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Os fundamentos corporais da dominação

4 CIÊNCIAS HUMANAS: A SOCIOGÊNESE DA

4.4 Os fundamentos corporais da dominação

Foucault foi um pensador materialista. A história também se revela aos seus olhos pelas relações materiais. Por relações materiais, Foucault não entende o mesmo nem ambiciona tratar do mesmo fenômeno que o mais notável dos pensadores materialistas consagrou, Karl Marx. Não é a produção social da existência, isto é, o modo pelo qual os homens organizam o processo produtivo, mas a articulação entre corpo e história que interessa ao genealogista Foucault. Os corpos são as chaves da história.

O corpo é esta superfície plástica em que se inscreve a história, “o estigma dos acontecimentos passados” (FOUCAULT, 1979b, p. 22).

Ele é um conjunto de forças modeláveis, agitadas e dispersas, sobre as quais as relações de poder sobrevêm para constituir, formar e regular na forma de atitudes corporais, posturas, maneiras, disposições, controles, formas de percepção. Dito de outro modo, fazer das forças um corpo.

O corpo não é um todo orgânico fechado e protegido do mundo humano, um dado objetivo da natureza que dispõe de necessidades naturais e habilidades relativamente fixas e maleáveis culturamente. O corpo, em Foucault, pode ser concebido como uma exterioridade vulnerável e aberta às diferentes antropotécnicas de moldagem do corpo, isto é, as técnicas inventadas pelo homem para produzir a si mesmo. Ele é, desde o nascimento, o lugar de constantes combates que tentam produzi-lo. Muito provavelmente, Foucault

concordaria com Deleuze e Guattari quando estes sustentam que não é troca e a reciprocidade que fundam a sociedade, que conferem vida ao social, mas a inscrição dos corpos. Isto é, o processo longo e tortuoso de escrever e codificar os corpos, de marcá-los com uma cultura e uma memória de palavras, de práticas, de crenças e de sentimentos49 (DELEUZE & GUATTARI, 2010, p. 191).

O corpo, em Foucault, é principalmente o que dele se faz na história, ou o que as relações de poder fazem dele. Não por caso, afirma Foucault que a genealogia “deve mostrar o corpo inteiramente marcado de história e a história arruinando o corpo” (FOUCAULT, 1979b, p. 22).

Para o genealogista Foucault, o corpo é uma superfície essencial para o exercício das relações de poder. Nesse sentido, a dominação possui fundamentos corporais. Pensar a dominação é, em Foucault, necessariamente pensar o corpo. Ela é, antes de qualquer coisa, uma economia política do corpo: “o controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo” (FOUCAULT, 1979e, p. 80).

Como vimos nos tópicos anteriores desse capítulo, Foucault tenta identificar os mecanismos específicos de tecnologias sociais, por meio dos quais o poder se articula com o corpo dos indivíduos: o olhar médico, o panopticon, o exame, os laudos, os processos, a confissão. Com diferentes ênfases, o corpo é, na maior parte das obras, um componente presente nas reflexões de Foucault: os corpos interditados e dividido dos loucos, o corpo examinado e observado pelo olhar médico, o corpo vigiado e adestrado dos infratores, corpo obrigado a falar e a confessar sua sexualidade. Os corpos estudados por cientistas e outros especialistas. Os corpos submetidos por tecnologias de poder e sequestrados por instituições totais.

Isso significa que os corpos não estão fora das condições políticas e das correlações de forças, por isso “as relações de poder têm alcance imediato sobre; elas o investem, o marcam, o dirigem, o supliciam, sujeitam-no a trabalhar, obrigam-no a cerimônias, exigem-lhe sinais” (FOUCAULT, 2004, p. 28).

49 Ideia, por sua vez, que Deleuze e Guattari retiram de Nietzsche e sua hipótese sobre a formação da

“consciência”. Diz o filósofo alemão: “Esse antiquíssimo problema, pode-se imaginar, não foi resolvido exatamente com meios e respostas suaves: talvez nada exista de mais terrível e inquietante na pré-história do homem do que sua mnemotécnica: (...) Jamais deixou de haver sangue, martírio e sacrifício quando o homem sentiu a necessidade de criar em si uma memória; os mais horrendos sacrifícios e penhores (entre eles o sacrifício dos primogênitos), as mais repugnantes mutilações (as castrações, por exemplo), os mais cruéis rituais de todos os cultos religiosos...” (NIETZSCHE, 2004, p. 50-1).

Portanto, no modelo analítico foucaultiano, é a partir do corpo que se deve pensar o exercício da dominação, isto é, pensar quais são suas bases corporais, que relações de sujeição são estabelecidas com os corpos dos indivíduos e grupos humanos.

