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II. CONCEITOS, AUTORES E TEMAS RELEVANTES AO OBJETO

II.3. U MA HISTÓRIA DE DESFILIAÇÃO

mesmo à própria sorte, como mostram estatísticas de programas de proteção à criança e ao adolescente contra violência doméstica44.

Na hora de buscarem alguma renda própria – seja pela necessidade de sobrevivência, ou pelo desejo de consumir supérfluos – os jovens não encontram oportunidades de trabalho, fato que é largamente atribuído a deficiências deles e não a tendências excludentes da escola e do mercado de trabalho. Deste modo, começam as dificuldades em um dos eixos apontados por Castel (1991) como fundamental para o pleno pertencimento social, o eixo do trabalho.

Castel (1991:35,36) descreve o crescimento internacional de novas formas de trabalho flexibilizado, como, por exemplo, o trabalho por tempo determinado, apontando que, sendo estas novas formas de contratos as responsáveis pelas novas contratações, logo haveria um movimento não apenas de manutenção / crescimento de uma periferia precária, mas também a desestabilização dos estáveis na medida em que se observa a aceleração na rotatividade da mão-de-obra. Este seria então um dos elementos importantes no fluxo de precarização no eixo trabalho.

Paralelamente a esse processo, Castel mostra como ia processando-se a fragilização do eixo das relações, dentro, inclusive, das próprias famílias: “ dispõe-se de numerosos índices objetivos que autorizam levantar a hipótese de uma transformação da estrutura familiar, indo no sentido do seu empobrecimento enquanto vetor fundamental de inserção relacional”

(Castel, 1991:39). No início dos anos 60 Castel considerava que a família parecia comportar-se bem, o que podia comportar-ser lido por diversos índices46, como os de casamentos, fecundidade, divórcios, dentre outros. Houve um processo que culminaria no início dos anos 60 de melhoria e estabilização de vários indicadores, sendo que alguns setores falavam inclusive em um “ emburguesamento” da família operária. Em determinado momento, na metade desta década, tudo se reverte: A taxa de casamento cai pela metade. Os divórcios triplicam, aumentando também o número de outras formas de organização familiar, comom os concubinatos, nascimentos “ ilegítimos47” e de famílias monoparentais (genitor sem cônjuge com filhos), aumentando o número de casas de uma só pessoa.

Para Castel (1991:40) não se trataria do fim da família, mas o fim da grande família,

“ com o que implicava de amplas redes de sociabilidade, de suportes afetivos cruzados e, eventualmente, de ajuda econômica” . Se por um lado vai fortalecendo-se a idéia da família como refúgio diante de um mundo insensível48 (ibid., p.41), por outro lado a família tornava-se também gueto, podendo ficar, ela mesma, isolada, em especial aquelas cujo capital social já era limitado, de modo que vai se tornando comum a família restrita que não tem colaterais, sem a possibilidade de aberturas importantes para as relações sociais e profissionais.

O autor salienta ainda que, dentro deste contexto, as famílias monoparentais, de modo geral, tendiam a ter horizontes ainda mais limitados (ibid.). Fazendo um paralelo com a realidade brasileira, tratar-se-ia da progressiva desconstrução do suporte que Roberto Da

46 O autor aqui se refere basicamente à família francesa “média” no início desta década.

47 Hodiernamente a legislação brasileira proíbe que qualquer criança receba este denominação, constituindo uma forma de discriminação não mais aceita por nossas leis, em especial o ECA.

48 Idéia também defendida e problematizada por Cristopher Lasch (1977), principalmente em seu Refúgio num Mundo sem Coração — A Família: Santuário ou Instituição Sitiada?

Matta (1987:134,135) chamou de rede de relações de uma família dentro de uma sociedade, que teria inclusive mecanismos de compensação a, por exemplo, a saída do pai de uma família (momento em que se passa a descrevê-la como família monoparental).

Castel descreve ainda como mudanças nas políticas habitacionais foram mais um golpe contra os operários na França, levando à maior fragilização e mesmo rompimento dos vínculos sociais e das redes solidárias de auto-proteção que haviam criado em face das grandes dificuldades enfrentadas em termos de salários, instabilidade frente aos custos da sobrevivência diária49.

Em relação ao tradicional bairro operário, Castel (1991), mais recentemente, acredita que o “ caldeirão cultural” vigente, onde ferviam a consciência e união de classe e um forte sentimento de identidade tenderá a reconstituir-se mesmo se os moradores do bairro forem submetidos à urbanização selvagem, que pode significar mudá-los de lugar, através, principalmente do advento dos grandes conjuntos habitacionais.

Compreendemos, no entanto, que a experiência na Argélia tem mostrado justamente o contrário. Castel a seguir recorre a Dubet50 que descreve o que ocorreu com jovens de uma pequena vila operária: a destruição do vínculo social a atingir subúrbios que estariam à deriva:

“ as comunidades populares foram arrebentadas nos grandes conjuntos, os caminhos de mobilidade e da reprodução do estatuto dos pais se fecharam e a consciência de classe que fornecia uma representação geral e ‘positiva’ de uma situação de dominação está ausente do universo dos jovens” (Dubet, 1987:95, apud Castel, 1991:44).

