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VI. DESCRICAO DOS DADOS E ALGUMAS PONTUAÇÕES

VI.7. I DENTIDADE NO CONTEXTO DO TRÁFICO

VI.7.1. O BJETOS A CONSUMIR , CORPOS CONSUMIDOS

É. Eu tava no Abrigo, e o abrigo era de frente pra favela, então? [sabe]

como? Saindo, pô. Ia pro baile, voltava, depois saía de novo, aí se envolvia, aí eles tavam com dinheiro eu não tinha dinheiro, aí eles saíam, compravam uma roupa, eu não tinha dinheiro pra comprar aquela roupa, sempre dependendo dos outros, aí eu falei: Não, eu também quero ter meu dinheiro também, quero fazer meu status, quero ser famoso que nem os outros, aí eu comecei por esse caminho,

201 Jameson (1993), Vatino (1988) e Baudrillard (1993).

comecei, até que eu me envolvi, depois eu vi que não era aquilo, vi pessoas morrendo ...

Vitor

Em relação ao consumo, quase todos associarem-no à possibilidade de tornarem-se alvos do olhar e do desejo das meninas / mulheres. Todos os jovens, com exceção de Ronaldo falaram da necessidade de consumir, de ostentar coisas boas, principalmente marcas, para atrair as meninas:

Se tu chegar numa festa todo becado, e não falar com ninguém, ficar num canto (...) Chega uma mina puxando assunto. Parece que ninguém olhou pra você, mas que nada! Na verdade ela olhou pra tu de cima a baixo. Maior tenisao, lançamento da Nike, tá ligado? Sabe como?

Pô... ‘Esse garoto aí, pô, deve ser bandido, se não for bandido não tem’ sabe como é né? É a famosa mercenária. [A maioria das meninas é assim?] Não tem nem termos de comparação.

Diogo (grifos nossos)

Se o desejo de ser desejado pelas garotas é importante para os jovens entrevistados, motivando-os a obter recursos financeiros de qualquer forma, mesmo através da atividade ilegal e violenta como o tráfico de drogas, outro fator empurra-os na mesma direção e não deve ser desprezado, constituindo justamente o outro lado da moeda do consumo livre: a privação. Observamos que alguns jovens conseguiram falar da profundidade das dificuldades pelas quais passaram, enfrentando, inclusive, a fome. Relataram também outros tipos de privações, também traumáticas e humilhantes, como a de não ter uma roupa (por simples que seja) para ir a um determinado lugar, ou não ter dinheiro para comprar um desodorante, ou ver-se obrigado ao ato de pedir, como relatou Wellington:

(...)‘pôxa, não tenho nem um desodorante, pô, compra pra mim?’ ‘Vou comprar’. (Sabe) como?Então, agora é mais fácil tu... (pedir). É melhor que tá fazendo uma coisa como?... Tu não tá tirando nada de ninguém, tá pedindo e uma pessoa te dando, até de coração, às vezes né? Tem muitas pessoas que dá de mau gosto, mas também tem muitas que dá de coração, então é uma coisa boa se tu tiver necessidade de comprar e não tiver dinheiro você pedir ou então você esperar um pouco que sempre aparece um dinheirinho na tua mão. Você faz alguma coisa pros outros você tem dinheiro, mas pro bem.

Wellington

Outra semelhança encontrada no discurso dos jovens foi o apelo, agindo mesmo como imperativo, em direção ao consumo, ao qual todos os jovens com exceção de Ronaldo admitiram estar submetidos. Compreendemos a exclusão de Ronaldo destas duas características associada a sua baixa auto-estima que parece não o permitir desejar nada.

Vitor falou do desejo por “objetos, cordões, mulheres, meninas...” . Diogo mencionou o apelo das griffes (marcas de produtos sofisticados, principalmente de vestuário). Theo disse gostar de andar arrumado, dando a seguir um exemplo de como o próprio ato do consumo fascina as meninas: ele chega no bar de um baile e pede um Redbull (bebida energética) dando uma nota de R$50,00, chamando a atenção das meninas próximas. Disse, porém, não prender-se a marcas, comprando suas roupas até em camelô, contanto que ficasse bem arrumado. Por fim, Wellington afirmou que gostava de ter as coisas, roupas, etc., mas que não ligava para a marca, preferindo ter algo barato a não ter nada. Surpreendeu ainda ao incluir um elemento raramente abordado nas discussões teóricas sobre o consumo e o consumismo em sociedade de consumo: a qualidade e durabilidade dos produtos. Indo além da questão da marca em si, argumentava que por vezes compensava comprar um produto mais caro, de marca mais conhecida pelo fato de que ele vai durar mais que outro mais barato e de menor qualidade.

