestas básicas:

(...) que estão vendo um trabalho na Bananeiral para mim, que é ligado à obra e que paga duas cestas básicas por mês. Não sei se vai ter dinheiro também, só sei que ganha isso das cestas básicas. Quero fazer um trabalho que dê um dinheiro pra ajudar minha mãe a comprar minhas roupas, tenho duas bermudas e duas camisas certinho. (...) tenho um tênis (...). (Grifos nossos).

Fica clara, através do relato de Theo, em especial o trecho grifado, a precariedade em relação ao outro eixo de pertencimento social discutido por Castel (1991). Consideramos o fato de o jovem estar ansioso à espera da resposta em relação a um trabalho em que acha que ganhará apenas duas destas básicas de comida um importante indicador do grau de dificuldade de conseguirem trabalhos legais (mantendo a polissemia da palavra: trabalhos bons e interessantes [como gíria] e dentro da lei [da legalidade]).