• Nenhum resultado encontrado

Dominação e a genealogia do sujeito na civilização

2 DOMINAÇÃO E CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO

2.5 Dominação e a genealogia do sujeito na civilização

A dominação que interessa a Foucault consiste nas formas de poder que se traduzem em sujeições e assujeitamentos dos indivíduos e de suas vidas imediatas pelas práticas sociais discursivas e não-discursivas. Em outras palavras, as formas de poder e saber que faz dos indivíduos sujeitos, quer dizer, submetidos a alguém pelo controle e dependência e presos a uma identidade. Dessa maneira, não é simplesmente sobre uma instituição, uma classe ou um grupo que o poder incide e atua. Esta forma de poder e

31 No capítulo IV, voltaremos à questão do estatuto da racionalidade no pensamento de Foucault, pois em sua

concepção pluralista de racionalidade radica uma relevante contribuição a sociologia que cumpre precisar adequadamente.

dominação incide e constitui a vida cotidiana dos indivíduos, suas rotinas, evidências, entendimentos, comportamentos, categorias, identidades, prazeres, pois

[...] categoriza o indivíduo, o marca por sua própria individualidade, une-o a sua própria identidade, lhe impõe uma lei de verdade que ele tem que reconhecer e que ao mesmo tempo, outros devem reconhecer nele. É uma forma de poder que constitui sujeitos individuais. (FOUCAULT, 1995. p. 235).

Percebe-se, então, como a questão da dominação, em Foucault, não se restringe, como defendem certas interpretações que querem transformá-lo num neoweberiano ou frankfurtiano, a desvendar os nexos entre racionalidade e poder. A equação está incompleta se não acrescentarmos um componente essencial: a constituição do sujeito. As formas de dominação ligam-se teoricamente ao problema do sujeito, da sua constituição na e pela sujeição a outrem. As formas de dominação ou relações de poder são formas de individualização que atam os indivíduos a identidades específicas e heterônomas. Isso significa, também, que o tratamento analítico da dominação não possui um estatuto independente no conjunto da obra e pensamento do autor. Dito de outro modo, a análise da dominação está intimamente relacionada com outras questões e problemas a que se dedicou a empresa intelectual de Foucault ao longo de quase quatro décadas de profícua e intensa produção - que, no caso do filósofo francês, conheceu mudanças, reviravoltas, pausas. Há pensadores, como dizia Deleuze, que são um pouco sísmicos, eles não evoluem, mas procedem por crises e abalos.

Mais ainda: a análise da dominação enquanto a emergência e exercício de formas de sujeição dos indivíduos não somente compõe o projeto intelectual essencial da obra do autor como, também, é parte fundamental para esclarecer o que é, segundo o próprio Foucault o fio condutor e o tema ao qual o próprio filósofo francês definiu como sendo o coração de suas investigações, qual seja: a constituição do sujeito. Comentando o seu próprio trabalho num pequeno texto do início da década de 1980 afirma Foucault:

Eu gostaria de dizer, antes de mais nada, qual foi o objetivo do meu trabalho nos últimos vinte anos. Não foi o de analisar o fenômeno do poder nem elaborar os fundamentos de tal análise. Meu objetivo, ao contrário, foi criar a história dos diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos tornaram-se sujeitos (FOUCAULT, 1995, p. 230).

A afirmação acima consiste num balanço e conclusão acerca de uma série de considerações, avaliações e críticas sobre a natureza e a proposta última dos seus trabalhos

ao longo das décadas de 1960 e 1970 assim como a respeito dos rumos tomados por suas pesquisas no início dos anos de 1980 – o que alguns chamam de “virada ética” ou “o retorno ao sujeito” em Foucault. Na verdade, como comentador de si mesmo, e buscando articular um sentido para a sua obra ou, pelo menos, um eixo coordenador de suas reflexões e pesquisas em meio ao tratamento de temas tão diversos, como a loucura, a prisão, a sexualidade, o poder, a gênese das ciências humanas, Foucault afirma que tentou produzir uma história dos diferentes modos de constituição do sujeito, quer dizer, de subjetivação do ser humano dentro de nossa cultura – este é o cerne do seu projeto filosófico. Nesse sentido, enquanto categoria conceitual, poder em Foucault nada mais é do que uma grade de análise para estudar e abordar os modos historicamente delimitados de constituição do sujeito.

