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VI. DESCRICAO DOS DADOS E ALGUMAS PONTUAÇÕES

VI.5. I DENTIFICAÇÕES

VI.5.1. D O PAI

(...) que ele olhou pra mim, aí mandou me levar até ele, aí me deu um beijo no rosto, aí me tirô, que minha tia não queria mais que eu ficasse ali, aí na hora que ele começou a falar mandou me chamar de novo, mandou me trazer de novo perto dele, foi na hora que, foi até na hora que ele falou, falando olhando pra mim: ‘eu tô parando aqui, mas quem vai terminar isso tudo, quem vai continuar é meu filho’ aí minha avó até falou que na hora que ele falou isso, que os polícia que tava perto começou a olhar pra minha cara, começou a olhar pro meu rosto, agora pra que eu não sei, começou a olhar pra minha cara.178

178 Esta passagem foi relatada para Theo por sua avó, que mesmo considerando que isso seria ruim para ele, não se furtou de passar a última mensagem do pai ao filho.

Theo

Esta foi a última mensagem do pai de Theo ao filho. Ele morreu em seguida. A situação foi narrada para Theo por sua avó, já que ele era um bebê de colo na época e aconteceu logo depois de o pai de Theo ser baleado pela polícia. No momento da comunicação ao filho seu pai agonizava no chão, mortalmente atingido.

Nenhum dos jovens disse ver seus pais como modelo. O pai de Vitor não mantinha contato desde que ele foi levado pela mãe para o orfanato havia 13 anos, sendo forte a hipótese dele ter falecido. O pai de Diogo estava em um asilo sofrendo de problemas decorrentes de alcoolismo, enquanto o pai de Ronaldo nem chegou a saber que ele era seu filho. Theo, como vimos acima, teve o pai morto pela polícia, quando era recém-nascido.

O que ficou para Vitor em relação ao seu pai é um sentimento de falta: “É, eu acho que também ele faz uma falta, sim. Eu sinto falta, às vezes eu sinto falta, às vezes eu não compreendo muito que ele teve motivos...” . Somava-se a isso a lembrança de um pai decaído.

Seu relato mostrou que ele batia na mãe, foi negligente com os filhos, era beberrão e mulherengo. Teve contato com o pai até os quatro anos, sendo os conflitos do casal e posterior negligência do pai, como já vimos, os principais motivo para terem ido os filhos para o orfanato. Neste local acabou encontrando na diretora uma figura que elegeu como sua nova família, colocando-a, também no lugar de pai, como vimos em suas declarações anteriores, quando disse, por exemplo, que a tia serve como pai e ao mesmo tempo como mãe.

Apesar de tudo que sabe e disse sobre o pai. Acredita que não se pode criticá-lo, já que foi ele que o colocou no mundo, fazendo coro com as idéias de Wellington a serem ainda apresentadas.

Diogo, cujo pai encontrava-se no momento da entrevista em um asilo por apresentar complicações irreversíveis de saúde devidas a vários anos de consumo de álcool e outras drogas, pareceu ter se obrigado a brincar com este assunto, tão grave e tão importante.

Brincou dizendo, rindo, que se o pai fosse modelo para ele, ele seria hoje um grande cachaceiro:

É né? Se eu seguisse o exemplo do meu pai eu ia ser um cachaceiro de primeira (...) que meu pai só entornava, meu pai... Meu pai já foi bicho solto também, meu pai já foi bandido (...) só que pô, tipo assim, ele era o tipo de bandido que não ficava lá na favela pá o tempo todo não, só ia lá, tirava os plantão, pá, ficava lá, sabe como? Se tivesse que trocar tiro trocava, mas depois ia pra casa, ele era aquele cara que morava na pista e subia a favela. Esse era o meu pai, só que, pôxa, (...)

Diogo

Mesmo mostrando-se atento e com um viés crítico em relação aos defeitos do pai e a necessidade de não imitá-lo, Diogo, apesar de não saber, valorizava algumas características deste mesmo pai, quando diz, por exemplo, que o pai era “ bicho solto” , ou ao dizer que o pai era um bandido diferente.

