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V. O CAMPO: MÉTODOS E TÉCNICAS NA APROXIMAÇÃO AO CAMPO

V.2. C ONVERSANDO COM OS JOVENS : APRESENTANDO - ME AO GRUPO

V.2.1. P ONTO DE ANCORAGEM NA INSTITUIÇÃO

Por outro lado, escolhi este grupo de expressão que se reunia uma vez por semana como uma espécie de marca formal de meu pertencimento à instituição naquele momento, comprometendo-me com o mesmo durante o período da pesquisa, com os objetivos de integrar-me à vida institucional, ao seu dia-a-dia e ao mesmo tempo de aproximar-me aos moradores e trabalhadores do lugar. Devo relatar que ao participar deste grupo por vezes sentia-me mais motivado que as próprias técnicas que o conduziam. Tal percepção não representa uma crítica a elas, mas a marcação de um ponto de análise das dificuldades desta instituição e de instituições deste tipo em geral, que lidam com crianças e adolescentes difíceis.

O compromisso com esse grupo marcava um lugar de inserção mais formal na instituição, de modo que não ficaria apenas rondando, conversando aqui e ali, observando enquanto fizesse os grupos e as entrevistas. Todo dia tal em horário tal eu estaria lá procurando contribuir com as tarefas deste grupo que acabou mostrando-se bastante flutuante.

Um dos momentos mais produtivos dele foi o de ponto de partida para a preparação da decoração da festa junina de 2004. Trabalhamos juntos, trocando técnicas para acelerar o trabalho de preparação de bandeirinhas, conseguindo levar adiante um interessante trabalho em conjunto, dividindo bem as tarefas sob um espírito colaborativo.

V.2.2. ENTRADA EM CAMPO: GRUPO DE APRESENTAÇÃO E ACORDO DE REGRAS DE CONVIVÊNCIA:

UM EXEMPLO

Apresentei-me então tentando falar no código deles mesmo, “ mandando um papo reto e direto” , contando a eles que eu estava ali para conhecer melhor eles, ouvir o que eles têm a dizer e que eu ia apresentar-me para eles e que depois gostaria que cada um se apresentasse.

Chamei este tipo de grupo de ‘grupo de apresentação e de acordo sobre regras de convivência’. Contava do meu próprio projeto de investigação até aquele momento, que se ocupava com a possibilidade de jovens com menores redes de apoio e recursos, mais pobres, poderem desenvolver projetos de vida que os deixassem mais realizados, ou que dessem a eles maiores possibilidades de alargar um estreito horizonte de possibilidades dentre as quais se apresentava com força o caminho do tráfico de drogas. Que um passo importante para prosseguir neste projeto era conhecê-los melhor. Considerei que estava sendo sincero ao enfocar esta parte da pesquisa, mais ligada aos resultados, pois trazia o que projeto ofereceria

a eles como contrapartida, mesmo que de forma genérica, podendo vir a beneficiar outros jovens como eles. Eles pareceram entender e concordar.

Uma conversa anterior com uma psicóloga foi bastante importante no sentido de que, com sua longa experiência de campo, pôde passar-me ensinamentos fundamentais: ser bastante sincero, procurar surpreendê-los com algo bastante direto, pois que já não agüentam mais os discursos vazios. Fizeram poucas perguntas, interessando-se, por exemplo, em saber onde exatamente era a FIOCRUZ, se era onde eles imaginavam mesmo, ou se eu estava ganhando para desenvolver aquele trabalho. Respondo prontamente, defendendo o direito deles de perguntarem, já que o menino que perguntou se eu recebia ou não foi logo criticado por outros do grupo e taxado de “ enxerido” .

Em seguida passamos a uma atividade que tinha por objetivo estabelecer uma situação que provocasse a emergência da subjetividade dos membros do grupo, o pesquisador incluído, de uma forma mais organizada. Era a dinâmica da escolha de palavras: preparara anteriormente uma série de folhas de papel com palavras que representam idéias variadas que considerei serem importantes para os jovens82, espalhando estas folhas pelo chão e orientando-os a escolher uma palavra que os interessasse, lhes chamasse a atenção para que pudessem dizer o que ela representava para eles. Se a palavra que quisessem não estivesse lá, haveria folhas em branco para que eles pudessem preparar estas novas palavras não previstas pelo pesquisador.

