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2 DOMINAÇÃO E CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO

3.5 Do conhecimento ao saber-poder

A partir da concepção bélica e nietzschiana do conhecimento, Foucault delimita e avança para o que de fato lhe interessa no conhecimento; o vínculo, consagrado na cultura ocidental, entre verdade e poder. Como já foi dito, a análise desse vínculo não é realizada através simplesmente de uma análise interna da gramática do conhecimento e do conhecer. Não se trata de trazer à luz a inteligibilidade, a lógica de descoberta e a coerência epistemológica do conhecimento e de suas modalidades e categorias de pensamento. Para evitar tais confusões, Foucault opta por empregar a palavra saber em vez de conhecimento, por considerá-la mais ampla e contundente com respeito à natureza e à singularidade de seu interesse no tema dos conhecimentos e sua história.

Quando cotejado com o conceito de conhecimento, o conceito de saber permite a Foucault apreender um processo social e um campo de forças mais heterogêneo e ambíguo do que uma atividade cognitiva e criativa do homem. Reúnem-se, assim, as condições de existência sociais e políticas, as regras de funcionamento e circulação e as razões estratégicas que permitiram o aparecimento de uma determinada forma de conhecimento, a

constituição de um campo de objetos, conceitos e técnicas de conhecer e um tipo de relação com o sujeito mediada por práticas sociais e instituições particulares.

Para Foucault, o poder, longe de impedir o saber, o produz. Todo saber é fruto de relações de poder. O exercício do poder cria objetos de saber, os faz emergir, acumula informações e as utiliza. Sem a formação, a organização e circulação de um saber não há como o poder se exercer e circular socialmente em sua capilaridade característica nem se aplicar com seus mecanismos sutis. A correlação entre saber e poder exige um campo de saber, de práticas discursivas, a partir do qual as relações de poder, as práticas não- discursivas, adquiram certa estabilidade, capilaridade e legitimidade. Por isso que os estudos genealógicos foucaultianos caracterizam-se pela identificação e análise minuciosa dos espaços sociais, ou, no seu vocabulário, campos de experiência possíveis, historicamente constituídos, em que o exercício do poder e a produção de saber se interpenetram, fabricando este mesmo campo de experiências possíveis das relações humanas.

É nesse sentido que um saber construído sobre o corpo, um saber fisiológico ou pedagógico, somente foi possível mediante um conjunto de disciplinas militares e escolares. Ou, por exemplo, a emergência da prisão e suas relações de poder formam as condições de possibilidade da existência de saberes que originarão a criminologia, antropologia criminal e as ciências humanas. Estas últimas, por sua vez, fornecerão novos subsídios às relações de poder das quais nasceram assim como produzirão novas relações. Saber e poder funcionam como num circuito, conforme um vínculo de afinidade e causalidade recíproca: os saberes surgem vinculados ao jogo das relações de poder assim como estas últimas se constituem e se consolidam conjuntamente pela ação dos saberes aos quais estão relacionados. O estudo das malhas das relações de força presentes na sociedade, em Foucault, é impensável sem esta interpenetração e causalidade mútua entre saber e poder.

Como veremos, no próximo capítulo, a fim de ilustrar empiricamente as teses foucaultianas acerca da imbricação saber-poder, um saber positivo sobre o homem, as ciências humanas, foi o produto dos esforços de estratégias e tecnologias de poder de disciplinarização e normalização das condutas, dos gestos, dos corpos e das populações.

Portanto, o questionamento filosófico e histórico que Foucault lança ao campo do conhecimento dirige-se, com efeito, a sua exterioridade40, quer dizer as condições históricas e institucionais de aparição de saberes, seus efeitos de poder na sociedade, nos corpos e nas condutas dos indivíduos, sua relação com o exercício de determinadas tecnologias de poder, seu papel na objetivação de formas de sujeitos.

De acordo com Foucault, a partir da história e problematização de saberes menos vigorosos e sofisticados, é possível encontrar sem maiores dificuldades o modo pelo qual as condições institucionais, socioeconômicas, as estratégias políticas e técnicas e as práticas sociais atuam, se relacionam e intervém na sua constituição teórica, em sua legitimação pública e no reforço de suas consequências. A esse propósito, Foucault é bastante claro quando numa entrevista em que inicia reconhecendo a pertinência e o status que o problema das relações entre conhecimento e dominação, do estatuto político e das funções ideológicas da ciência, tinha nos anos de sua formação e no contexto intelectual dessa época. Ele indaga retoricamente:

Para mim, tratava-se de dizer o seguinte: se perguntarmos a uma ciência como a física teórica ou a química orgânica quais são as suas relações com as estruturas políticas e econômicas da sociedade, não estaremos colocando um problema muito complicado? Não será muito grande a exigência para uma explicação possível? Se, em contrapartida, tomarmos um saber como a psiquiatria, não será a questão muito mais fácil de ser resolvida porque o perfil epistemológico da psiquiatria é pouco definido, e porque a prática psiquiátrica está ligada a uma série de instituições, exigências econômicas imediatas e de urgências políticas e de regulamentações sociais? (FOUCAULT, 1979e, p. 01).

