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Questões a respeito da viabilidade do regime de acumulação financeirizado

Capítulo 1. Regulação e Configurações do Capitalismo

1.3. O regime de acumulação financeirizado

1.3.2. Questões a respeito da viabilidade do regime de acumulação financeirizado

Se as análises regulacionistas parecem convergir ao identificar as finanças como a forma institucional superior, caracterizando a atual configuração do capitalismo nos EUA, devido às nuances do conceito de regime de acumulação de um autor para outro, como foi visto na seção 1.1.3 deste capítulo, permanece aberta a questão se esse aspecto é suficiente para defender a existência de um novo regime de acumulação27, como alerta Clévenot (2006).

Mesmo Aglietta, que em 1998, publicou o artigo “Le capitalisme de demain”, caracterizando as formas institucionais sob a predominância financeira e as coerências

27 O problema passa inclusive por uma profusão de termos para identificar a especificidade do capitalismo

contemporâneo: “finance-led”, “financialized”, “equity based” ou “stakeholder regime”, em inglês, ou “tiré par

les finances”, “actionnarial”, “financiarisé”, “patrimonial”, e mesmo “de déréglementation à dominante

financière”, em francês. Nem sempre, contudo, são usados como se fossem sinônimos, a exemplo de “patrimonial”, muitas vezes restrito à identificação do modelo apresentado por Aglietta (1998).

estabelecidas entre elas de maneira a fazer emergir um novo regime de acumulação – o regime patrimonial –, reconhece, a partir de 2005, obstáculos fundamentais à regulação do capitalismo sob essa configuração que o obrigaram a recuar na sua ênfase sobre um novo regime.

Diferentes deficiências do modo de regulação são apontadas para justificar o cuidado com o emprego definitivo do termo regime de acumulação por alguns autores regulacionistas. Tais deficiências são apresentadas em seguida.

(1) A forma institucional superior desse regime é, ela própria, uma fonte de instabilidade. A dinâmica dos mercados financeiros liberalizados constitui-se em elemento de desestabilização do regime à medida que torna mais frequentes, e mais difíceis de serem prevenidas, as crises financeiras. Devido ao caráter convencional do processo de formação dos preços dos ativos nesses mercados, os movimentos de alta ou de queda das cotações tendem a apresentar um perfil cumulativo. Na fase de alta do ciclo de preço dos ativos, as interações com os mercados de crédito possibilitam o surgimento de euforia que aceleram fortemente a valorização, incorporando expectativas de ganhos que não podem ser realizadas, e a fragilização da situação patrimonial dos participantes desses mercados (instituições financeiras, empresas e famílias). Na fase de baixa do ciclo, por sua vez, a elevação dos riscos e a radicalização da incerteza comprometem a liquidez dos ativos, dificultando ou bloqueando o funcionamento dos mercados. Em função das interligações entre os diferentes mercados de ativos e de suas interações com os mercados de crédito, a crise em um mercado específico pode rapidamente se espalhar por todo o sistema financeiro, desencadeando uma forte contração do crédito. A iminência de risco sistêmico e crise econômica (devido à deflação de ativos e à contração do crédito) são resultados prováveis da reversão da convenção altistas dos mercados de ativos, exigindo intervenções dos bancos centrais como emprestadores de última instância (lender of

last resort).

Entretanto, a capacidade de as autoridades monetárias nacionais garantirem a estabilidade financeira encontra-se bastante limitada frente ao tamanho dos mercados e à complexificação das relações entre agentes e mercados, devido ao intenso processo de inovação financeira em ambiente liberalizado, em escala global. Neste sentido, a crise das hipotecas

subprime ilustrou bem tais limitações, pois exigiu a criação de novos instrumentos de intervenção, por meio dos quais o Fed procurou assegurar a liquidez de determinados ativos financeiros cujos mercados haviam sido paralisados, tornando impossível sua precificação. Assim, as operações do Fed passaram a aceitar como garantia um conjunto maior de ativos e a participação de uma maior variedade de agentes financeiros. Desde então, segundo Buiter e Sibert (2007) e Buiter (2008b), o Fed, assim como outros bancos centrais, além de emprestador

de última instância também se tornou formador de mercado de última instância (market maker

of last resort)28.