Afinado às idéias de Dubet, Castel enumera diversos determinantes negativos de identidade entre os jovens mencionados por Dubet:

(...) maus desempenhos escolares, desqualificação profissional, ocupação penosa do espaço nestas zonas sinistradas do grande subúrbio, ser estrangeiro em relação às instituições sócio-culturais, sindicais e políticas locais e estar em conflito permanente com os representantes da lei e da ordem. Estes jovens com trajetórias cassadas

49 Bourdieu (1977:111 e ss.) descreveu um fenômeno ocorrido na Argélia dos anos 60, que tem alguns pontos em comum com o descrito por Castel (1991): funcionários, proletários e subproletários argelinos foram realojados de favelas para apartamentos modernos. Neste momento perderam grande parte do suporte das redes de relacionamento social e de solidariedade, aqueles que recebiam menores salários tendendo ao isolamento, enquanto os empregados melhor remunerados nos setores mais modernos que contavam com maiores perspectivas, sentiam-se tendo mais privacidade e cada vez mais identificados à condição de burgueses (processo de emburguesamento). Somavam a esse processo novas dificuldades trazidas pelo fato de estarem longe de pontos com maior infra-estrutura (comércio, escola, etc.), dificuldades para pagarem aluguéis mais altos e que recaíram sobre apenas um chefe de família, diferentemente de como ocorria nas habitações multifamiliares nas favelas.

50 F. Dubet, 1987, La Galère: jeunes em survie, Paris: ed. Fayard, p.95.

(não propriamente delinqüentes, mas um pouco vadios, um pouco toxicônomos, um pouco desempregados, mas por vezes trabalhadores), que só um rótulo, estigmatizante designa (“ nós, nós somos da Courneuve” ou dos Minguettes, ou de uma Chicago qualquer) não podem dispor antecipadamente de um “ plano” que ultrapasse o instante, ou alguns dias (Castel, 1991:44).

Para Castel (1991) o que estes jovens acabam mostrando é que a desfiliação deixa de ser apenas um estado, passando a ditar uma nova maneira de ser, como um “ ethos” . É vivida de modo peculiar pelos jovens na sua relação com o tempo “ simultaneamente eterno e fugidio, com um passado muito fino” , em virtude de pouco ter sido a eles transmitido em âmbito familiar, ou pela escola, e mesmo em termos culturais. E o que torna as reflexões de Castel sobre eles especialmente preocupante é o fato deste autor não ver muitas possibilidades para eles, “ pois não existem mais que frágeis suportes em que possam atar neles uma trajetória: no future” (Castel, 1991:44). O que lhes resta então? Pergunta o autor.

Restam o tédio, derrisão, pequenas artimanhas, ou as pequenas caças, andanças pela cidade e as rondas noturnas, o perambular, a vagabundagem no mesmo lugar e sem horizonte, e, por vezes, a viagem da toxicomania, que se consagra como experiência total e totalmente desterritorializante onde o corpo solitário que goza e se destrói é o único suporte para “fixar” o sentido e bloquear a deriva.

(Castel, 1991:44-45, grifos nossos).

O autor termina estas reflexões mencionando seu desejo de recolocar a questão em perspectiva dinâmica, mais em termos de processos que de estados, escolhendo por isso as palavras precariedade, vulnerabilidade e desfiliação no lugar de falar em pobreza, marginalidade, desvio e exclusão, evitando-se assim o dualismo e com o intuito de melhor instrumentar ações para que se possa intervir “ antes que a instabilidade das situações se congele em destino”. Tal intervenção, segundo o autor deveria ocorrer tanto no plano preventivo com medidas mais gerais para fazer frente ao crescimento da zona de vulnerabilidade, como no nível de reparação procurando devolver aos desfiliados o mínimo de possibilidade de (re) integração na sociedade. Para ele a lei sobre a Renda Mínima de Inserção seria um importante passo neste sentido.

Não podemos deixar de registrar, no entanto, que as explosões de violência em Paris e arredores em outubro e novembro de 2005, 26 anos depois da publicação da pesquisa de Castel mostram um acirramento das tensões até um ponto de ruptura institucional em que a raiva, o grito e o ato desesperado sobrepuseram-se à aceitação passiva da condição de segunda classe reservada aos operários, a todo tipo de trabalhadores pouco ou nada especializados, e aos desempregados em si, a maioria de ascendência argelina ou marroquina, explodindo em chamas. O estopim das ondas de violência teria sido a morte de dois jovens que foram eletrocutados acidentalmente em uma subestação de energia elétrica ao quando procuravam esconder-se de uma perseguição policial51.

Ressaltamos a possibilidade de ver uma continuidade entre períodos e países muito diferentes pela via de um mesmo vazio de valores. Percebemos nos dados, reflexões e análises trazidas por Castel (1991) e pelos autores a que recorreu, como Dubet (1987), importantes pontos em comum com as idéias de Adorno e Horkheimer (1969 [1954]) em especial quando estes e aqueles referiram-se ao fato de os filhos já não levarem quase nada de casa, de suas famílias, ficando de certa forma em suspensão, vulneráveis a serem tomados, a seguirem algo sem muito questionamento crítico. Podiam seguir tanto ser um líder tirânico, como ocorreu no primeiro momento histórico, ou enveredarem neste segundo momento histórico (da década de 80 até os dias atuais, fins de 2005) pelo dogmatismo religioso, ou pela perambulação em grupos sem muito rumo ou certezas, com recurso eventual ao prazer efêmero das drogas culminando na atual irrupção coletiva de violência contra um sistema que os discrimina sem dar-lhes muita chance. Nos dois momentos vivia-se, vive-se as conseqüências de importantes mudanças sócio-econômicas ligadas às diversas etapas do capitalismo.