Identificava-se com o pai e o repetia inconscientemente, usando drogas e tornando-se ele mesmo também um bandido. A agressão que viria a sofrer da polícia o sacudiu de tal forma que encontrou uma chance de buscar outro caminho. Embora arbitrária e podendo ter matado o jovem, a agressão policial acabou podendo ser significada pelo jovem como um limite. E representando uma chance de sair da trilha do pai.

Não apenas o pai de Diogo faltou ao filho como modelo e como pai, mas também vimos que retirava coisas da casa e do filho em seus momentos de crise de abstinência em que trocava qualquer coisa por droga, inclusive itens da alimentação do próprio filho, não correspondendo, assim, ao que Diogo considerava ser pai:

[O que significa pai para você?]

- Pôxa, companheiro, amigo, tá ligado, tipo assim, que saiba chegar pra desenrolar contigo, ombro amigo pro sujeito se consolar, é o famoso braço direito né? Fiel179, pra mim pai é isso.

Até Theo falar sobre seu pai, até conseguir falar, por exemplo, que não o considerava como modelo, o entrevistador teve que repetir a pergunta. Respondeu mostrando que queria ser um pai diferente do que teve: (...) que não é essa vida que quero para o meu filho, pra mim também, e como minha avó falou que falou que o que perturba minha mente mesmo, é esse negócio aí, parece que sei lá, fica atentando, me atentando meu corpo, sei lá... Esse negócio aí era o vaticínio que o pai lançou em relação ao futuro do filho, que o teria marcado, atentando-o pelo resto da vida, como marca, inscrição mesmo.

Disse ainda, quando o entrevistador perguntou a idade do pai, que ele não buscava saber nada da vida do pai: “ (...) a história do meu pai eu não busco. A única coisa que eu sei do meu pai é que ele foi da vida do crime que ele falou isso que foi minha avó que falou” . E terminou de modo coerente esta parte da entrevista ao responder sobre o que significava pai para ele. É algo do que não quer saber:

[O que significa pai para você?]

179 Gíria dos jovens usada para designar aquele em que se pode confiar sem medo, quase sinônimo de braço-direito.

Pô... Sei lá.

Respondendo à mesma pergunta Ronaldo disse que pai não significa nada para ele, já que nunca teve pai180:

Wellington, apesar de também ter dito que o pai não é modelo para ele, disse também – como Vitor – que não podia dizer que não gostava do pai, já que existia por causa dele, mas não concordava com o pai, não gostava de sua atitude:

Huumm, tipo uummmm, tipo um cara que era pra como? Tipo tu se exemplar nele, né? Ter o exemplo dele, mas é coisa que tu não pode ter, que é como eu falei, todo mundo é diferente, ninguém é igual, então tu não tem como... Então pai como se fosse uma pessoa que era pra te dar exemplo, mas se ele não te der exemplo, né? Aí você não pode falar nada. Ele te dando o exemplo você faz errado e você ainda vai falar: ‘pô, é meu pai, pá’. Mas pai é uma pessoa muito importante também, né? Que se não fosse meu pai eu não ia tá no mundo. Não vou falar que eu não gosto dele, mas eu não gosto é da atitude que ele vem passar pra mim, do exemplo que ele vem passar pra mim, não acho certo.

Wellington (grifos nossos)

Havia relatado que o pai era usuário de drogas, que fumava, cheirava, sendo cliente conhecido na boca. Segundo o filho, nunca deu uma festa de aniversário para ele.

Ronaldo também respondeu que o pai não era modelo para ele. Que seu pai é como um enfeite. Existe, mas não para ficar com ele, conversar com ele.

VI.5.2. AAVÓ E O TRAFICANTE

Ah, às vezes até os colegas, eu olho assim: ‘Pô, eu quero ser que nem eles e tal’; como teve colegas também que já passaram pelo Abrigo e hoje em dia têm a casa deles, têm a família, têm os filhos deles. Eles trabalham; eu olho assim, eu vejo: ‘Pô, eu quero ser que nem eles’, entendeu? Quando já eu tiver mais velho, tiver mais idade: ‘Pô, eu quero ser que nem eles, quero seguir o mesmo exemplo que eles seguiu’, entendeu? Mais experiência porque nós sabe (...) o que ele

180 Ver p.104, trecho grifado.

passou, hoje em dia ele superou isso e tá vivendo a vida dele, trabalhando, anda de cabeça erguida, dignidade, tocando a bola pra frente.