O pensamento filosófico de Michel Foucault representa um dos grandes investimentos intelectuais do século XX de superação das filosofias do sujeito, especialmente a vertente fenomenológica. O seu desafio é estudar a constituição do sujeito nas práticas históricas. Entre os diferentes modos de produzir sujeitos, e de acordo com as diferentes formas de abordagem e temáticas de investigação que Foucault utilizou e estudou para abordar o mesmo problema, o filósofo francês destaca três, como as direções em que seu trabalho trilhou para enfrentar essa grande empresa de realizar “a genealogia do sujeito na civilização ocidental”, ou seja, dos modos de constituição do sujeito no ocidente (FOUCAULT, 2006ª, p. 95).

O primeiro, num eixo mais discursivo, encaminhou-se pelo estudo da objetivação do sujeito do conhecimento em saberes como a gramática geral, a filologia, a linguística, do sujeito produtivo em saberes como a análise das riquezas e a economia e, por último, do sujeito como ser vivo na história natural ou na biologia. O segundo modo, a objetivação do sujeito num campo de poder-saber por meio de “práticas divisoras” e tecnologias políticas que o objetivam como “louco”, “doente”, “anormal”, “delinquente”. Terceiro modo, como os seres humanos constituem-se a si próprios como sujeitos, como são levados a reconhecerem e trabalharem sobre si como agentes éticos de sua própria vida, verdade, desejos (FOUCAULT, 1995, p. 231).

O nexo entre dominação e constituição do sujeito é importante porque ele enfatiza uma dimensão pouco atentada nos estudos sociológicos e análises sociológicas das formas de dominação; a produção da subjetividade como componente e produto das próprias relações de poder. Para Foucault, o sujeito é um produto histórico-social, e não um dado ou

substância pré-constituída em relação à história, à cultura e à sociedade e suas relações de força e de sentido. Portanto, o sujeito está preso a um conjunto de relações no interior das quais ele é constituído. Essas relações a que o sujeito está invariavelmente preso podem ser relações de produção, relações de sentido e, o que mais interessa a Foucault, relações de poder. É esse último conjunto de relações que Foucault isola analiticamente das demais para compreender o papel e os efeitos do poder para a constituição do sujeito, ambição e interesse que lhe forçou a estabelecer novos princípios metodológicos e teóricos para compreender e analisar o poder em ruptura franca com as teorias tradicionais da soberania e da repressão até então vigentes a propósito do poder (FOUCAULT, 1995, 240-1).

Se as relações de poder importa ao filósofo francês como uma grande de análise para estudar o sujeito, então, isso significa que a eficácia da dominação não deriva apenas do reconhecimento e da legitimidade que ela produz nem a obediência explica-se, por completo, pela justificação interna advinda da crença na legitimidade. Os indivíduos estão presos a suas relações de constituição enquanto tais, como sujeitos. São constituídos na sujeição. As formas de dominação são também formas de subjetivação, formas de constituição de sujeitos que o constituem para obedecerem e reconhecerem sua própria dominação sob o signo de sua identidade e individualidade mesma.

Os tratamentos que destacam a questão da legitimidade da dominação partem, muitas vezes, de uma subjetividade pré-constituída a qual as relações de força e domínio, apoiando-se em relações de sentido por meio da cultura, da tradição, das crenças, viriam se sobrepor sutilmente obtendo o reconhecimento de sua legitimidade. O mérito de Foucault consiste em proporcionar um modelo teórico capaz de analisar o processo de aceitação e reconhecimento da dominação – “a domesticação dos dominados”, como diria Weber – de maneira mais completa e detalhada, abordando desde os pontos de inscrição, aplicação e os procedimentos de que se utilize até os elementos produtores e capacitadores das tecnologias de poder no que se refere à própria constituição subjetiva e objetiva do indivíduo como sujeito.