A palavra escolhida pelo pesquisador foi sempre RESPEITO servindo para apresentar a base do que este queria acordar com o grupo, e que uma vez estabelecido o acordo, seu cumprimento seria exigido por ele. Que ele os respeitaria e que ele esperava então receber o mesmo respeito, bem como que eles respeitassem-se entre si.

O momento seguinte consistia da leitura do TCLE, ou seja, do termo de consentimento livre e esclarecido, para que fosse bem entendido por todos e para que qualquer dúvida pudesse ser prontamente sanada. Neste momento pedia que já assinassem o termo para o futuro grupo focal e ou entrevista. Outro ponto que era apresentado e acordado era referente ao uso do gravador para os encontros seguintes.

82 As palavras escolhidas pelo pesquisador foram: verdade, responsabilidade, esperança, respeito, atividade, confiança, realização, silêncio, fofoca, futuro, mentira, desrespeito, limite, desconfiança, esconder, crescer, mostrar, palavra, bagunça, sendo que uma escrita por uma adolescente e incorporada ao rol de palavras foi

“apaixonada”. Eram palavras que uma vez escolhidas podiam ser tomadas como significantes para estes jovens.

V.2.3. O PRIMEIRO GRUPO; DE APRESENTAÇÃO

Para dar uma visão geral do que foram meus contatos com os jovens, a partir dos grupos de expressão, dos quais participeis por três ou quatro meses, organizei dois grupos de apresentação, dois grupos focais e dez entrevistas, cinco com rapazes e cinco com meninas.

Houve, além destas atividades, livre trânsito pela instituição, conversando informalmente com técnicos, guardas, adolescentes dentre outras pessoas que transitavam pelo local e a observação do dia-a-dia dos adolescentes e da vida da instituição.

Este primeiro grupo foi marcado através da combinação prévia com três adolescentes que tinha conhecido no primeiro grupo de expressão de que participei (Zélia, Elena e Cícero).

Eles queriam saber do que seria o grupo, disse que falaria no próprio grupo. Acabaram aceitando participar.

Chamo, com a ajuda de uma técnica, primeiro estes com quem já tinha combinado.

Uma está deitada e quando me vê se lembra do grupo e vai levantando do colchão onde estava deitada embaixo de cobertas com outros dois adolescentes. Chamo Cícero e Zélia me vê e me cumprimenta, dizendo que está indo. A técnica fala do grupo e pergunta se outros adolescentes têm interesse. Todos querem saber do que se trata. Digo que vou falar no grupo.

Acabam chegando sete adolescentes. Depois chega mais um que vai sentando sem se dirigir a mim (é um dos que leva um pilot e depois se envolve em evasão e roubo).

Abaixo está qual palavra cada adolescente escolheu na dinâmica com palavras e informações sobre o paradeiro (quando conhecido, em junho de 2005) dos jovens. Estão destacados em negrito os que foram entrevistados individualmente depois e que tiveram suas entrevistas utilizadas neste trabalho (cinco meninas foram entrevistadas mas este material não foi usado agora):

Zélia – 14 (atividade),

Elena – 16 (desconfiança) – Começou um firme namoro com um dos adolescentes do grupo e estavam morando com a mãe dela, de quem esteve muito afastada. Houve relato de agressões do namorado contra ela.

Cícero – 16 (não lembro) – voltou para a cidade do interior em outro Estado de onde tinha saído para tentar a sorte na cidade grande,

Otávio – 14 (presente e futuro) – segundo relato de um dos adolescentes (que não sabemos se é verdadeiro) pode ter sido morto por ter ‘x-novado’ uma situação de rebelião que ia ocorrer, mas teria sido denunciada por ele.

Vagner – 17 (responsabilidade) – evadiu da instituição,

Natalia – 17 (confiança) – procurava estabelecer-se trabalhando como manicure. Reencontrou parte de sua família. Estava grávida e afirmava que o pai era um educador do abrigo.

