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VI. DESCRICAO DOS DADOS E ALGUMAS PONTUAÇÕES

VI.3. A DOLESCÊNCIA

VI.3.1. F AMÍLIAS QUE NÃO CONTÉM : A S AÍDA DE CASA

(...) eu estava brincando e ele (padrasto) ia atrás de mim para bater em mim, me deixava em casa de castigo, me batia com sapato também, aí trancava e escondia a chave debaixo da caixa, aí teve uma vez que eu pedi a um vizinho para pegar a chave lá na caixa, abri a porta, peguei um cobertor, e fui embora.

Ronaldo

E assim mais uma criança está “ na pista142” . Dos cinco adolescentes, quatro deles saíram de suas casas por briga ou incompatibilidade com seus responsáveis. Sentindo-se presos demais nas casas, tais conflitos foram acirrados pelo ativo envolvimento dos jovens no tráfico de drogas e por problemas com traficantes e/ou polícia que passaram a impedi-los de voltar a suas casas. De modo inverso, em sentidos que acabam convergindo, muitas vezes os conflitos familiares (ligados a outros assuntos, anteriores a discussões ligadas ao tráfico) acabaram contribuindo para o aprofundamento dos vínculos dos jovens com pares já envolvidos, assim como com traficantes mais importantes. Um exemplo deste movimento ocorreu com o adolescente Vitor (ver p.128, trecho grifado).

O principal motivo para a saída de Theo de sua casa foi seu envolvimento no tráfico de drogas. Seus responsáveis, ao saberem, reprovaram sua atitude:

Fui ‘plantá’ lá, aí minha avó ficou sabendo, meus tio ficou sabendo [o que é ‘plantar’?]

‘Plantá’ na boca, ‘formar’ com os cara lá. (Mais adiante ao contar sua primeira ação significativa no tráfico, ele continua:) aí fui pra dentro do quintal foi quando eu bati de frente com meu tio, pô cara, na hora que eu bati de frente com meu tio, meu coração acelerou, (...) aí dei uma olhada assim pro meu tio, aí meu tio olhando pra mim, aí eu peguei e fugi de novo (...).

Theo

142 Gíria dos adolescentes. Significa estar na rua, fora de casa, por conta própria.

No momento em que foi realizada a entrevista ele disse que não podia voltar para casa porque estava tendo guerra143 no lugar onde morava.

Diogo passou por um processo gradativo de saída de casa. Foram pelo menos duas saídas com contornos mais claramente demarcados: primeiro saiu da casa da mãe que o prendia demais (ver falas de Diogo, p.118, grifado) indo morar com um tio. Este tio morreu (ele acha que foi de tuberculose) algum tempo depois. Como era visto perto de traficantes, passou a sofrer perseguição policial, sendo submetido a torturas para revelar informações sobre o tráfico local, optando por refugiar-se em um abrigo, como relatou:

(...) além do mais, pôxa eu, trabalhador mesmo, chegava à noite só pra dormir mesmo guardar minhas coisas pra de manhã voltar pra pista. Tava ficando muito ruim pra mim, a polícia tava invadindo, tava me esculachando, pô tio, chegaram até a me torturar. Já, tio, pegaram o cinto pra fazer de forca, botaram saco plástico na minha cabeça pra me enforcar, pra eu dá144 os outros. ‘Vô dá quem?’ Não sei quem, mas se soubesse também não ia dar que não sou maluco... (...)

Diogo

Wellington acabou saindo cedo de casa pelos motivos que já conhecemos para ficar sob o jugo do tráfico, um padrasto ainda mais terrível que seu pai. Isso acabou por tornar esta decisão um passo difícil de ser revertido: logo passou a ter problemas com a polícia e com traficantes rivais, que chegaram a ameaçar seu pai e bateram em seu irmão:

(...) expliquei minha situação que eu não podia voltar para casa, e acabei vindo pra cá. [Por que você não podia voltar para casa?] Eu tive problema com os polícia lá da área dos traficantes rivais lá onde que eu morava, invadiram minha casa já duas vezes (...) meu pai foi ameaçado de morte por causa de mim, meu irmão apanhou (da polícia) (...).