Percebemos pelas entrevistas como o desejo de consumir muitas vezes transformava-se em necessidade inadiável, incidindo fortemente sobre estes jovens e tantos outros como eles, pobres e moradores de favela, impulsionando-os com freqüência diretamente para um caminho diferente daquele do estudo. Afastando-os com grande freqüência também do trabalho honesto. Vitor relatou que deixou de estudar para trabalhar para poder comprar as coisas que queria: “aí eu comecei a trabalhar porque também eu ficava só estudando, parado, fazendo curso, então aí que eu, pô! Tinha que trabalhar pra poder comprar umas coisas e ir tocando minha vida pra frente” . Em seguida, contou ter deixado este trabalho para atuar no tráfico e poder comprar o que queria. O dinheiro ganho com seu trabalho honesto não estava sendo suficiente para ter o que de fato queria (cf. epígrafe desta seção). Convergindo com as percepções de Vitor, Diogo referiu-se ao apelo ao consumo como algo que se impõe, e que dificulta a recuperação dos jovens:

[como é para você a vontade de comprar as coisas, coisas novas?] Tenho muita vontade, tipo como? Tenho vontade de sair, ir num lugar, mas não tem um tênis esperto pra ir, pá, não tem uma calça, pô! Qualquer um, um camisão, um bonezinho, pá, pra poder sair. Aí também que tenta pra caramba também... [tenta pra caramba?] Pôoo... [E se não pode comprar, como é

que fica?] Fica ruim (...) [Como que é a tentação?] Tenta, pô! Tu passa numa vitrine, você passa numa loja, na Di Santini. Pô, a Di Santini vende tênis, vende as roupas da Nike, certo?

Aí você passa ali, olha. Você olha e vê uma roupa da Nike... R$299,00, pô, tênis, R$250,00, Aí você pega e olha assim, pô! [reprodução de seu pensamento no momento descrito entre aspas simples]: ‘Quando eu era do bicho metia a mão no bolso, eu tinha R$550,00, tirava era bolo.’ Hoje eu meto a mão, não tem nada. [E aí?] Sabe como é que é, né? Se o cara não for forte mesmo, pra LUTAR, o cara cede (...) pô, quando eu ando na rua passo em varias loja, tipo eu nem paro pra olhar. Nem paro, tem que andar pra frente.

Diogo

Entretanto, se ele está certo de que tem que andar para frente e desviar-se da tentação.

Esta não é pequena, nem insignificante, como o próprio Diogo ilustrou sobre o funcionamento do impulso ao consumo. Forte como um imperativo. Mais forte que a fala da mãe quando esta argumentava, de forma racional, que não podia dar a blusa que o filho tanto desejava, já que precisava comprar comida:

(...) o cara, o moleque, pá, tem pai, tem mãe dentro da comunidade, mas só que mãe e o pai, pô, tá ligado, pô tio, vou falar agora, tá ligado que pô, coisa de marca Nike, Mizuno, (...) São roupa de que, nego fala que é roupa de bandido e bandido usa mesmo, Nike, Kenner. São roupas que bandido usa mesmo, tá ligado? Bota um Kenner no pé... E o moleque vê aquilo,

‘pô! Caraca! Quero uma roupa daquela! Quero uma roupa daquela!’ Chega pra mãe e ‘pô mãe... ’ Conversa com a mãe ‘pô mãe, tem condições de você me dar aquela blusa?’ A mãe chega e ‘pô filho, eu não tenho condições de dar essa roupa não, que é muito cara, o dinheiro que eu vou dar nessa blusa é o dinheiro que eu posso fazer uma compra pra casa, pra gente ter o que comer’ E é o caso do moleque se revoltar: ‘pô cumpade, minha mãe não quer me ajudar, vou formar na boca mesmo, vou ganhar dinheiro’ (...).