Vitor

Mesmo procurando evitar posições maniqueístas, não podemos negar que caminhar sobre a tênue fronteira entre estar envolvido ou não significa ser afetado por identificações

“ do bem” , que atraem para o rumo descrito pelos jovens como o caminho do estudo, do trabalho honesto, e, pelo outro lado, pelas imagens, figuras, pessoas e grupos que se apresentam de forma recorrente sustentando e alimentando identificações que conduzem a caminho oposto, conforme um dos adolescentes contou quando o entrevistador perguntou se ele teve pessoas que foram modelo para ele no caminho “ ruim” :

Já, também teve; várias vezes quando eu ia pra baile funk, eu olhava assim: ‘ Pô, queria ser que nem eles’. [O que que te impressionava?] Ah, objetos, cordão, mulheres, meninas; olhava assim: ‘Queria ser que nem eles’ aí depois eu vi que nem tudo era o dinheiro, nem tudo era mulher, nem tudo era o ouro. [E esses caras eram caras envolvidos?] Eram envolvidos.

Vitor (grifos nossos)

Vitor falou s seguir sobre como o tráfico estava espalhado na favela, dizendo que em

“ todo canto” tinha atividade. O entrevistador perguntou então sobre como isso influenciava a vida das pessoas na favela:

Eu acho que isso influencia muito a mente das pessoas. [Então, isso que eu vou te perguntar, assim...] (Vitor interrompe o entrevistador) Influencia a mente das pessoas, porque só de tá ele passando ali, você vê que o cara: Pô, eu quero ser que nem aquele cara ali um dia, quero portar as mesma arma que ele porta, quero pegar as mulheres que ele panha, pô, quero ter aquilo também, que ninguém vai mexer comigo, eu vou poder bater nos outros à vontade que ninguém ... [Hum, tipo assim: a mesma coisa que você falou do baile, na situação do dia-a-dia ali, tem a mesma situação do cara, dos garotos ficarem impressionados, quererem, elegerem o cara como...] (Ele fala junto e fica inaudível. Está ansioso para falar) Se o cara vê, você vê uma pessoa do tráfico circulando armado, tá te influenciando, tá te influenciando, ele vai passar, tu vai falar: ‘Pô, manero, também quero aquilo ali também’.

Vitor e entrevistador (grifos nossos)

Depois do último roubo em que foi pego depois pela polícia, Vitor revoltou-se ainda mais: encabeçaria uma fuga, uma rebelião, que acabou não indo adiante. Depois disso parece ter passado por uma mudança interna, o seu desejo de participar desta entrevista fazendo parte desta mudança. Elaborava naquele momento planos completamente diferentes para si mesmo que incluíam, depois que estivesse encaminhado (para o lado “ bom” ), servir de exemplo para outros meninos, como alguns serviram de exemplo para ele ao longo de sua vida. Servir de exemplo com seu percurso, contribuindo para que outros jovens desistam da idéia de ficar na vida do crime: “Ah, eu imagino que eu sirva de exemplo para os que ficam aqui dentro; que um dia eu possa chegar aqui e falar pra eles: ‘Pô, fui que nem vocês’; trabalhando, ter meu filho, ter minha mulher, ter a minha casa...” 181.

Dois dos jovens entrevistados, ao falarem de figuras que os impressionaram, pontuaram a existência tanto das que atraem para um lado, como aquelas que atraem para o outro: umas, como os traficantes, com suas insígnias – roupas de marcas, cordões de ouro, fuzis e mulheres – para o caminho do crime e do tráfico e outras figuras, como as avós citadas, ou como garotos de um abrigo que conseguiram construir uma vida nova dentro da lei. Vitor e Diogo, por exemplo, descreveram a influência de ambos os tipos de figuras sobre eles. Já Theo e Wellington falaram de suas avós como referências marcantes para eles. Diogo mencionou, como outras referências importantes, um primo seu e um rapaz de sua comunidade que catava latinhas sem nunca ter se envolvido no tráfico.