Ademais, em determinados momentos, o compromisso da política monetária com o combate à inflação pode entrar em conflito com a necessidade de garantir a estabilidade financeira. A ampla aceitação do combate à inflação de bens e serviços como único ou o mais importante objetivo da política monetária subestima os efeitos das decisões das autoridades monetárias nos ciclos de preços dos ativos, e impede a adoção de estratégias preventivas a episódios de “exuberância racional” nesses mercados, para retomar a expressão de Alan Greenspan.

A despeito da retórica oficial de combate à inflação e da impossibilidade de ações preventivas (sob o risco de abortar o próprio processo a dinamizar a economia), a intervenção da política monetária no momento em que se explicitam as crises financeiras é central para a regulação do regime.

A partir do momento em que se intensificam os efeitos de transmissão entre a esfera financeira e a esfera real, a função da política econômica consiste então em regularizar o ciclo financeiro, ou, em caso de acidente, em intervir o mais rápido possível para tentar amortecer a flutuação e evitar sua repercussão sobre o ciclo real. É evidentemente a política monetária que deve assumir esse tipo de intervenção, ao mesmo tempo em função da rapidez de sua implementação e porque com a taxa de juros dispõe de um instrumento que lhe permite agir diretamente na conexão do financeiro com o real. A redução das taxas [de juros] como intervenção de urgência tem, com efeito, ao menos três méritos. Ela sustenta o valor dos portfólios e contém a corrida para a liquidez. Ela permite ofertar uma liquidez que alivia os agentes mais ameaçados de default e, dessa maneira, freia os mecanismos de propagação de falências. Por fim, ela aumenta as margens bancárias e previne os encadeamentos posteriores de contração do crédito decorrente da revelação massiva de empréstimos duvidosos no balanço dos bancos. Assim, por um paradoxo estranho nesses tempos de liberalização, a viabilidade macroeconômica de um regime de acumulação financeirizado dependeria, muito mais do que no passado, das intervenções da política econômica (Lordon, 1999, p. 9; tradução própria).

(2) O movimento de massificação do acesso aos mercados acionários pelos trabalhadores não pareceu ter avançado suficientemente para viabilizar o surgimento de uma nova relação capital-trabalho, que efetivamente pudesse equilibrar os conflitos de interesses entre os trabalhadores, de um lado, e os proprietários e gestores das empresas, de outro. Mesmo nos EUA, onde o peso das ações entre os ativos financeiros das famílias saltou de 14,0% na média do período de 1980-1989 para um pico de 35% em 1999, a posse desses ativos continua muito concentrada nas parcelas mais ricas da sociedade (Gráfico 4).

As estimativas de Henwood (1997) para os EUA mostram que, entre as famílias que possuíam ações diretamente (ou seja, excluiu-se a posse de ações por meio de fundos), as 5% mais ricas detinham 94,5% das ações em 1992. Segundo Poterba (2001), em 1998, apenas

28 Uma análise em detalhe dos novos instrumentos e atuação do Federal Reserve encontra-se em Bullio et al.

10,4% das famílias americanas com renda anual menor que US$ 25 mil possuíam ações. Entre os ricos, com renda superior a US$ 250 mil por ano, cerca de 84,5% possuíam ações. As estimativas de Girouard e Boone (2002) apontam na mesma direção: 56,6% das ações estavam diretamente nas mãos de apenas 8,6% da população americana, parcela com renda mensal líquida superior a US$ 8.350.

Gráfico 4. Média dos ativos em posse das famílias americanas por grupos de renda (em % da renda)

Fonte: Federal Reserve (Flow of Funds) e Survey of Consumer Finances de 1998. Apud FMI (2002)

Como consequência, a participação da renda dos trabalhadores proveniente da valorização dos ativos financeiros continua restrita em relação à sua renda do trabalho, desencadeando um efeito riqueza limitado. Segundo Chouizot et al. (2000), 10% de valorização das ações são capazes de elevar o consumo em apenas 0,4% nos EUA.

Não à toa que inúmeras estimativas sugerem que a valorização dos ativos imobiliários possibilita, em geral, um impacto sobre o consumo das famílias mais importante que ativos financeiros (Case e Quigley, 2001; Bayoumi e Edison, 2004; FMI, 2002), muito em função da menor concentração de sua propriedade (Nothaft, 2004). Este ponto será explorado mais à frente.