Diogo (grifos nossos)

O adolescente relatou ainda a segunda etapa deste processo, quando perguntado como o dinheiro recebido do tráfico como pagamento influenciava na mudança dos jovens:

(...) através do dinheiro que o cara conseguir no tráfico, o cara pode tipo como? Pôxa!

Comprar várias coisas. O cara pode chegar na loja, escolher várias roupas caras. Nike, várias coisas, comprar o que ele quiser. Andar de moto, isso aí só vai tipo como, alimentando a fantasia do cara, certo? [Qual fantasia?] Fantasia do cara tipo como? ‘Tenho condições’

Certo? O cara mesmo vai parar e pensar: ‘pô, cara, antes eu era fudido, pá! Não tinha nada,

agora eu tô no tráfico, posso fazer isso, isso, isso, e isso, pá, a parada do dinheiro. O dinheiro faz muita polêmica, o dinheiro não engana. Interfere muito também na cabeça dos outros.

Diogo

E diante de tanto apelo, tanto imperativo, quais são as estratégias que os jovens desenvolveram ou estão desenvolvendo para enfrentar este conflito? De modo geral, suas respostas estão ligadas à aprendizagem da capacidade de adiar um prazer, uma gratificação. O que vemos, sob uma compreensão psicanalítica, como a possibilidade de integrar os funcionamentos do princípio do prazer e princípio de realidade, o que só pode acontecer quando o ego se torna capaz de conciliar os impulsos em busca de prazer com os dados da realidade, diferentemente do que ocorre na alienação imaginária em nível ego-ideal. Veremos como funciona este processo de adiamento quando abordarmos a capacidade de o jovem escolher ou não o seu caminho. Marcando apenas, preliminarmente, que ser capaz de escolher adiar algo que se deseja muito, já é uma forma de construir um processo mais consistente de escolha. Se pensarmos em termos de uma construção, seria parte dos alicerces desta.

Seguindo este irresistível apelo do consumo, empurrados para perceber o uso de certas marcas como uma necessidade existencial, ostentando assim certos produtos que acabam funcionando como insígnias, grande parte dos jovens pobres de favela acaba ironicamente oferecendo seus próprios corpos para serem consumidos nos violentos e mortíferos processos do próprio tráfico de drogas.

Corpos que têm preços. São precificados de acordo com as funções que desempenham, as aptidões e níveis de autonomia para agir, parecendo serem mais valorizados aqueles corpos (e mentes) menos humanos, capazes de ações que nos custa atribuir a seres civilizados que em tese habitam dentro da circunscrição geográfica de um Estado de Direito:

[Esses que falam, que consideram como trabalho, eles têm essa coisa toda também de dinheiro, do poder, de mulher?] Têm. [Todos têm?] Todos têm o mesmo direito, o mesmo direito que um tem, a gente tem, a não ser aqueles que são mais rebaixados, que não têm um preço, porque todo mundo tem um preço na favela, todo mundo vale um dinheiro. [Preço que você diz é o que?] Todo mundo tem um preço, vamos supor: um cara é um tem um cargo mais alto queo que o outro [Ah, tá na hierarquia lá?] Um tem um preço mais alto do que o outro [Entendi. Como que tu tava envolvido lá? Como é que é? Tu falou no preço, qual era a tua função?] Ah, minha função era como vapor, vendendo, passando drogas, passando drogas, vendendo.

Vitor e entrevistador

De modo análogo percebemos como tal apelo, ou mesmo imperativo ao consumo toma também as meninas que, segundo a visão dos rapazes chegam a colocar seus corpos disponíveis – para serem “ consumidos” no sentido sexual – aos rapazes, buscando acesso à possibilidade de também consumir representada pelos caras do tráfico202. Visualizamos então um sistema cíclico alimentado e impulsionado em diferentes partes e lógicas pelo apelo ou mesmo pelo imperativo ao consumo. Lembremos que quando Vitor respondeu sobre o que mais o impressionava203 demonstrou que as meninas acabam sendo situadas e situando-se na mesma série em que são colocados, por exemplo, objetos e cordões, coisas materiais que dão status a quem as porta funcionando como signos identitários.