O relato de Theo mostrou que ele tinha como figura importante para ele um tio que o ajudava com os deveres da escola, jogava futebol e brincava como se fosse ainda criança.

Porém, quando perguntado especificamente sobre figuras de referência, não o mencionou.

Ronaldo respondeu negativamente a quase todas as perguntas que levantavam informações sobre pessoas importantes para ele. Esta reticência, e silêncio, os vemos ligados ao fato de ter tipo poucas figuras de referência confiáveis em sua vida. Não pensar nisso também é uma forma de afastar-se da dor aí envolvida. A exceção foi a referência à sua segunda mãe de criação que mencionou como pessoa muito importante para ele.

Em relação ao jogo identificatório, percebemos a existência de ambivalência nos jovens em relação ao reconhecimento – ao à assunção deste – de modelos. Exemplo disso foi proporcionado por Diogo que quando mais novo, via os caras do tráfico e pensava que queria ser como eles, mas disse, em outro momento da entrevista, que seguir o modelo de outra pessoa não era coisa de “ sujeito homem” . Ser como os caras do tráfico pressupunha

181 Excerto completo na p.273, epígrafe de VI.8.4.

personalidade forte, o que acabava instaurando uma contradição no jovem, que seria superada apenas ao passar pelos três momentos descritos na subseção VI.7.4.

De modo semelhante, Theo182 afirmou não ter seguido ninguém para entrar no tráfico, e que teria feito este movimento apenas para vingar o primo que havia sido executado pela polícia. No entanto, disse em outro momento da entrevista que já estava “andando direto”

com o primo. Estava aprendendo a andar de moto, a dirigir e roubar carro e a atirar, e que “ia entrar de qualquer jeito” , ficando clara a influência do primo sobre ele. Outra característica deste primo que impressionava Theo e que fortalece a idéia de sua identificação a ele era a facilidade que o primo tinha com as mulheres, tamanha a quantidade de mulheres que o primo

“ pegava” : (...) meu primo... Era muita mulher que ele panhava cara e o trouxa aqui (refere-se a si próprio) sempre falando: ‘joga uma na fita (apresentar, passar uma das mulheres), joga uma na fita’ ... Jogava nada.

Wellington citou a tia do seu colega, que ia adotá-lo, e a sua avó como pessoas que o marcaram de forma positiva. Afirmou não ter entrado para o tráfico por causa de alguém especificamente. Sabemos, porém, que ele andava com os caras da boca desde muito novo, acabando por repetir o comportamento do pai: “ele ia muito lá ” .

Procurando adentrar o jogo de identificações que cada adolescente tem vivido, voltamos nossos olhos para Diogo, que trouxe elementos de extrema importância em seu relato. Importantes por representarem um olhar perspicaz à realidade que o cerca, penetrando a casca da primeira opacidade. Elementos oriundos das reflexões e indagações do próprio adolescente que vive esta realidade:

Aí fica a criança crescendo sem o pai, a mulher sem o marido, pá, pô tio, sabe o que acontece? [O que acontece?] Agora vê: a criança cresce sem o pai ali na comunidade, aí pá, a criança. Pô tio, lá no morro mesmo cê já vê: a criança tipo assim com seis anos, sete, é muito pequeno, mas sabe como é a criança, a criança quer sempre seguir o adulto né?...

Dessa forma Diogo introduziu um dos trechos mais marcantes dentre todas as entrevistas quando descreveu de forma precisa um ciclo vicioso observado no tráfico de drogas onde a morte de traficantes e a oferta constante de mão-de-obra para o tráfico podem passar a ser vistos de forma complementar, mesmo que pareça paradoxal.

182 Quando perguntamos a Theo se alguém o havia influenciado na entrada para o tráfico, ele lembrou de um tio seu que estava em vias de entrar para o tráfico. A associação feita a seguir por ele nos levou a pensar que ele é que se sentia, naquele momento, exercendo influência sobre outros, servindo de modelo. Sua avó e sua tia pediram sua ajuda para que não deixasse um primo entrar de fato para a boca.