O problema do saber em Foucault consiste em detectar e analisar o seu entrelaçamento e interdependência com o exercício do poder. O que, por conseguinte, somente pode ser abordado a partir do enraizamento das formas de conhecimento nas estruturas sociais, nas instituições de poder, nas práticas sociais, nas estratégias políticas de uma sociedade. Desse modo, a análise foucaultiana do conhecimento define-se, desde a

História da Loucura, como análise genealógica da maneira como as formas de

conhecimento estão imbricadas com as formas institucionais, sociais e políticas de exercício de poder.

40 Mesmo em análises mais epistemológicas que privilegiam a autonomia do nível discursivo e dos

enunciados como em As Palavras e as coisas, Foucault inscreve os saberes nos marcos conceituais e culturais básicos de organização dos discursos em uma época determinada, as epistemes, ao invés de apenas abordar a lógica ou progresso dos conceitos e categorias internas dos saberes.

A descrição da formação de domínios de conhecimentos obedece a regras bastante precisas de uma análise histórica e filosófica singular: primeiro, identificar, no interior de um complexo institucional, as práticas discursivas (arqueologia) e as práticas sociais não- discursivas (genealogia) implicadas como condições de possibilidade para o surgimento de determinado domínio de conhecimento; segundo, articular as razões e funções estratégicas que tal domínio responde e cumpre em termos de práticas políticas, econômicas, jurídicas numa sociedade – a já mencionada “situação estratégica”.

Trata-se de se perguntar, com efeito, que práticas sociais e que dispositivos estratégicos engendraram domínios de conhecimento com objetos, conceitos, técnicas e, também, sujeitos, inclusive sujeitos de conhecimento. Entre outras palavras, análise das relações entre saber e poder.

Há uma interdependência entre poder e saber nas sociedades modernas. Essa interdependência torna a constituição de um campo de saber uma pré-condição essencial para a fabricação, o funcionamento e a legitimação de determinadas relações de poder, da mesma forma que o aparecimento e institucionalização de formas de saber implicam relações de poder. Para o filósofo francês, é nesse sentido que o saber é indispensável para o exercício da dominação social nas sociedades modernas por conta dos efeitos de poder, e sua circulação, que ele gera na produção de discursos reconhecidos e institucionalizados como verdadeiros.

As relações de poder reclamam formas de conhecimento para implantá-las materialmente como tecnologias, mecanismos e práticas concretas assim como para justificar sua existência e exercício através do tempo e em diferentes espaços e situações. Em outras palavras, o saber operacionaliza o funcionamento de um campo de forças em tecnologias e práticas sociais específicas ao mesmo tempo em que confere certa estabilidade e legitimidade às relações de poder e seu exercício sobre as ações humanas.

Ora, a reprodução das disciplinas e dos mecanismos do poder disciplinar é impensável sem a pedagogia escolar e militar; as novas relações de poder entre médico e paciente, expressas no poder clínico do exame e do olhar no hospital moderno supõem o constante exercício de um tipo de medicina dos sintomas; a reiteração e a aceitação social de diagnósticos patologizadores e de práticas de enquadramento social sobre a loucura, a sexualidade e as condutas criminosas requerem a ação de conhecimentos como a psiquiatria, a criminologia e a sociologia que promovam e justifiquem socialmente estas apreensões da realidade.

Nesse nível de análise, a dominação em Foucault pode ser pensada, portanto, em termos das relações de interdependência entre saber e poder. As sociedades modernas se caracterizam pela interdependência funcional entre saber e poder. O conhecimento desempenha papel importante no exercício da dominação por sua implicação e interdependência com as relações de poder, quer seja as reforçando quer seja as fabricando por suas consequências e inscrição nas instituições sociais e políticas de integração e condução social.

Portanto, na análise das relações entre saber e poder o conteúdo, método e os conceitos de uma ciência ou outra forma de conhecimento qualquer dizem muito pouco com respeito à questão de como e porque uma forma determinada de saber foi possível e quais foram os seus efeitos de poder. Para enfrenta-la é preciso investigar a que ordem de problemas e preocupações políticas e econômicas esta forma de saber responde, a que instituições e formas de racionalidade ela se conecta e que consequências e efeitos ela produz no real.

Para exemplificar e ilustrar, nos próprios estudos empíricos de Foucault, esta relação de interdependência funcional entre saber e poder, assim como o argumento da constituição do sujeito do capítulo anterior, irei apresentar e discutir, no próximo capítulo, a gênese e a crítica produzida por Foucault das ciências humanas. A reconstrução da sociogênese das ciências do homem enquanto saberes que objetificaram os indivíduos como domínios de saber nos permitirá conferir mais substância para os argumentos mais abstratos e gerais que apresentamos até aqui.

4 CIÊNCIAS HUMANAS: A SOCIOGÊNESE DA OBJETIFICAÇÃO DO