Wellington – 16 (respeito) – envolveu-se em um namoro que parece estável, e ao final acabou fazendo diferente do que pretendia e envolveu-se em brigas sendo transferido desta instituição. Foi morar com a namorada. Estava progredindo em um curso de desenho e pintura, tendo sido promovido a monitor. Fomos informados que às vezes caminha(va) longas distâncias de um curso para outro por não ter dinheiro para passagem. A parte negativa refere-se à informação de ter agredido a namorada. Mantém uma ligação com pessoas que foram realmente referência para ele no abrigo, principalmente por telefone.

Vitor - 17 (não escolheu palavra nenhuma) saiu da instituição para outra seguindo o fluxo natural de saída deste sistema de atendimento. Esta outra instituição é considerada porta de saída do sistema e seria para preparar o jovem para esta importante transição. Fui informado informalmente de que foi “ adotado” por uma mulher. Não se sabe, porém, as condições desta

“ adoção” , já que ele já era maior de idade.

A seguir apresentaremos apenas os momentos que consideramos mais importantes no grupo para nossa pesquisa, em especial aqueles em que aparece referência espontânea ao tema do tráfico de drogas. Não obstante o desenho geral deste grupo mostrou-se bastante interessante e rico, de forma que o reproduzimos seu relato integral como o anexo 1.

Zélia foi a terceira a falar sobre a palavra escolhida. Falou sobre “ atividade” : gosta muito de estar sempre em atividade, que esta palavra a faz pensar em esportes, em muitas atividades que gosta também de fazer, como desenhar (...). Wellington interrompe-a e explica como atividade serve para outros entendimentos também, como ficar na atividade é ficar tomando conta de uma coisa ou de olho em alguma pessoa, ficar na atividade na boca, e qualquer coisa soltar os fogos para avisar.

Vagner quis escrever uma palavra que queria escolher, mas não estava entre as que foram preparadas. Ele mesmo então escreve “ responsabilidade” . Diz que tem que ter responsabilidade pelo que se faz, que qualquer coisa que você vai fazer tem que ter responsabilidade. Desenha abaixo da palavra um fuzil com uma bala saindo pelo cano, completando a palavra responsabilidade com o texto “ pelo teu” , ficando a idéia

“ responsabilidade pelo teu” . A alusão a questões do tráfico pareceu de novo bastante clara.

Responsabilidade pelo teu posto, por portar uma arma de guerra como o fuzil desenhado.

Responsabilidade diante dos superiores para sobreviver neste ambiente.

Depois de Natália, vem Otávio, que já havia comentado o que ele tinha escrito:

presente e futuro. Ficou um pouco impaciente pela demora para chegar a sua vez83. Antes já tinha discutido com outro adolescente que tinha colocado uma cadeira ocupando o lugar da sua. Esta fala foi bem interessante e clara. O adolescente disse que tem duas coisas que quer ou que pode fazer. Que a primeira é de estudar, se formar e ser professor de biologia, ou então advogado, ganhar muito dinheiro e ter carros legais84... Por outro lado, diz que se isso não desse certo, ele iria pedir trabalho em uma boca, que iriam dar uma arma para ele e ele iria se juntar aos colegas, virar traficante, ganhar muito dinheiro, comprar tudo aquilo que ele queria, juntar-se aos amigos do CV, e tomar os morros que estão sob poder do Terceiro Comando, que mandaria muito tiro para cima deles, dos alemão (inimigos de algum comando ou facção rival).

Wellington fez algum gracejo e Otávio respondeu que quando ele estiver cheio da grana em um carrão, encontraria Wellington no sinal vendendo bala, e daria então cinco reais para o colega85. Perguntei a Otávio se ele achava que estava fazendo algo para conseguir concretizar o caminho que estava a escolher, o primeiro caminho, mas ele não respondeu.

Digo ao fim do grupo como seriam as coisas entre nós, que teríamos mais um grupo e depois entrevistas individuais, que queria combinar naquele momento a participação deles nas entrevistas individuais comigo. Todos concordam. Disse que não conseguira lembrar o que todos diriam e precisaria então usar um gravador, e que estas gravações só seriam ouvidas por mim e que depois quando fosse escrever os nomes seriam trocados de modo que ninguém pudesse ser identificado. Reforcei que entendia que o segredo era fundamental e que nada do que falassem para mim seria contado para ninguém, que podiam contar com minha palavra em relação a isso.