Em Foucault, o corpo constitui um componente essencial para pensar a história e a sociedade através das relações de poder que nele se inscrevem. De fato, as diferenças entre as economias do poder, e mesmo entre os tipos de sociedade, são, no pensamento foucaultiano, analisadas à luz das modalidades de inscrição do poder nos corpos, isto é, pelas maneiras e tecnologias com as quais o poder submete os corpos.

O corpo do supliciado, no Antigo Regime, não é a da mesma ordem que o corpo do condenado infrator, na sociedade disciplinar. O corpo do primeiro é esmagado e despedaçado pelo poder soberano e os suplícios impostos. É a ritualização dramática da vingança régia que se abate cruelmente sobre o corpo. O suplício do corpo é o teatro da representação do poder soberano. É a soberania do monarca que se manifesta nos rituais e técnicas com as quais o corpo é torturado e exibido exemplar e publicamente:

O suplício penal não corresponde qualquer punição corporal: é uma produção diferenciada de sofrimentos, um ritual organizado para a marcação das vítimas e a manifestação do poder que pune; não é absolutamente a exasperação de uma justiça que, esquecendo seus princípios perdesse todo o controle. Nos ‘excessos’ dos suplícios, se investe toda a economia do poder (FOUCAULT, 2004, p. 32).

O corpo do infrator, na sociedade disciplinar, é um corpo punido, mas não destruído nem eliminado. Pelo contrário, o poder se abate sobre ele para corrigi-lo, domesticá-lo e aperfeiçoá-lo em todos os sentidos. Dotá-lo de utilidade social e econômica e de obediência política. Torná-lo, assim, novamente e devidamente apto para a sociedade:

O corpo humano entra numa maquinaria do poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma ‘anatomia política’(...) ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas, segunda a rapidez e a eficácia que se determina (FOUCAULT, 2004, p. 119).

Assim como as formas de punição revelam o tipo de sociedade, também as formas de articulação entre poder e corpo revelam os tipos de sociedade. Os modos pelos quais uma sociedade constitui e organiza os corpos é contundente com respeito à própria forma de organização dessa sociedade e suas situações estratégicas. Disso, resulta, a importância de analisar as formas de exercício da dominação em função das relações entre poder e corpo.

Contudo, pode-se questionar a concepção um tanto passiva e inibidora de corpo presente nos estudos genealógicos de Foucault. Os corpos quase sempre mudos e paralisados diante da força magnânima ou extremamente eficiente das tecnologias e rituais de poder.

Os corpos são, também, como ensina a tradição fenomenológica, suportes vivos de sentido da experiência vivida. Eles não apenas sofrem a ação do mundo, dos dispositivos sociotécnicos de regulação corporal, mas agem, experimentam, resistem, criam. O equívoco de Foucault, nesse aspecto, foi justamente ter, em obras como Vigiar e Punir, insistido demasiadamente no efeito neutralizador a partir dos investimentos do próprio poder – “os corpos dóceis” -, desabilitando os efeitos de capacitação e habilitação produzidos, os quais não podem ser facilmente controlados e administrados em suas consequências posteriores, como mostram as revoltas, as greves, o sindicalismo, o abandono coletivo do local de trabalho, a sabotagem das máquinas, etc..

Outro contraponto importante a se fazer é que podemos considerar que os corpos, assim como os demais outros aspectos da vida social, estão atravessados por relações de poder, e que estas a constituem, em larga medida. No entanto, aceitar essa tese não significa o mesmo que afirmar que os corpos e outros produtos da vida social esgotam-se nessa dimensão, decerto inelutável, do poder, ou possam ser, fundamentalmente, explicadas sempre por ela.

De qualquer modo, a despeito do déficit na agência, Foucault integra o rol dos pensadores sociais, como Marcel Mauss, Norbert Elias e Pierre Bourdieu, cujos esquemas teóricos possuem nos corpos um nível de inteligibilidade imprescindível para compreender a cultura, a história, a sociedade e as formas de dominação. E, inegavelmente, tal perspectiva engajada do agente como corpo representa um enorme avanço contra as visões mais intelectualistas e descarnadas do sujeito e da ação social. Além do mais, brinda às análises das relações de dominação e de seus meios empregados com uma perspectiva materialista e visceral da realidade, em que a dominação se inscreve, por meios materiais, nos corpos, na materialidade mais bruta da vida social.

Por isso, a fecundidade e a receptividade com que a abordagem foucaultiana do poder foi recebida e utilizada nas especialidades sociológicas da saúde, gênero, sexualidade, esporte, educação, enquanto um poderoso e indispensável aporte para investigar as diferentes modalidades de relações entre sociedade e corpo, especialmente aquelas permeadas de poder e dominação.

4.5 Uma história da razão: racionalidades, problematização e o conceito de