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II. CONCEITOS, AUTORES E TEMAS RELEVANTES AO OBJETO

II.5. CONSUMO , IDEOLOGIA

Vimos com Castro (1998) a importância histórica e de alcance planetário da passagem do eixo da produção ao eixo do consumo e se os autores aos quais Castro recorreu falavam em uma cultura de consumo, estaremos então inevitavelmente também no campo das ideologias.

Para fazermos uma aproximação a dois elementos intrinsecamente ligados ao que tem significado o consumo em nossa sociedade moderna recorremos a Thompson (1995).

A primeira contribuição deste autor se dá no sentido de uma “ recuperação” do importante conceito de ideologia, propondo uma concepção crítica da ideologia. Respondendo a uma literatura sociológica que considera a ideologia como um “ cimento social que conseguiria estabilizar as sociedades, unindo conjuntamente seus membros e propiciando-lhes valores e normas coletivamente compartilhados” (Thompson, 1995:17) defende a posição de

que não existe evidência suficiente para sustentar a tese de que certos valores e crenças sejam compartilhados por todos ou mesmo pela maioria de determinada sociedade industrial moderna, as quais diferem sobremaneira das sociedades holísticas, onde a noção do todo predomina sobre o individual de forma mais marcada52.

Em sentido oposto, este autor, em sua reformulação do conceito de ideologia53, retoma seu caráter contundente de ferramenta de profunda crítica social para fazer frente, por exemplo, ao ocultamento / naturalização de relações de poder e de dominação. Além disso, critica a prática de se pensar tal conceito exclusivamente em relação às formas instituídas de poder no Estado moderno. Logo, defende a idéia, ampliando a abrangência da discussão, de que a ideologia está em todo lugar, representada pelas relações de poder (desiguais), inclusive no dia-a-dia das pessoas, da casa ao grupo de amigos. Para ele, cada vez mais as experiências pessoais cotidianas estão sendo mediadas por sistemas técnicos de produção e transmissão simbólicas (Thompson, 1995:21).

A outra importante contribuição de Thompson (1995) permite articularmos as contribuições de diversos autores anteriormente mencionados, quando ele se aprofunda nos processos de propagação das mensagens ideológicas, identificando um eixo fundamental para a universalização da propagação destas mensagens, como são, por exemplo, aquelas que impelem ao consumo, conseguindo-se criar deste modo, desejos globais em torno de determinadas marcas: trata-se da midiação.

Para retomarmos a articulação com Castro (1998) tal eixo midiático teria um papel fundamental na transição da centralidade da produção para uma centralidade do consumo.

Uma boa comparação seria pensar em uma conta de adição onde consideramos o primeiro termo distribuir, por meio físico (jornais e revistas, por exemplo) a mensagem ideológica de que consumir ou usar tal produto faz você ficar deste ou daquele jeito (sempre melhor) em um bairro (exemplo de mensagem ideológica). O segundo termo da adição é fazer o mesmo em um bairro vizinho, duplicando-se a influência. A midiação permitiria (e tem permitido) passar desta conta de simples soma a uma conta exponencial onde as possibilidades multiplicativas desta mensagem terão a possibilidade de não conhecer fronteiras, tendo um impacto global muito mais importante.

Tanto aqui como no Japão dois jovens poderão valorizar uma mesma marca, como referida e esta ou aquele atributo pessoal (positivo). Observa ainda Thompson (1995:37) que

52 Cf. Loius Dumont, 1983. O Individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. (Trad.

Brasileira: Ed. Rocco, Rio de Janeiro, 1985).

53 Apresentaremos esta retomada do conceito mais adiante na seção de metodologia.

este tipo de interação, que chama de “ quase-interação mediada” (1998:79) é essencialmente assimétrico, monológica (ibid., p.89), estando o receptor como pólo receptivo, embora não passivo, de mensagens que percorrem então uma via de mão única e são ativamente escolhidas para penetrar o mais profundamente possível na psique receptora (ibid., p.103).