Entretanto, seja qual for o ativo desencadeador, a elevação do endividamento das famílias parece ser o mecanismo privilegiado por meio do qual a valorização imobiliária ou acionária afeta o consumo:

Esta maior “alavancagem” dos gastos de consumo das famílias é permitida pela percepção dos consumidores (e dos bancos) de que sua riqueza aumentou por conta da capitalização acelerada dos ativos financeiros. É preciso explicar que o “efeito riqueza” não se realiza mediante uma venda dos ativos para a conversão do resultado monetário em consumo, senão mediante uma ampliação da demanda de crédito por parte dos consumidores “enriquecidos” (Belluzzo e Coutinho, 1998, p. 139).

A fragilização financeira das famílias é, então, efeito colateral do circuito valorização dos ativos-crédito-consumo que marca a evolução macroeconômica do regime, podendo, inclusive, colocar em xeque sua regulação (Lordon, 2000; Plihon e Guttmann, 2008; Boyer, 2009).

(3) Mostram-se também problemáticas as formas pelas quais os trabalhadores assumem participações acionárias. Em geral delegada a gestores profissionais de fundos de investimento e de pensão, a propriedade de ações pelos trabalhadores não é capaz de fundar um novo compromisso capital-trabalho. Esse aspecto não garante aos trabalhadores-acionistas participação no controle das empresas, função essa desempenhada pelos gestores profissionais dos fundos de investimento de forma direta, por meio de acentos no conselho das empresas, mas principalmente indiretamente, por meio dos princípios de corporate governance, com o objetivo de maximização do seu valor acionário, como visto anteriormente (Aglietta e Rebérioux, 2005). Resulta dessa forma de propriedade das ações, uma situação de “esquizofrenia”, em que a busca de valorização do patrimônio financeiro pelos gestores dos investidores institucionais, em nome dos trabalhadores, coloca em risco as próprias condições do trabalho.

A menos que se reforme radicalmente os métodos de gestão dos investidores e dos gestores, a “democracia dos acionistas” é apenas uma ilusão. O acionista assalariado se encontra assim em uma situação ‘esquizofrênica’: enquanto assalariado, ele deseja obter elevações de salário e a manutenção de seu emprego; mas enquanto acionista ele demanda um rendimento máximo para sua poupança, o que significa frequentemente uma redução dos custos salariais da empresa... (Plihon, 2004, p. 81, tradução própria).

(4) A governança corporativa imposta pelas finanças também coloca em competição a valorização do capital na esfera produtiva com aquela que ocorre na esfera financeira, colaborando na obtenção de taxas de investimento mais baixas. As estratégias de downsizing consistem em um bom exemplo da incoerência que pode surgir entre a exigência de valorização financeira e o processo de acumulação de capital da empresa. Como é preciso ampliar a rentabilidade do capital próprio, ao mesmo tempo em que a acumulação de lucros é prejudicada pela pressão dos acionistas pela distribuição de dividendos, as empresas são impelidas ainda a elevar o nível de seu endividamento, fragilizando sua estrutura financeira.

A aceleração do processo de financeirização dos grupos industriais nos últimos quinze anos (...) ao lado de e interagindo com certos mecanismos macroeconômicos, tiveram efeitos certeiros sobre o investimento. O horizonte temporal de valorização do capital industrial é, cada vez mais, o que tem sido caracterizado, em diversos estudos relativos aos Estados Unidos, de “short termism” (Chesnais, 1999, p. 216).

(5) Outra ordem de questionamento a respeito da viabilidade do regime de acumulação financeirizado se refere à sua capacidade de generalização para além dos EUA. Tanto Chesnais

(1999) como Boyer (2000 e 2002d), por razões distintas, ainda que não excludentes, identificam bloqueios a essa generalização.

Chesnais (1999) credita ao fortalecimento político de uma parte da elite dos EUA, os financistas, a inversão do equilíbrio de poder vigente no fordismo em favor do capital financeiro – cujo marco importante é o choque de juros de Paul Volcker, em 1979 – e, assim, à adoção das reformas institucionais necessárias à financeirização da economia americana. A hegemonia internacional americana permitiu que essa configuração do capitalismo pudesse ser levada a uma escala global, ao mesmo tempo em que garantia uma posição privilegiada aos EUA, expressa em um desempenho econômico superior (maior taxa de crescimento do produto, do emprego etc.) à maioria das demais economias desenvolvidas. Essa posição privilegiada se apoia, especialmente, na profundidade dos mercados financeiros americanos e no papel do dólar como moeda reserva do sistema monetário e financeiro internacional.

