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4 CIÊNCIAS HUMANAS: A SOCIOGÊNESE DA

5.2 A economia política da verdade

Por economia política da verdade, Foucault entende os tipos de discursos que as sociedades acolhem,fazem funcionar e circular como verdadeiros. Circulação, obviamente, que depende, também, de regras formais, mecanismos e instâncias concretas e institucionais que permitam distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, sancionando

uns e outros a esse respeito. Uma economia política da verdade diz respeito, ainda, às técnicas e aos procedimentos utilizados e reconhecidos para obter a verdade, tais como a confissão, o inquérito, o interrogatório, a prova, o diagnóstico, a experimentação científica. E, por último, integra o estatuto daqueles que tem o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro na sociedade (FOUCAULT, 1979g, p. 12).

Ao longo da cultura ocidental, a verdade, de diferentes maneiras, inscreve e generaliza efeitos reais e verdadeiros na vida das pessoas, no que elas fazem, pensam e são. Através da verdade, em seu nome, ou melhor, pelo jogo que se estabelece entre o verdadeiro e o falso, saberes, práticas sociais, instituições e formas de sujeito emergem, se impõem e se legitimam como “realidades” e “evidências”.

Entre as características historicamente relevantes da “economia política da verdade” nas sociedades modernas, Foucault elenca cinco - o interessante é que em todas elas o conhecimento e o saber são imprescindíveis de alguma maneira: 1) o filósofo francês destaca que a verdade está centrada na forma do discurso científico e nas instituições que o produzem; 2) a verdade está submetida à constante incitação política e econômica em termos de sua utilidade para os poderes; 3) ela é objeto de difusão e consumo nos e pelos aparelhos de educação e informação; 4) a verdade é produzida e transmitida sob controle de aparelhos políticos, econômicos e educacionais como universidades, escolas, estado, meios de comunicação; e, por último, 5) a verdade é objeto de debate político e de confronto social (FOUCAULT, 1979g, p. 13).

Uma das principais lições de Foucault, com o seu ceticismo filosófico peculiar, em livros como História da Loucura, Vigiar e Punir e A Vontade de Saber, consiste na tese de que muitas das verdades que se atribui e se ata ao sujeito e ao comportamento humano, através de conhecimentos com status científico são, de fato, efeitos de verdade produzidos por práticas históricas e mecanismos estratégicos de poder.

Foucault é particularmente sensível com respeito às relações de poder e práticas sociais que se estabelecem entre os saberes profissionais, técnicos e científicos (psiquiatria, psicologia, medicina, pedagogia, direito, assistência social) e seus usuários nas relações cotidianas. Nelas, o peso da coação dos poderes e a produtividade dos discursos de verdade se fazem sentir materialmente nos corpos e nas condutas.

Por debaixo das teorias, das proposições e enunciados dos discursos, Foucault escava e vasculha, graças a sólidas investigações históricas sobre a formação dos saberes e de seus arquivos de poder, dimensões inadvertidas da existência social e do cotidiano. Ele

revela e traz à tona, toda uma série de conflitos, dominações e violências que os conhecimentos especializados em sua práxis e lida com os indivíduos ocultam nos documentos, relatórios, consultórios, visitas. Para o filósofo, esses saberes e seus especialistas repousam sobre dispositivos de normalização social, eles operam como verdadeiras e polimorfas técnicas políticas de dominação e regulação cuja finalidade consiste em justificar, sob o apelo do científico e da autoridade estatal, normas arbitrárias e práticas de sujeição, controle, classificação e exclusão dos indivíduos e das classes sociais52.

O disciplinamento, a internação, os laudos psiquiátricos, as decisões judiciais, a prisão, a imposição de normas ideológicas de higiene e saúde, os cadastramentos de seguridade social e previdência são todos exemplos de normas e práticas de poder sustentadas e legitimadas por conhecimentos e saberes profissionais, técnicos e científicos com pretensão e poder de verdade. A propalada capilaridade do poder e sua circulação pelos indivíduos, seu postulado de não-propriedade, de não redução ao Estado e ao direito, é impensável sem o recurso a essa concepção normalizadora e política dos saberes.

Sem a produção da verdade, dos efeitos de verdade, estudar o “como” do poder, isto é, o funcionamento dos seus mecanismos concretos, seria, em grande medida, inviável, uma vez que parte significativa dos objetivos dos mecanismos de poder estudados por Foucault consiste na identificação e extração da verdade do sujeito; verdade do seu desejo, do seu sexo, verdade da sua alma, verdade do seu caráter e comportamento, verdade do seu corpo adoecido, verdade do seu espírito perturbado.