Dito de outro modo, a questão da dominação e de sua aceitação pelos dominados passa pelo estudo das práticas sociais concretas e das racionalidades estratégicas que lhes concernem. É em função delas que objetiva-se um sujeito, uma forma de saber e um campo de experiências possíveis em que o sujeito é conduzido, modelado e governado para fazer dessas experiências e suas categorizações, seus enunciados, a sua experiência, a sua verdade e a sua identidade.

Com essa definição de “dominação”, não pretendo excluir do arcabouço teórico foucaultiano a dimensão do conflito e do embate, a qual seria constituinte e estruturante das relações de poder: as relações de resistência ao exercício do poder. Como é amplamente conhecido, Foucault toma como modelo de análise das relações de poder o modelo da luta perpétua, da batalha ininterrupta entre as forças.

Contudo, a dimensão das resistências, a meu ver, permaneceu subteorizada e subdeterminada empiricamente nos trabalhos de Foucault até a década de 1980, quando o filósofo, num retorno ao mundo das éticas greco-romanas e a partir de conceitos como “estética da existência” e “cuidado de si” consegue, com efeito, elaborar e demonstrar com maior consistência conceitual e factual o que antes permanecia no nível da generalidade e das fórmulas – “onde há poder há resistência”.

Dessa maneira, como delimitamos prioritariamente o nosso trabalho nos escritos genealógicos e na temática da articulação recíproca entre racionalidade e poder, em que, como dito acima, a dimensão da “resistência” e da “agência” individual e coletiva contra o exercício do poder é subteorizada e subdeterminada, então nos concentraremos nos aspectos mais coercitivos e impositivos, as formas de sujeição, do exercício do poder tal qual nos apresenta os estudos históricos de Foucault do que nos elementos de enfrentamento, de resistência e contra-ataque contra o exercício do poder. Além do mais, o próprio conceito de “dominação” possui o mérito, e o indica por si só, de chamar a atenção para a compreensão e abordagem dos aspectos e mecanismos de estabilização e regularidade das relações de poder, ou seja, visa dar conta da regularidade dos conteúdos das ações e das relações sociais num determinado campo de experiência.

Vimos, então, como o tratamento teórico de Foucault das formas de dominação, a partir de sua analítica dos poderes, revela sua concepção de sociedade, problematiza politicamente as relações e as evidências constituídas da vida cotidiana, interrogando-as enquanto relações de poder e, por último, como sua mais importante contribuição sociológica, elabora o nexo que une dominação e constituição do sujeito, indo além das questões da produção da legitimidade e obediência.

Nos capítulos subsequentes, passaremos para as outras unidades de análise. Discutiremos, com mais vagar, o funcionamento das formas de dominação, seus procedimentos, estratégias e mecanismos que compõem e organizam as racionalidades específicas empregadas na sujeição dos indivíduos. Com isso, esperamos abordar as unidades de análises básicas com as quais o filósofo francês trabalha e constrói o seu

esquema teórico de investigação com respeito ao tema da dominação. Além da constituição do sujeito, unidade-mestra, que discutimos neste capítulo, há ainda as seguintes: saber, poder e verdade.

3 SABER E DOMINAÇÃO

“O saber não é feito para compreender, ele é feito para cortar”.

Michel Foucault, 1979, p. 28.

Neste capítulo, e nos demais, discutiremos as principais unidades de análise com as quais Foucault procura abordar, em sua integralidade teórica e empírica, segundo, obviamente, os recortes e seus interesses de pesquisa, os modos de exercício das formas de dominação enquanto sujeição dos indivíduos. Ao realizarmos uma operação teórica de decomposição das unidades de análise do esquema teórico de investigação foucaultiano, nosso propósito consiste em evidenciar, para fins didáticos e analíticos, os componentes e aportes conceituais principais trabalhados pelo autor. E, assim, dar conta do tratamento proposto em torno das contribuições sociológicas pertinentes e possíveis. Dito isso, prossigamos.