Tal ciclo de consumo de corpos traz-nos à mente a imagem do moinho satânico, usada por Polanyi (1944:51) para ilustrar os estranhos modos de funcionamento que assumia o capitalismo, especialmente na Inglaterra de meados do século XIX. O autor perguntava sobre que prodigiosa força teria sido essa capaz de transformar homens em massa, se teria sido o progresso ou a dependência econômica a destruir o tecido social. Em nossa pesquisa vemos que nosso tecido social tem sido violentamente esgarçado com o advento, crescimento e profunda penetração do tráfico de drogas nas favelas do Rio de Janeiro, principalmente a partir da década de 1980.

VI.7.2. DISSOLUÇÃO DA, − THINNER, COLA, LOLÓ, MACONHA E COCAÍNA (‘QUANDO A DROGA É BOA, TU NÃO VÊ MAIS NADA’)

[Você usava drogas?] Uso [Ainda usa? Quais?] Thinner, cola, maconha, loló... [Como você percebe o uso de drogas influenciando na entrada de jovens para o tráfico?] Ah, que as drogas levam a pessoa a roubar coisas pra ir comprar mais droga, aí vai roubando, vai roubando... Aí... [E em relação ao tráfico especificamente? Tráfico, você sabe o que eu tô dizendo, né? Trabalhar na boca, essas coisas.

Tem alguma ligação também?] Ah, isso aí eles vende pra arrumar dinheiro pra comprar mais. [Arrumar dinheiro pra comprar droga?

202 Cf. subseção VI.4.2.

203 Ver p.168, grifado.

Trabalhando na boca. É isso que você falou? E você? Já fez isso, de roubar pra comprar droga?] Roubar, assim, eu já roubei já.

Ronaldo

A principal convergência de percepções entre os jovens quando foram abordadas especificamente as drogas verificou-se no modo como eles e outros tantos adolescentes começam a usá-las. Todos falaram que o começo ocorre através dos colegas.

Uns – como Wellington – falaram das amizades, outro falou ainda sobre o jovem ter

“ mente fraca” deixando-se levar facilmente pela cabeça dos outros. Respondendo à pergunta sobre por que uns começam a usar e outros não, não houve tanto consenso, aparecendo, todavia, dentre os motivos a amizade, ou “ colegagem” , “ mente fraca” e “ pilha” (pressão) do grupo na maioria das respostas. Os dois jovens que apresentaram motivos diferentes, Vitor e Theo, mencionaram, o primeiro, que não tinha amor à vida e que estava só no mundo, enquanto o segundo disse não saber porque uns usam drogas e outros não, argumentando a seguir que parece que todos usam, mencionando os trabalhadores, trocadores de ônibus, playboys, que vão todos lá na boca comprar drogas. Diogo dramatiza uma conversa com um colega ilustrando de forma precisa a influência dos colegas, dos grupos de pares sobre o jovem que nunca usou drogas:

Jovem 1 (usuário): ‘Vamos bater isso irmão!...Ou um charuto, fiel!’204 Jovem 2 (nunca usou): ‘Batê nada não, cumpadi. ’

Jovem 1: ‘Hiiiiii, alá maior careta, maior vacilão, não fuma não, babacão!’

Aí o cara, só pra demonstrar que não é careta, que não é babaca:

Jovem 2: ‘eu vou fumar mermo!’

Aí dá a primeira, a segunda, gostou, começa a gostar. [Esse é o primeiro barato, né? E depois? Tem o barato da própria droga que mantém o cara viciado?] É né, tem também, o cara começa a virar dependente daquela droga, o cara... Sem isso o cara não faz mais nada, tá ligado, o cara vive dependente e outra, no dia que não tiver aquilo, acabou (entendi aqui que o cara fica acabado). [Mesmo com maconha?] Maconha, cocaína. (...).

Diogo

Vitor refletiu sobre como funciona a indução promovida pelos colegas por outro ângulo, enfatizando, mais do que a pressão que percebemos na dramatização feita por Diogo,

204 Gíria: Bater significa cheirar cocaína. O charuto em questão é um cigarro grande de maconha.