Segundo Chesnais29 (1999, p. 259):

O regime de acumulação mundial predominantemente financeiro se caracteriza pela ausência de instâncias ou de mecanismos endógenos de regulação. Os únicos elementos que marcam presença são a política monetária americana e as funções de emprestador em última instância ocupadas simultaneamente pelo FMI, pelo BIS, mas também, e frequentemente, pelas instituições monetárias americanas, encabeçadas pelo Fed. A importância da política monetária americana decorre do efeito combinado dos fatores de hierarquização próprios ao período de ‘mundialização do capital’, da interligação dos mercados de títulos e da posição ocupada pelos déficits públicos. A hierarquização se dá simultaneamente em dois níveis. Na cúpula do sistema estão as finanças e os mercados financeiros; são os ‘commanding heights’ (‘os altos postos de comando’ para utilizarmos uma expressão dos anos 60) e são os que ‘dão o tom’ para o capital que se dedica à produção ou alta comercialização. Esse caráter de unidade diferenciada e hierarquizada vale para toda a economia mundial, entendida como conjunto de relações de rivalidade, de dominação e dependência políticas entre vários países. A pretensão do capital financeiro, de dominar a movimentação do capital em sua totalidade, foi acompanhada pela reafirmação da centralidade dos Estados Unidos. Esse país acabou reafirmando seu peso, não apenas pelo desmoronamento da ex-União Soviética e por sua posição militar incontestável, mas também em função do próprio processo de financeirização. Nesse nível, que por enquanto assume um grau decisivo, a importância dos Estados Unidos decorre da posição peculiar que o dólar ainda mantém, e também das incomparáveis dimensão e sofisticação de seus mercados financeiros.

Por sua vez, Boyer (2000) coloca em primeiro plano a importância das características da estrutura institucional dos EUA, mas também do Reino Unido e dos países anglo-saxões, em geral, para o surgimento das coerências necessárias para colocar em curso o modo de regulação financeirizado. Por mais que certas incoerências ainda persistam, as economias anglo-saxãs

29 O emprego do termo de “regime de acumulação” por Chesnais não corresponde, como ele próprio alerta, à

definição canônica dos fundadores da abordagem regulacionista, especialmente Aglietta (1976, 1997), conforme discutido na seção 1.1.3 deste capítulo, mas se aproxima daquela empregada por Lordon (2000, 2008). “Eu poderia, sem dúvida, me apegar a uma expressão do gênero ‘uma configuração específica da acumulação’. Escolhi empregar o termo “regime”. Pessoalmente, este empréstimo é, em parte, a expressão de uma dívida. Eu considero que no final dos anos 1970, os regulacionistas lançaram um desafio sério e enriquecedor às correntes marxistas ‘ortodoxas’ da época, mas também a um corpo marxiano intensamente mumificado (Chesnais, 2001; p. 9; tradução própria).

apresentam melhores condições de desenvolvimento do regime financeirizado. A tentativa da Europa Continental, por exemplo, de copiar a configuração de determinadas instituições visando à obtenção do mesmo desempenho econômico daqueles países dificilmente teria sucesso.

Fora dos EUA, muitos governos podem ser tentados a importar rapidamente a instituição central de uma economia patrimonial [equity-based economy], o que, por sua vez, requer a adoção de uma gama de instituições que são típicas de um capitalismo liderado pelo mercado [market-led

capitalism]. Se eles esperam que sua economia tenha os mesmos resultados que os EUA ou o Reino Unido, isso pode envolver uma falácia de composição. Certamente, ambas as economias nacionais são lideradas pelo mercado e fortemente especializadas em intermediação financeira internacional, mas o papel assimétrico que os EUA e o Reino Unido desempenham nesse processo de intermediação não pode ser facilmente reproduzido pela simples importação da flexibilidade do mercado de trabalho, uma redução dos gastos públicos e do bem-estar. Basicamente, a economia americana, até os dias atuais, se beneficia dessa assimetria que não pode ser reproduzida em outro lugar. (Boyer, 2000, p. 142-143; tradução própria).