Acrescentei que não era funcionário da instituição onde estão, de modo que não poderia ser pressionado a contar algo da vida deles para técnicos e direção da casa. Reforcei que era pesquisador independente, da FIOCRUZ. Que queria construir nossa relação em cima do que falaram e que falei junto com eles, que eles já deviam ter vivido em suas vidas muitas

83 Esta parece ser a sua característica – não poder esperar. Tanto que logo a seguir evadiu da casa, participou de um roubo com outro adolescente, sendo preso e acusado logo a seguir de ter delatado um plano de fuga, como citado anteriormente. Informaram que pode ter sido assassinado. Não esperou para ver se o primeiro caminho, citado por ele mesmo podia dar certo. Pulou imediatamente para a segunda alternativa.

84 Provavelmente é por isso perguntava se eu, um cara que ele provavelmente considerava com muito estudo, estava ganhando para fazer aquele trabalho.

85 Este é um tipo de insulto que parece ser comum entre traficantes: por ocasião da invasão da Rocinha por uma facção no início de 2004, em conversas gravadas pela polícia entre traficantes um de uma facção começa a insultar o outro dizendo que vai mandar muito tiro para cima dele e, o que parece ser o maior ultraje, que ele vai perder o emprego (no tráfico) e vai passar fome, ter que ficar vendendo bala no sinal. Chama a atenção o fato de o jovem de 14 anos dirigir de forma irônica a mesma ofensa ao colega.

situações de desrespeito e não queria a repetição disso no grupo, devendo respeitar então o colega e me respeitar também, que eu iria respeitá-los e confiar neles. Ao final do grupo alguns saíram logo, enquanto alguns ainda demoram um pouco. Apenas Cícero ficou mais tempo e mostrou-me que dois deles levaram os pilot. Fui atrás e recuperei os dois pilot que faltavam.

Tive que desmarcar o encontro que tinha marcado para terça por estar gripado e sem voz86. Pedi que fossem todos avisados do meu impedimento, e informados da transferência do grupo para o dia seguinte. Na verdade, depois vi que isso não era o mais correto já que não deviam ser informados unilateralmente sobre uma transferência, mas consultados sobre sua disponibilidade para o dia seguinte. Resultado: no dia seguinte eu cheguei lá para fazer o grupo e eram eles que não podiam por motivos os mais diversos. Para mim era uma retaliação inconsciente e grupal ao fato de eu ter desmarcado no dia anterior e remarcado sem consultá-los. Uma estava deitada, afirmando estar com cólicas, outro lavava roupa enquanto um terceiro estava fazendo as unhas. Entendi o que estava se passando e remarquei para o dia seguinte de novo, quando enfim fizemos o grupo acontecer. Estávamos quites.

Conquistando a confiança:

Aos poucos, sentia que íamos confiando mais um no outro. Percebia que é uma troca e que para que confiem em mim, era preciso primeiro que eu confiasse neles. São pequenos sinais, a forma como olham, a forma como cumprimentam, o que perguntam, dentre vários outros pequenos sinais.

Houve, porém, uma marca neste processo, que apontava para uma real inclusão no grupo: em uma conversa no alojamento, estava com Elena ao lado do beliche quando chegou uma garota nova no abrigo dizendo que não sei quem estorou a boa e comprou uma casa com tudo dentro, não sei quantos mil reais... Eu estava junto conversando antes com Elena e mais alguém. Perguntei então o que é estourar a boa e esta menina nova me excluiu grosseiramente do assunto dizendo: - qual é a do cara, aí? Querendo saber demais...

Neste momento, sem que eu esperasse algo do gênero vem a resposta de Elena a ela:

- Nada a ver. Ele fecha com nós tia. Tamo conversando altas histórias com ele.

E diante disso a garota nova fica surpreendida, tanto quanto eu, ao perceber o grau de inclusão no grupo. Depois fico sabendo que estourar a boa é ser bem sucedido em um roubo e ficar com bastante dinheiro.

86 O que como psicanalista é algo para refletir: quando finalmente eles falam, eu fico sem voz.