Wellington

A saída de casa de Vitor mostrou claramente a profunda interação entre diversos elementos. Vimos anteriormente que houve uma discussão com a tia e com o filho da tia em função dele não estar trabalhando. Um dado material real foi a falta de espaço na casa com o

143 Gíria usada entre os traficantes, normalmente para designar disputa entre traficantes pelo domínio de pontos de venda em um morro, ou brigas por desentendimentos com policiais. Dificilmente ocorre guerra entre policiais e traficantes como mera e permanente repressão ao tráfico de drogas, com o objetivo de restabelecimento do estado de direito nas favelas dominadas pelos comandos.

144 Gíria. ‘Dar’ significa delatar neste contexto.

casamento do filho dela145 e a adoção por ela de uma criança. E o que parece ter contribuído de forma mais definitiva foi a confirmação por sua tia de criação de que ele estava envolvido no tráfico de drogas. Neste momento ela encaminhou-o ao Conselho Tutelar. Embora o seu relato tenha sido hesitante em relação a isso, pareceu-nos que tudo foi acontecendo simultaneamente, a expulsão de casa contribuindo para aprofundar seu envolvimento no tráfico:

(...) aí eu fui se envolvendo, a minha parte de criança, eu já não fazia mais. Comecei a tomar outras atitudes e foi aí que... Essa tia de criação também não pôde mais ficar comigo, aí foi que eu comecei a me envolver com as coisas erradas, conviver com... Conviver com pessoas que não... Que não era pra mim ter me envolvido, aí foi acontecendo e (...).

Vitor

Ronaldo é o único cuja saída de casa não esteve ligada ao envolvimento ativo com o tráfico de drogas, embora ele e outras crianças ajudassem informalmente avisando sobre a chegada da polícia e coisas do gênero, o que parecia ser uma espécie de brincadeira para as crianças. Não saiu devido a envolvimento com o tráfico, mas ficou igualmente impedido de voltar a casa por ter sofrido uma sanção do tráfico local que “ escravizou-o” por uma semana até que conseguiu escapar deste segundo padrasto. Como podemos ver nas suas palavras (p.126 – epígrafe de VI.3.1) saiu de casa por não suportar os maus tratos e a discriminação infligidos pelo padrasto:

[E como era lá na sua casa?] pagava aluguel, meu padrasto ficava batendo na minha mãe. [?]

Ele batia na minha mãe e ele também me batia. [Foi aí que você saiu de casa? Com quantos anos você saiu de casa?] Eu saí de casa não foi uma vez assim direto não... [Saiu várias vezes?] Saí várias vezes, mas antes eu saía de casa e voltava, (...) e agora eu não posso voltar mais.

Ronaldo e entrevistador

Percebemos então a estreita ligação entre alguns elementos e momentos da vida dos jovens: a existência ou não de liberdade em casa, a saída de casa, e a entrada para o tráfico, havendo significativa continuidade entre eles.

Destacamos a tentativa desesperada da tia de Vitor de inserir um novo “ tutor”

institucional, durante o processo de saída de casa deste jovem, o Conselho Tutelar, sem

145 Fenômeno típico de populações mais pobres: com os casamentos, muitas vezes ao invés de haver a formação de novas habitações com o novo casal, este se instala, por falta de recursos, na casa de uma das famílias de origem.

conseguir grandes resultados. Embora saibamos das sérias e importantíssimas atribuições destes conselhos, deparamos frequentemente com muitas limitações em sua capacidade de atuar nestes momentos decisivos.

Outro ponto que merecedor de nota refere-se as casas em si. Reparamos que de todos os adolescentes que eram controlados pelos seus responsáveis, com horários de retorno e algumas proibições, sendo mantidos em casa em algumas situações, o único que realmente disse gostar de ficar em casa foi Theo. E em oposição a Vitor, que viu o espaço da casa ficar pequeno demais para ele, a esposa do filho de sua tia, e a nova criança, Theo tinha a sua disposição um grande quintal. Nos parece relevante pontuar que prender um adolescente em um espaço bastante limitado e com poucos recursos é bem mais complicado que prendê-lo em uma casa grande com um grande quintal e maiores possibilidades, ou mesmo uma casa simples, mas com um quintal grande, como era o caso de Theo. De modo que volta a apresentar-se na questão do espaço da casa a o eixo material influindo na vida dos jovens.