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VI. DESCRICAO DOS DADOS E ALGUMAS PONTUAÇÕES

VI.3. A DOLESCÊNCIA

VI.3.4. D EIXANDO DE SER C RIANÇA

[Vitor, pra você, quando é que... Quando você acha que um menino deixa de ser criança?] A partir desde o momento que ele, ele no próprio convívio dele, ele vai desenvolvendo, ele vai vendo que não já é mais criança, ele vai..., como no meu caso, eu peguei quatro anos de Abrigo, eu perdi a minha criancice eu tinha dois anos de idade, foi quando eu comecei colocando maldade na mente, fui crescendo com aquilo ali...

Vitor

O que aconteceu com Vitor aos dois anos de idade, quando teria perdido a sua criancice, não sabemos ao certo, pois esta importante informação passou despercebida pelo entrevistador, que só entendeu claramente a frase no momento de transcrição. Podemos, porém, supor que esse algo terrível, capaz de fazer com que um ser humano ainda bebê, perca sua inocência, seja algo violento, possivelmente ligado aos conflitos, brigas físicas e negligência entre seus pais.

Em relação ao processo de transição da infância para a adolescência, Vitor deixou claro que se deu em um ambiente determinado, cercado por pessoas ligadas a atividades ilegais, pessoas que chama de “ já convividas” , o que ilustra de forma clara uma das idéias levantadas por essa pesquisa, que é como o ambiente, as pessoas, enfim, como algo que podemos chamar de um caldo de cultura intimamente ligado ao tráfico de drogas e ao crime organizado influencia o rumo do bebê, dos pais do bebê, da criança, do adolescentes que nele estão imersos, ou próximos. Prosseguimos com as palavras de Vitor:

(...) fui criado no meio de pessoas que já eram convividas, já tinham experiência... [Já tinham convivido, experiência do que, do tráfico?] É, que era convívio do tráfico, já tinham

envolvimento no tráfico, e já tinham, tinham parado157, e sempre no caso que... Pegavam, alguém falava alguma coisa eles berrava aquilo (...) aí ficava com aquilo na minha cabeça.

Vemos então que a resposta de Vitor à pergunta encaminhou-se pela via da autopercepção da criança de que algo mudou nela, e, no caso dele, estas mudanças estavam ligadas ao grupo de pessoas com quem convivia.

Para situar primeiro como era a vida deles na favela, pedimos que relatassem aquilo de que mais gostavam e do que menos gostavam deste período de infância e transição para adolescência158. Entre as coisas boas prevaleceu o futebol, escolhido por pelo menos três dos jovens como a atividade preferida. Outras atividades mencionadas foram estar com os colegas, conversar sobre mulheres, brincar com o irmão (embora o padrasto de Ronaldo o impedisse), freqüentar as festas, brincar. Vitor falou ainda da praia, que gostava de ir à praia.

Falou de sua admiração pelo trabalho de sua tia, de acolher crianças órfãs, ele mesmo ajudando neste trabalho. Wellington listou dentre as coisas que mais apreciava o espaço geográfico em si: “Aã, de tá lá, brincar, assim do local mesmo da comunidade onde eu morava, o que eu mais gostava era de lá mesmo” .

Por outro lado, pelo menos três deles descreveram fatos e processos ligados à ação dos comandos e de grupos de traficantes como aquilo de que menos gostavam. O único que falou algo mais prosaico, não relacionado ao tráfico de drogas, embora também violento, foi Ronaldo, que não gostava de ter que acordar muito cedo para levar os irmãos ao colégio.

Violento porque parecia ser explorado pela família, em especial pelo padrasto.

E como eles viam o processo de deixar de ser criança? Para três dos adolescentes entrevistados significava passar a ter responsabilidade, sendo apresentadas situações diferentes para ilustrar este processo: Diogo falou em enfrentar as situações de peito aberto, enquanto Ronaldo mencionou refazer, reparar aquilo que fez errado. A responsabilidade que Theo via nesta passagem, ele a associou a ter uma profissão, fazer menos bagunça e gerenciar de forma mais organizada o tempo. Por fim, apesar de não ter sido perguntado especificamente a Wellington159, este disse que deixou de fazer parte do mundo das “ outras crianças” quando era ainda novo, com seis, sete anos, aproximando-se da resposta de Vitor:

Eu já cresci no meio (do tráfico) e tal, dono mandava: ‘vai ali comprar uma linha, pá’, soltava pipa junto dos bandidos, ficava jogando bola lá, ficava lá vendo, pegava vários

157 Não entendi o que tinham parado.

158 Embora esta pergunta pareça já ter sido feita, não foi. A pergunta anterior indagava como eles eram em grupo de amigos. Indagava especificamente sobre o que gostavam de fazer com os amigos em VI.3.3.

159 Por falha do entrevistador.

bagulhos e já fui, como? Mais crescendo com a mente, tipo não tava no mesmo mundo que as outras crianças, já tava num mundo diferente...

Wellington

Retomando agora a visão de Diogo em suas próprias palavras: “ (Deixa de ser criança) desde quando o cara,... A atitude dele, o jeito dele, tá ligado? Tipo assim, de encarar a situação, de não sair correndo, como criança. Encarar de peito aberto: ‘vamo desenrolar, pá, pum’, aí sim o cara passa a ser sujeito homem, sujeito de palavra.”

Enquanto Theo, como vimos, remeteu a passagem a adolescente ao mundo do trabalho:

(...) quando ele começa a ter mais responsabilidade por si... Deixa de ser criança assim quando ele vai, tá numa profissão assim, tá numa profissão, é mais quieto não fica fazendo algazarra, fica assim zoando, sempre procura tirar, separa um tempo tudo, estudar, brincar, reclamar.

Theo

Por fim temos o depoimento de Ronaldo em que ele pareceu repetir frases que provavelmente já foram faladas para ele por algum adulto, como que tem que ‘parar de ficar de brincadeira’:

[Quando você acha que um menino deixa de ser criança?] Desde quando ele cria responsabilidade (se interrompe) Desde quando ele faz uma coisa e tem que (se interrompe) se ele faz uma coisa errada assim ele vai ter que, se ele sabe fazer uma coisa errada, aí ele também vai ter que saber parar de ficar de brincadeira... Ele tem que saber consertar a coisa errada que ele fez.

Ronaldo

Ronaldo foi pressionado a deixar de ser criança ao imputarem-lhe tarefas que deveriam caber a adultos, como a de levar os irmãos ao colégio. Deparamos com um exemplo da difícil situação descrita na parte introdutória deste trabalho, onde ambos os pais ou responsáveis ausentavam-se do ambiente familiar diariamente e por períodos prolongados.

Principalmente no relato de Ronaldo percebemos como a marca da personalidade de cada um manifesta-se de modo coerente em relação a diferentes assuntos. Ronaldo apresentava baixa auto-estima, o que não parecia aplicar-se a Diogo. Neste sentido ao falarem da mesma transição dão encaminhamento opostos, o primeiro com o viés negativo de que vai errar e vai ter que consertar a besteira que fez, enquanto o segundo, de modo positivo,

destacando a assertividade de encarar o mundo, sem receios de sair para o mundo com os recursos que tem para ir resolvendo as situações e eventuais conflitos. E um terceiro, Theo, já associou também de forma diferente, correlacionando a responsabilidade inerente a esta passagem ao mundo do trabalho.