Portanto, a concepção foucaultiana de “verdade” é, a um só tempo, construtivista e relacional. A verdade, ou melhor, a produção dos discursos de verdade é analisada sob a ótica das práticas históricas e em função do modo e das condições pelas quais estas práticas, em seus elementos discursivos (saber) e não-discursivos (poder) constituem o sujeito em conformidade e vinculado a determinados discursos de verdade. Discursos de verdade que julgam, condenam, classificam, impõem, obrigam comportamentos, formas de ser e de identidade, ou seja, discursos de verdade que geram efeitos de poder.

52 Ao contrário do que se costuma pensar ou acusar, o tema das classes sociais não é de modo algum ausente

na obra de Foucault. Em Vigiar e Punir, as classes sociais surgem como uma variável central para a “gestão dos ilegalismos”. Em A Vontade de saber, por sua vez, Foucault não descura de analisar as formas de poder- saber particulares pelas quais se empreendeu a sexualização da classe operária e da burguesia; na primeira, uma racionalidade médica-policial e jurídica ao passo que, na segunda, uma racionalidade médica de orientação mais psicanalítica e familiar.

Saber e poder são, novamente, as chaves interpretativas para se compreender a produção da verdade e de seus efeitos e eficácia. Eles formam a grade de análise, e não os princípios gerais da realidade ou da história em nome dos quais poder-se-ia compreender o movimento integral do real; ele precisam antes, e mais modestamente, os elementos e conteúdos históricos precisos e pertinentes a serem isolados analítica e empiricamente na investigação.

Poder-se-ia definir, com efeito, a obra de Foucault como um grande investimento crítico de problematização da familiaridade e evidência das pressuposições culturais e práticas institucionais incorporadas das sociedades modernas. No vocabulário do próprio autor, significa problematizar, em sentido histórico, filosófico e político, os discursos de poder que funcionam e circulam em nossas sociedades, no presente e na experiência cotidiana como verdades generalizadas e evidentes53.

A produção da verdade na cultura e vida moderna assume um papel e uma força avassaladora. De fato, para Foucault, a modernidade é a época histórica por excelência para se estudar as relações entre poder, verdade e sujeito que ele trata de analisar; fornece inclusive uma matriz para estudá-las em domínios variados e em outros períodos da história (FOUCAULT, 1990, p. 12).

Em Foucault, podemos afirmar que a questão fundamental do discurso filosófico moderno, isto é, o problema da subjetividade moderna, o “quem somos nós, modernos?”, é enfrentada em função da problematização da política da verdade de nossas sociedades, das relações entre poder, verdade e sujeito. O autor de Vigiar e Punir coloca essa questão central do Esclarecimento nos seguintes termos: “o que então eu sou, eu que pertenço a esta humanidade, talvez à margem, nesse momento, nesse instante de humanidade que está sujeitado ao poder da verdade em geral e das verdades em particular?” (FOUCAULT, 1990, p. 11-2).

Uma questão filosófica imprescindível, cujo horizonte de resposta somente pode ser trabalhado à luz da história, por meio dos conteúdos históricos que afeiçoam as relações entre poder, verdade e sujeito. Relações, muitas vezes, que ignoramos os conteúdos formadores e mesmo a existência delas e sua arbitrariedade sobre as vidas.

53Novamente, Foucault vincula essa perspectiva que se pergunta pelos efeitos de poder da verdade, em nossas

sociedades, a uma prática histórico-filosófica que continua a fazer do Esclarecimento uma questão central

(FOUCAULT, 1990, p.11). Para maiores detalhes ver: FOUCAULT, Michel. “O que é a crítica?” (Crítica e

Aufklärung). Trad. Gabriela Borges, revisão Wanderson Nascimento, publicada no Bulletin de la Société française de Philosofie, vol. 82, n.2, p 35-63, abril-jun 1990, disponível em Espaço Michel Foucault – www.filoesco.unb.br/foucault.

A esse propósito, Paul Veyne vale-se de uma bela e didática imagem para explicitar o interesse de Foucault pelas evidências e verdades de uma época: “Em cada época, os contemporâneos encontram-se assim fechados em discursos como em aquários falsamente transparentes, ignoram quais são e até que existe um aquário” (VEYNE, 2008b, p. 19).

Esses aquários em que estamos todos encerrados são formados pelos discursos. Eles constroem falsas generalidades e sentidos de evidências que se passam por verdadeiros e que se expressam e constituem aquilo que os homens falam e fazem numa época e formação histórica singular tomando como atos, condutas e pensamentos verdadeiros: “De tal modo que a verdade é reduzida a dizer a verdade, a falar conforme o que se admite ser verdade e que fará sorrir um século mais tarde” (VEYNE, 2008b, p. 19).