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Residualização e focalização da habitação social

Capítulo 3. O acesso à habitação e a priorização da propriedade residencial

3.3. Residualização e focalização da habitação social

Nos anos 1990, as principais medidas referentes à habitação social seguiram duas diretrizes: reduzir a concentração de pobreza no parque público e adotar um processo de reformulação arquitetônica de alguns projetos (HOPE VI de 1993) e direcionar os programas de housing allowances (Seção 8 Certificados e Voucher Program) às famílias de renda ainda mais baixa.

Apesar da constatação da National Commission on Severely Distressed Public Housing de 1992 de que apenas 6% (86 mil unidades) do parque público encontravam-se em dificuldade extrema (severely distressed), a comissão recomendou a criação de um programa de demolição e reconstrução, o que o Congresso acatou por meio da adoção do programa HOPE VI. A

princípio, o objetivo do programa era substituir os conjuntos habitacionais em situação de maior deterioração por novas unidades, incorporando aspectos arquitetônicos mais convergentes às necessidades de seus ocupantes. Dessa forma, a maioria dos projetos construídos a partir do programa contava com a redução de espaços comuns (estacionamentos, halls, jardins etc.) cujo controle pelos moradores era considerado difícil e, por isso, favoreceria a ocorrência de crimes e vandalismo. O modelo de grandes projetos verticalizados, comportando inúmeras unidades residenciais foi definitivamente abandonado com o HOPE VI, que se concentrava em construir projetos menores. A qualidade dessas novas unidades também era bastante superior à daquelas que tinham sido destruídas: ar-condicionado central e instalações para lavadoras de roupas e de louças e secadoras eram frequentemente verificados. Com isso, também se buscava atrair famílias de renda mais elevada que a dos antigos moradores, em nome da maior diversidade social (Schwartz, 2006).

O custo por unidade construída era, por consequência, superior à média do parque público, o que seria compensado ao longo do tempo pelos custos de conservação menos expressivos diante da queda de ocorrência de vandalismos e da maior diversidade social dos novos projetos, resultados justamente das novas características dos imóveis. Outro aspecto nessa mesma direção era a contratação de firmas privadas especializadas na gestão de condomínios. Argumentava-se que a gestão descentralizada dessas firmas e a sua busca por eficiência ajudariam a manter os custos de conservação dos projetos em patamares baixos (Schwartz, 2006).

Segundo Popkin et al. (2004), essas duas características do HOPE VI, quais sejam, a diversificação social e a construção de projetos menores, acabaram se traduzindo em uma redução absoluta do número de unidades habitacionais disponíveis à baixa renda. Nos dez primeiros anos do programa (1993-2003) foram demolidas 94,5 mil unidades do parque público, sendo mais do que compensadas pelos projetos de reconstrução (95,1 mil unidades). Contudo, apenas 51% dessas novas unidades (48,1 mil) eram compatíveis com o perfil de renda das famílias ocupantes da public housing101. As observações de um estudo do Center for

Community Change (CCC e ENPHRONT, 2003) apontaram na mesma direção: o programa HOPE VI foi capaz de efetivamente repor, em média, apenas 56% das unidades demolidas. O valor médio escondia, entretanto, situações fortemente assimétricas: segundo Schwartz (2006)

101 Como parte dos projetos demolidos apresentavam muitas unidades desocupadas, se fosse levada em conta a

relação dessas 48,1 mil unidades o número de unidades demolidas efetivamente ocupadas, a taxa de substituição dos novos projetos salta de 51% para 78%; o que representava ainda o desalojamento de parte das famílias do parque público.

a capacidade de reposição das unidades da public housing sob as mesmas condições de acessibilidade chegou a variar de 13% a 102%.

Àquelas famílias dos projetos demolidos que não conseguiram se alojar sob o programa HOPE VI, abriram-se principalmente três alternativas: partir para o parque privado de locação e requerer um voucher para cobrir parte dos custos de moradia (33%102), mudar-se para uma

unidade desocupada em outros projetos da public housing (29%) ou, então, sair totalmente do parque de habitação social (18%). Todas as três trazem inconvenientes: impõem geralmente deslocamento para uma região diferente e custos mais elevados, sem grandes chances de melhorar suas condições de moradia. Segundo Popkin et al. (2004), 40% das famílias que trocaram projetos demolidos pelo HOPE VI pela Seção 8 afirmaram ter dificuldades em pagar seus aluguéis e/ou serviços associados à habitação. Queixas em relação ao isolamento social decorrentes da mudança também foram frequentes (Schwartz, 2006).

Se, por um lado, as famílias de baixa renda tinham dificuldades de se alojar nos projetos de reabilitação do parque público operados pelo HOPE VI, por outro lado, sua situação no parque público antigo não era muito melhor. Com o objetivo de reduzir a concentração de famílias pobres na public housing, o Quality Housing and Work Responsability Act (QHWR) de 1998 limitou o número de famílias de renda extremamente baixa (inferiores a 30% da renda mediana da região) passíveis de admissão no parque a 40% das unidades disponíveis à ocupação. Essa restrição poderia ser ainda maior nos casos em que os programas de vouchers das Public Housing Administrations (PHA) consumissem mais de 75% dos novos subsídios disponíveis com famílias de renda extremamente baixa.