É neste sentido que Thompson (1995) diz que a grande narrativa da transformação cultural54 trouxe intuições importantes, sendo, por outro lado, também enganadora por não ter contemplado o peso do desenvolvimento dos meios de comunicação de massa, através dos quais as “ formas simbólicas mercantilizadas” (ibid., p.21) puderam chegar a número crescente de receptores.

O conceito de midiação, uma das “ transformações-chave” no processo de surgimento das sociedades modernas, se aplicado ao que Polanyi chamou de A Grande Transformação (Polanyi, 1944), passa a nos mostrar como pode ter atuado como um multiplicador das mensagens mercantilizadas ideológicas participando de forma decisiva nos processos de transformação e declínio de valores, tema caro a Adorno e Horkheimer55 (1966) e fetichização da mercadoria de que falam autores como Baudrillard (1995), Castro (1998), Calligaris (1990), dentre outros.

Thompson distinguiu dois modos de valorização das formas simbólicas: o valor simbólico em si, que se relaciona ao apreço que têm por elas tanto as pessoas que as produzem como aquelas que as recebem, e o econômico, que se refere ao valor de mercado que as formas simbólicas assumem ao serem negociadas, algo como a sua liquidez mercadológica, valor de troca. Refere-se a um processo de valoração econômica de formas simbólicas antes “ puras” na sociedade moderna (1995:23).

Em termos weberianos poderíamos dizer que formas simbólicas religiosas puritanas vão sendo substituídas por formas simbólicas capitalistas em sua essência e transformadas em mercadoria, cooptadas nos “ moinhos satânicos” de Polanyi (1944). A forma simbólica religiosa que transmitia a mensagem da criação, manutenção e multiplicação das “ boas obras”

em terra − base da maioria das religiões protestantes nos Estados Unidos − transformava-se em algo de enorme poder e valor de mercado tendo sido definida por Weber (1947) como o coração da Grande Transformação narrada por Polanyi (1944).

Desvelando os processos de funcionamento da midiação, Thompson (1995) identifica a visibilidade como um dos componentes fundamentais das mensagens transmitidas através

54 Refere-se dentro do texto do autor às transformações culturais ligadas ao surgimento das sociedades industriais modernas. O autor explicita que o conceito de ideologia faz parte desta grande narrativa.

55 Inclusive, em etapa posterior, pelas mensagens da eficiente propaganda oficial nazista de Goebbels.

dos meios de comunicação de massa. Tal ferramenta logo foi apropriada também pelos que estão no poder chamado democrático. Política e administração da imagem e da visibilidade andam hoje de mãos dadas. Se de um lado temos as mercadorias em busca de consumidores, do outro lado temos então os políticos que tentam vender sua imagem aos potenciais eleitores e financiadores das campanhas.

De modo análogo, os traficantes preocupam-se em ter também visibilidade, como uma forma de impressionarem os mais jovens tanto para ter respeito como para que os admirem e queiram ser como eles, o que traz uma dupla recompensa: para a própria vaidade e fazendo com que mais jovens interessem-se em trabalhar para eles, o que é bom para o negócio, já que os “ funcionários” costumam durar pouco tempo no serviço, precisando ser continuamente substituídos.

Hodiernamente sabe-se que a ideologia está em todos os lugares, sustentando principalmente as relações de poder assimétricas, de dominação. Neste sentido, podemos ver de um lado mensagens ideológicas imputando na mente das pessoas que o seu próprio sucesso e a sua aceitação pelos pares estariam intimamente ligados à aquisição e uso de certas marcas.

De outro, ideologias de gênero levam frequentemente a posturas onde reafirma-se, por exemplo, que para ser homem é preciso não apenas prover, como exercer a dominação não apenas sobre mulheres, como também sobre outros homens “ mais fracos” ou outros grupos de homens “ mais fracos” . O grande perigo da(s) ideologia(s) é que de tanto ser repetida, massificada, midiada, atuada, transmitida e reproduzida, acaba tornando-se ou mantendo-se socialmente real, tendendo a perpetuar-se. Vejamos então as ideologias ligadas ao gênero.