Referia-se ao bandido que morre depois de ter vários filhos com várias mulheres, situação observada por ele e comprovada pela literatura específica. O filho, como ele disse acima, cresce então sem pai e muitas vezes quer ser como ele, que muitas vezes fica como incógnita na narrativa sobre a origem da criança. A criança ou o adolescente acabaria então repetindo a história do pai num movimento interminável, que se auto-alimenta, que será continuado pelo seu filho, pelo neto:

(...) se o pai é o maior bandidão, maior traficante, (...) ‘vou ser igual a meu pai, vou ser traficante!’, sabe como é que é né a criança vai crescendo vendo aquilo, ainda por cima sem o pai, que morreu também na vida do crime (...) aí ele pode também daqui em diante arrumar outra mulher, constituir vários filhos e também acabar morrendo igual à situação do pai dele... 183

Diogo

Ele mesmo já passou por este processo como relatou abaixo. No momento da entrevista já pôde apresentar uma visão crítica sobre este período de sua vida, diferente de quando ficava também muito impressionado184: “ (...) ‘Pô, o cara anda com aquilo ali (fuzil) e ninguém fala nada!’. Ficava naquela: ‘caraca, o cara é sinistro, pô!’, mas nunca a ponto de:

‘quando crescer, quero ser igual a ele’.”

Para ele quando o cara se espelha em outra pessoa o cara não tem caráter: “ (...) não é sujeito homem. O cara é ele mesmo, é ele ou não é né tio? Não precisa se espelhar em outra pessoa.

E esse outro vai te fuder se você não correr atrás. Vai te fuder. Se for para se dar bem ele vai te fuder.”

Ele alegrou-se por ter conseguido fugir parcialmente da identificação com seu pai bandido e cachaceiro, chegando a ser bandido como ele, mas não alcoolista. Diogo mostra que não existem apenas as figuras de identificação que atraiam para o caminho do crime. Existem também os modelos positivos:

Lá no (Morro do) Parador tem um muleque assim que é chamado de Júlio. Me amarro nesse moleque pra caramba. O moleque, tá ligado? É cria do morro, nasceu no morro, foi criado, viu vários donos morreram. Vários donos vindo e morrendo, vindo e morrendo e o moleque, pô, o moleque nunca, o moleque nunca procurou o caminho do tráfico, pô, vira e mexe eu vou lá no morro e vejo o moleque catando latinha, catando ferro, várias paradas, pra vender, à

183 Optamos por reproduzir novamente este trecho pela sua importância e para facilitar o acesso ao leitor. O texto integral encontra-se como epígrafe da subseção VI.1.2, p96.

184 Os diferentes momentos de relacionamento do jovem com o apelo do tráfico serão aprofundados na subseção VI.7.4.

noite também vendendo refrigerante no baile, pá, mas o moleque aí. Outro também pra me espelhar é esse moleque aí, o moleque nunca foi pelo tráfico, tá ligado, o moleque, pô, mente forte. Não vai pro tráfico.

Diogo

Outra pessoa que apareceu como figura positiva para ele foi o primo que definiu como sendo responsa185, maneiro, tem cabeça, sabe chegar “ nos” lugares sem criar atrito: “não é que nem um espelho que eu quero ser igual a ele, mas ele é responsa” .

Em relação ao seu tio, Theo disse que seu tio fazia com ele todas as atividades de que gostava: “Até hoje eu não esqueço. Ele pegava de 7h da manhã até meio dia, até a hora da escola ficava estudando com ele lá, me deu um apoio que me ajudou muito (...)” . Mais adiante o jovem voltou a falar do tio, descrevendo-o em uma imagem bastante específica e nítida para o jovem. Nós a percebemos como uma imagem importante na sustentação da identificação ao tio: “ (...) meu sonho era servir no quartel. Ficar lá que nem meu tio, que eu sempre via meu tio vindo do quartel, da Marinha. Meu tio serviu no quartel na Marinha! Até hoje tem uniforme da Marinha do quartel que ele fez”.