Ao passo que a entrada dessas famílias pobres no parque público foi dificultada, a permanência das famílias de renda relativamente mais elevada foi incentivada. O QHWR permitiu que as PHA definissem um teto para os aluguéis, a partir dos quais, frente à elevação da renda das famílias ocupantes, o valor do aluguel, definido como uma proporção de 30% de sua renda, não poderia aumentar. Em caso de desemprego, para incentivar a permanência de famílias com histórico de ocupação profissional, a legislação determinou que seus aluguéis não fossem alterados durante o período de um ano e que, no ano seguinte, os reajustes fossem limitados.

A regra sob a qual operou o HOPE VI entre 1993 e 1995, que estabelecia que a cada unidade do parque público demolida deveria ser reconstruída foi formalmente revogada, em 1998, pelo QHWR, três anos após a sua suspensão pelo HUD. Além da reconstrução de projetos

102 As probabilidades são referentes a dados coletados pelo HUD para os oito primeiros anos do programa HOPE

de menor escala pelo HOPE VI, a legislação de 1998 também incentivava a demolição de projetos considerados caros e inabitáveis, substituindo-os pela concessão de vouchers. Como será visto na seção 3.4, a demolição de unidades do parque público teve ainda o objetivo de liberar áreas nas quais havia intenção de realizar projetos de renovação urbana.

Nesse mesmo ano, os dois programas de housing allowances, a Seção 8 e Voucher Program, foram unificados em apenas um, o Housing Choice Voucher (HCV). Semelhante ao

Voucher Program, o HCV estava baseado na definição de um payment standard que, nesse caso, correspondia geralmente de 90% a 110% do fair rent market103, não podendo ultrapassar

120%, exceto em alguns casos especiais. A lei abriu também a possibilidade para que as PHA definissem múltiplos payment standards em uma mesma região metropolitana, de forma a melhor refletir as diferenças locais do patamar dos aluguéis. Aos beneficiários do HCV foram permitidos gastos com aluguéis superiores a 30% de sua renda, mas até o limite de 40%. A unificação desses programas também resultou no maior direcionamento às famílias de renda extremamente baixa que, segundo a legislação, deveriam receber ao menos 75% dos vouchers concedidos anualmente. O número adicional de vouchers/certificados, que havia caído ao longo da primeira metade da década de 1990 – de 65 mil, em 1989, para 39,7 mil, em 1994 – foi suspenso entre 1994 e 1998. A fusão dos dois programas levou a uma retomada da concessão de novos vouchers, sob o programa Welfare to Work Housing Voucher (WtWV), mas apenas pelos próximos quatro anos, voltando a ser suspenso em 2003 e 2004 (Gráfico 28).

103 Cabe observar que a definição de um fair market rent em nada garante ou mesmo expressa patamares de aluguel

que sejam possíveis de serem pagos pelas famílias locatárias sem um grande esforço. A National Low Income Housing Coalition, por exemplo, calculou que, em 2006, isto é, antes da deflação de preços dos imóveis nos EUA, em nenhum condado um trabalhador a templo pleno que recebesse um salário mínimo seria capaz de alugar um imóvel de apenas um dormitório que lhe custasse o fair market rent. Ver http://nlihc.org/sites/default/files/oor/2006-OOR.pdf

Gráfico 28. EUA: Número de vouchers e certificados acumulados – 1975 a 2004

Fonte: Schwartz (2010; p. 153).

Diferentemente do programa tradicional (Housing Choice Voucher), o Welfare to Work Housing Voucher Program condicionava a concessão dos vouchers a exigências referentes a atividades de trabalho dos membros adultos das famílias, como a participação em programas de treinamento ou de recolocação profissional, a exigência de trabalhos comunitários etc. As famílias que não cumprissem essas exigências adicionais poderiam ser expulsas do programa104. A cobrança de contrapartidas como essas, originadas no Quality Housing and

Work Responsability Act de 1998, foram fortemente criticadas, uma vez que outras formas de apoio à habitação, especialmente à ascensão à propriedade residencial, continuaram livres de exigências adicionais. Crump (2003), por exemplo, argumentou que o objetivo principal dessa nova configuração da política habitacional para as famílias menos favorecidas era transferi-las do sistema público de proteção social para o mercado de trabalho por meio de empregos mal remunerados.

Esse processo de residualização do parque de habitação social congregava cortes no orçamento público alocado para esse segmento, seguidos da desaceleração do ritmo de construções de novas unidades e da priorização de transferências diretas às famílias sob a forma

104 No âmbito do Housing Choice Voucher Program, apenas os casos de fraudes e comportamentos criminosos

justificavam o cancelamento dos vouchers das famílias beneficiárias (HUD, 2004).

0 0,2 0,4 0,6 0,8 1 1,2 1,4 1,6 1,8 1 9 7 5 -8 0 1 9 8 1 1 9 8 2 1 9 8 3 1 9 8 4 1 9 8 5 1 9 8 6 1 9 8 7 1 9 8 8 1 9 8 9 1 9 9 0 1 9 9 1 1 9 9 2 1 9 9 3 1 9 9 4 1 9 9 5 1 9 9 6 1 9 9 7 1 9 9 8 1 9 9 9 2 0 0 0 2 0 0 1 2 0 0 2 2 0 0 3 2 0 0 4 M ilh õ es d e vo u ch er s/ ce rt if ic ad o s

de auxílio moradia cada vez mais direcionadas às famílias de renda mais baixa ou a aceitação do comprometimento de parcelas maiores da renda para o pagamento de aluguéis.