Mais para o fim da entrevista voltou a mencionar o tio, dizendo, agora em relação a outro aspecto, do quanto gostaria de fazer as mesmas coisas que ele:

Daqui a pouco vou ter 18 anos e só vou parar mesmo de brincar das coisas de que gosto, só quando tiver lá para uns 50 e poucos anos. Que até uns 30 continuo fazendo tudo isso: jogar bola, videogame, soltar pipa. Meu tio tem 34 anos e faz isso tudo de que ele também gosta.

Theo

Ainda sobre este tio, e associando-o em sua fala à outra figura importante, sua avó, Theo disse:

(...) é assim, como meu tio, lá na minha avó meu tio sempre tirava um tempo ele ficava estudando e à tarde assim de uma hora às quatro horas, ele soltava pipa com nós, ficava soltando pipa, chegava a noite ele já (...) tomava banho, já tinha, pegava mais um pouco e estudava, minha avó sempre dizia, primeiro vem os deveres e depois vem a brincadeira.

Theo

Seus relatos evidenciaram ainda a figura que pareceu ser de maior importância para ele, e a todo o momento citada em suas respostas: Sua avó. Contou que apesar dela já estar na

185 Gíria usada para definir um cara muito legal.

faixa dos 90 anos era incapaz de deixar entulho por aí: “se puser na frente dela, ela carrega (o entulho)” . Mais adiante, respondendo ao entrevistador: [Tem alguém que é ou foi muito importante para você?] Minha avó. Hoje ela continua sendo ainda muito especial.

Mencionou também a sua avó como a pessoa que procurava quando precisava de ajuda. Falou da capacidade de sua avó para curar as pessoas através de rezas e ervas, mostrando-se novamente admirado diante do fato de as pessoas sempre voltarem lá para dizer que ficaram boas de seus males.

Através do exemplo de Theo percebemos a importância que a avó assumia para alguns dos jovens entrevistados186. A avó foi apontada como a principal referência na vida dele, e ele disse saber, porque ela mesma já disse para ele que não importava o que ele fizesse ou onde ele estivesse, que ela iria sempre gostar dele.

A avó tomou a si também o lugar de narradora dos fatos de sua vida dos quais ele não conseguia lembrar, ajudando-o a recuperar estes momentos. Vimos que foi a avó, por exemplo, que transmitiu a ele a fala do pai antes de morrer: “eu tô morrendo agora, mas meu filho vai terminar o que eu não terminei. À fala do pai ao filho, a avó de Theo acrescentou sua própria visão sobre o significado e o peso dela, mostrando compreender tratar-se de um destino inescapável, como vemos nas palavras de Theo: “Aí ela falou que é isso que perturba a minha mente, pra mim entrar pra vida do crime [Você era recém-nascido?] Tinha acabado de nascer.”

A avó, porém, não só contou esta importante e trágica passagem para ele. Pareceu, inadvertidamente (ou não, não podemos ter certeza), reforçar o vaticínio:

(...) até por causa desse negócio que eu falei pra tu do meu pai, minha vó sempre falava, minha vó sempre falava: ‘não vai..., Theo não vai ter jeito. Mesmo que caia um olho não vai ter jeito’ [Essa frase do seu pai , que a avó fica lembrando, é um peso muito grande, né, essa frase?] (ele não entende exatamente o que foi falado pelo entrevistador, mas entende a idéia) Pode, pode. Pode não! Atrapalha muito! (fala com ênfase as duas últimas palavras) [Entrevistador interveio: não pode deixar, não pode deixar mais significar a tua morte também, né? O que ele falou quando ele tava morrendo...] É [significar a tua morte também, né? Vai, tipo assim: o destino do meu filho continuar o que eu to parando aqui, continuar a coisa do crime, né, se tu sabe não precisa fazer...] minha vó falou assim, ó: ‘monte de polícia, monte de polícia, minha mãe, meus tios,...

186 Embora não estejamos tratando de descrever os dados referentes às meninas que também foram entrevistadas, elas também citaram a avó como referência mais importante para elas.